Na escola aprendemos
matérias que não servem para nada, enquanto são omitidas outras que nos seriam preciosas
Foto: José Sérgio,
publicada com a matéria
VIVER PARA CONTAR
"Sim, pode"
José António Saraiva
Um destes dias, precisando de falar a uma pessoa amiga mas só tendo
oportunidade de lhe telefonar a horas impróprias, enviei-lhe um SMS perguntando se poderia falar-lhe por volta da hora x.
Passados dois minutos chegava a resposta: " Sim, pode".
Achei a resposta curiosa. Em princípio, o "Sim" bastava. Por que teria o meu interlocutor sentido necessidade de
acrescentar o verbo?
Lembrei-me então de uma conversa com o meu pai sobre a língua portuguesa. Depois de ir viver para França, ele
começou a olhar para o português de outra maneira. Comparava-o com o francês, analisava certas expressões numa língua e noutra,
extraía conclusões sobre aquilo que as línguas revelavam acerca do modo de ser dos dois povos.
Numa dessas conversas, dizia-me:
- Zé, o sim em português não quer dizer "sim", quer dizer
"talvez" -. E exemplificava: - Se perguntares a uma pessoa "Quer ir almoçar?" e ela responder "Sim" é porque não está muito convencida. Mas se disser "Quero", é sinal de que quer mesmo.
D e facto, o que representa verdadeiramente o "sim"
em português é a repetição do verbo contido na pergunta.
Se dissemos a alguém " Podes ajudar-me?" e ela disser "Sim", ficamos na dúvida. Mas se responder "Posso" temos a certeza de que contaremos mesmo com a ajuda.
Fazendo o paralelo com o francês, o meu pai acrescentava:
- Quando um francês diz " Oui" é mesmo "Sim", não há margem para dúvidas -. E
daí concluía que os portugueses são menos afirmativos, pouco directos.
Os portugueses rodeiam as questões, têm pudor de ir ao ponto. Não
dizem ao empregado de balcão "Quero um café" ou "Traga-me um café", mas sim "Podia trazer-me um café" ou, no máximo, "Queria um café". A forma afirmativa é substituída pela interrogativa ou pela condicional. E isto
revela uma certa timidez, para não dizer humildade.
Os exemplos não acabam. Qualquer de nós, quando pergunta as horas
a alguém que não conhece, diz qualquer coisa como "Podia dizer-me as horas?". Não diz "Diga-me as horas, por
favor". Ora, nenhum francês diria "Pouvez-vous me dire quelle heure est-il?". Diz
simplesmente "Quelle heure est-il, s'il vous plaît?"
Nessas
conversas com o meu pai, outra coisa que ele fazia era citar com freqüência o latim. E essas citações - que o meu avô paterno,
José Saraiva, também fazia amiúde -eram fascinantes porque permitiam pensar mais profundamente sobre a língua. Só aí eu percebia
donde provinham algumas palavras, o que significavam outras originalmente, como tinham evoluído (e evolução era às vezes
inesperadamente reveladora), levando-me a lamentar não ter aprendido latim no liceu.
No liceu aprendíamos as declinações (matéria que nunca dominei)
mas não aquilo que mais tarde se mostrou para mim o mais interessante: estabelecer pontes sucessivas entre o latim e o português
actual. É isso que abre na compreensão da língua um capítulo novo, porque nos permite perceber relações e subtilezas com que não
sonhávamos.
Saber a origem das palavras e perceber como se foram transformando
ao longo dos séculos permite-nos uma compreensão da língua que nada substitui.
Sobre
a ausência da aprendizagem do latim nas escolas, uma das aberrações que constatei em todos os graus de ensino foi a total
inutilidade de muitas coisas que se ensinam e a ausência de aprendizagem de outras cuja importância se me revelaria mais tarde
capital.
Nunca percebei, por exemplo, como era possível o curso de
Arquitectura não incluir, durante os seis anos obrigatórios, uma cadeira sobre a Arquitectura portuguesa.
Ou seja, os futuros arquitectos não sabiam o que os seus
antepassados tinham feito, qual fora a evolução da arquitectura portuguesa nos tempos mais remotos e mais recentes, quais eram
as tendências. Tudo isto aprendia-se - quando se aprendia - nos ateliês privados, depois de começarmos a trabalhar. Aí os mais
velhos falavam-nos de alguns profissionais carismáticos e demoliam outros. Frederico George, Fernando Távora, Keil do Amaral,
Carlos Ramos, Chorão Ramalho eram nomes que ouvíamos com reverencial atenção, a par de alguns mais novos como Álvaro Siza,
Conceição Silva, Manuel Tainha ou Vítor Figueiredo. E desprezávamos outros por não serem "modernos" ou se terem rendido ao
Regime: Raul Lino, Leonardo Castro Freire, Pardal Monteiro...
Mercê desta aprendizagem maniqueísta, só muito mais tarde consegui
separar a arquitectura da ideologia - e perceber que havia arquitectos modernistas maus e arquitectos tradicionalistas bons. Nem
tudo o que era moderno e progressista era bom - como nem tudo o que era antigo e tradicional era mau.
Voltando
à língua, é curioso verificar que a nossa forma cerimoniosa de pôr as questões ("Poderia trazer-me...", "Dizia-me as horas...", "Fazia-me o favor...") contrasta
flagrantemente com a pronúncia, que é martelada e agreste.
No tempo em que se viajava pouco - e em que os turistas
portugueses eram objeto de curiosidade no estrangeiro - acontecia ficarem a olhar para nós, perguntando-nos que língua
falávamos. E quando dizíamos que era português, as pessoas comentavam:
- Parecia uma língua de um país de Leste. Polaco ou russo.
Aí comecei a prestar mais atenção ao russo e ao polaco, e de
início não percebi as semelhanças com o "nosso" português. As pessoas não me pareciam falar mas sim ladrar. As línguas
pareciam-me rudes, denunciadoras de povos bárbaros, pouco elaborados. E de certo modo agressivos, o que não espantava: os russos
sempre tiveram fama de ser duros e implacáveis. Mas os portugueses...
Sucede que um belo dia, vendo distraidamente um filme na televisão
me pareceu que era falado numa língua de Leste. E só ao fim de alguns minutos percebei que era português. Aí compreendi a razão
de ser da confusão dos estrangeiros...
Quanto
à mensagem do telemóvel que deu origem a este arrazoado, a pessoa a quem perguntei se lhe poderia falar fora de horas deve ter
começado por escrever "Sim". Mas depois, olhando para o ecrã, deve ter achado que a resposta era dúbia. Não era suficientemente
afirmativa. E portanto não era conclusiva.
Vai daí, sentiu necessidade de acrescentar "pode". Respondendo "Sim, pode" já não havia lugar a
dúvidas ou hesitações.
A reflexão do meu pai sobre o português confirmava-se em cheio 40
anos depois. "Sim" em português significa "talvez". E isso quer dizer muito sobre o nosso modo de ser.
José António Saraiva
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