Teadoro, Teodora
Pasquale Cipro Neto
Em 1947, o grande Manuel Bandeira publicou o antológico poema
Neologismo, uma de suas tantas obras-primas. Ei-lo:
Beijo pouco, falo menos ainda.
Mas invento palavras
Que traduzem a ternura mais funda
E mais cotidiana.
Inventei, por exemplo, o verbo teadorar.
Intransitivo:
Teadoro, Teodora.
Permita-me perguntar-lhe, caro leitor, com todo o respeito do
mundo: você entendeu o poema? Captou o âmago da mensagem? Entendeu, por exemplo, por que o verbo teadorar foi grafado
numa palavra só? E entendeu por que o poeta diz que esse verbo é intransitivo?
Vamos conversar um pouco sobre isso? Vamos lá. Na escola, muitas
vezes se diz que verbo transitivo é "aquele que precisa de complemento" e que verbo intransitivo é "aquele que não precisa de
complemento". Em seguida, é comum que venham listas e listas de verbos e suas respectivas classificações: o verbo X é
isto, o verbo Y é aquilo etc.
Não é bem assim que a coisa deveria funcionar. Seria bom ver os
verbos na frase, no texto, no contexto. Em "Gostei do vinho", por exemplo, o verbo gostar é transitivo indireto e
significa julgar bom, mas em "Gostei o vinho" o verbo é transitivo direto e significa provar, experimentar.
A última construção não é comum na língua de hoje, mas aparece com alguma freqüência nos textos clássicos. Fora de contexto,
nenhum verbo é coisa alguma.
A esta altura, talvez seja interessante começar pelo começo (com
perdão pela redundância), ou seja, por explicar por que o verbo transitivo se chama transitivo e por que o intransitivo se chama
intransitivo. Que tal lembrar que as palavras transitivo, transitar, trânsito, transitório, entre
outras, são cognatas, isto é, têm raiz comum? Por trás de toda essa família está o verbo latino transire, cujo
significado é ir além de.
Se João adora Maria, por exemplo, a adoração de João passa, ou
seja, transita, sai dele, e tem Maria por alvo, ou seja, por objeto. Diz-se, então, que em "João adora Maria" o verbo adorar
é transitivo e, conseqüentemente, Maria é o alvo, o objeto dessa adoração. Não é à toa que, nesse caso, Maria funciona
sintaticamente como objeto (direto, nessa situação). Em outras palavras, Maria é o complemento, o fim do percurso da adoração
(que sai de João e transita até Maria).
Em "João dorme muito", o ato de João (dormir) não transita,
não sai dele, não tem ninguém ou nada por objeto, por alvo. Diz-se, então, que em "João dorme muito" o verbo dormir é
intransitivo.
Ao criar a palavra teadorar, nosso grande poeta incluiu
nesse verbo o objeto (o alvo) da adoração, daí uma das razões da intransitividade de teadorar. O verbo é
intransitivo porque já contém seu suposto objeto (que é o te). Fantástico, não? Não é para ter orgulho de um poeta dessa
grandiosidade?
Pois bem, por que no parágrafo anterior eu disse "uma das razões
da intransitividade"? Porque outra razão talvez seja o fato de que, sendo intransitiva, a adoração não alcança o alvo, fica
presa, contida, fechada no interior de quem a sente. A adoração existe, mas, por alguma razão, não transita, não chega ao ser
adorado. Não custa lembrar que, no começo do poema ("Beijo pouco, falo menos ainda"), o próprio poeta dá uma pista
claríssima dessa intransitividade de seus sentimentos.
Até domingo. Um forte abraço. |