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Última modificação em (mês/dia/ano/horário): 03/13/03 10:26:45

Movimento Nacional em Defesa
da Língua Portuguesa

Uma análise do Preconceito Lingüístico

Em 1/2003, Arthur Virmond de Lacerda Neto escreveu em Curitiba/PR, analisando o livro Preconceito Lingüístico:

Preconceito Lingüístico:
miséria, terrorismo e falácias

Arthur Virmond de Lacerda Neto

I   - Considerações gerais.
II  - Exemplos da miséria.
III - O terrorismo pedagógico.
IV - O decálogo da falácia.
V  - As razões do êxito.
VI - Uma interrogação

Considerações gerais - O opúsculo intitulado Preconceito Lingüístico pretende invalidar o que reputa oito mitos concernentes ao português no Brasil, e proclama como forma pior de preconceito em termos de idioma, o conjunto de prescrições de que se constitui a gramática tradicional, que, segundo o seu autor, representa um instrumento ideológico de legitimação das classes dominantes no poder.

Cuida-se de mais uma porcaria ideológica, de intuito confessadamente político, em que o autor não trata do tema como cientista em busca da verdade, porém na condição de ativista que emprega o conhecimento para desautorizar as regras do idioma em sua forma culta, em seu lugar enaltecendo o seu uso vulgar.

Segundo o livro, inexiste erro de português haja vista que todo falante da sua língua materna, por natureza usa-a corretamente, na medida em que este uso é necessariamente inteligível. O erro achar-se-ia na discrepância entre o uso e as regras da gramática que, segundo o prof. Bagno, representam o prolongamento do colonialismo português e encarnam algo obsoleto, carecedor de imediatamente dobrar-se à fala coloquial.

Ora, se a gramática inclinar-se à fala coloquial, não haverá mais regra que as pessoas devam seguir para entenderem-se dentro de um critério homogêneo, desde que cada qual tornar-se-á livre para exprimir-se a seu modo e constituir a sua gramática pessoal. Tudo vale, ensina o prof. Bagno. Logo, valem todas as simplificações, as perdas das preposições, a abolição dos plurais ("as duas máquina está parada", "veio muitas pessoa"), a confusão dos tempos verbais, as gírias, o desleixo, a lei do menor esforço, a preguiça, os modismos, os estrangeirismos.

É lindíssimo pregar-se aos oprimidos que a gramática não presta porque os oprime e que, livrando-se dela, livram-se de uma parte da sua opressão, tanto quanto é odioso convencer-se os desinstruídos de que a ignorância corresponde a um estado normal do ser humano e não a um mal por erradicar.

Exemplos da miséria - No livro em análise abundam as falsas generalizações, os primarismos, as mistificações, as irracionalidades, mesmo certos absurdos flagrantes, de que passo a mencionar alguns, colhidos ao acaso, ilustrativos da miséria intelectual porque se distingue o livro em análise:

1) O capítulo segundo, dedicado aos supostos mitos de que os brasileiros "não sabem português" e de que em Portugal apenas fala-se bem o vernáculo, pretende persuadir o leitor de que a forma brasileira da língua portuguesa equivale em qualidade à sua análoga de além-mar, ou seja, de que ela é intrinsecamente tão boa quanto aquela.

Como argumentos em favor desta tese, o livro invoca, na página 31, a preeminência territorial e demográfica do Brasil face a Portugal, bem como a sua maior relevância político-econômica, em âmbito internacional.

Ou seja, o português falado no Brasil seria comparável em qualidade ao lusitano por existir em um país maior, mais populoso, mais rico e mais poderoso do que Portugal. Aos olhos de Preconceito Lingüístico, o critério decisivo repousa no da quantidade de povo, de riqueza, de poder e de extensão, elementos apenas muito secundariamente associados à qualidade de qualquer idioma, ao mesmo tempo em que, para a aferição da qualidade do nosso português, em nada ele considera aquilo que diretamente condiciona o desempenho lingüístico de qualquer povo: o seu grau de escolaridade, de instrução e de cultura, a presença do hábito da leitura e o zelo pelo idioma, fatores todos três de longe mais intensos em Portugal do que entre nós.

Ora, se o desempenho idiomático dos brasileiros equivale ao dos portugueses, então a incultura e a cultura tornam-se sinônimas, uma multidão de indivíduos desinstruídos vale tanto quanto um culto, um povo leitor, estudado e zeloso do seu falar e do seu escrever rebaixa-se ao nível de um que não lê, estuda pouco e em nada se esmera ao falar nem ao escrever.

São os méritos da incultura, graças aos quais o Preconceito Lingüístico inverte valores e cria o preconceito contra a forma culta do idioma e desvaloriza quem a adota. Quando menos, fomenta um arrogante desprezo por ela e um sentido de parificação cultural entre realidades qualitativamente desiguais ao extremo, o que traduz a perda do sentido de realidade, a incapacidade de discernir o mérito do seu contrário e suscita um novo preconceito, contrário ao julgamento das coisas segundo a sua qualidade interior. O bom e o mau, o medíocre e o elevado, o esmerado e o negligenciado passam a equivaler-se em mérito.

A passagem que critico revela já um traço permanente no livro: a sua completa indiferença pela instrução dos brasileiros. Afinal, se saber menos é tão meritório quanto saber mais, mal não há em que quem sabe menos, continue assim.

2) Entre o português luso e o nosso há de comum apenas a escrita formal (capítulo 2), fora dela não nos entendendo os portugueses e não os entendendo nós a eles, falsidade que, corroborando a distinção falaciosa entre o nosso português e o deles, serve para legitimar todas as distorções que sofra a língua entre nós. Afinal, temos que proclamar a nossa independência lingüística, doutrina o livro, ao mesmo tempo em que as mudanças idiomáticas são fenômenos, lá diz ele, assim como a lepra e a sida ("aids") também o são, cá digo eu, vale dizer, os fenômenos lingüísticos não são positivos por inerência. Assim como as enfermidades encarnam acontecimentos negativos, que a ação humana busca evitar ou eliminar, de igual modo representa um fenômeno negativo a deterioração do idioma a que há décadas se assiste no Brasil (para a qual o combate aos tais "preconceitos lingüísticos" presta um serviço impagável), deterioração que o livro lindamente enfarpela de evolução própria do português no Brasil.

Entre o português daqui e o e Portugal mais não há mais diferença do que a de duas modalidades equivalentes no uso de um mesmo idioma, o que absolutamente não autonomiza a forma brasileira em língua própria nem a torna qualitativamente comparável à lusitana. Asserir em contrário é apenas um modo de justificarem-se todas as modificações idiomáticas, desde, claro, que provenham elas vítimas dos tais preconceitos.

3) Lê-se na página 39: "Ora, não é a língua que tem armadilhas, mas sim a gramática normativa tradicional, que as inventa precisamente para justificar sua existência e para nos convencer de que ela é indispensável" (itálico do original).
  
Corresponde a gramática normativa tradicional a um conjunto de observações e de preceitos, e não a uma pessoa. É então indevidamente que o livro a personaliza, conferindo-lhe a capacidade volitiva, exclusiva dos animais e dos seres humanos, e não dos conceitos teóricos.

Semelhante personalização faz sentido apenas se atribuída aos indivíduos em quem ela se manifesta, aos gramáticos e aos autores de livros e audiovisuais explicativos da gramática, que, segundo o "Preconceito lingüístico", seriam diabólicos fautores de sutilezas vernaculares em verdade inexistentes, cuja falsa existência impingiriam aos incautos, para justificarem perante estes o seu papel de gramáticos e de explicadores gramaticais, submetendo-os a uma dependência artificial, graças à qual produzem livros que, claro, rendem-lhes lucros.

Isto é levar a fantasia longe demais, ao ponto de perder-se todo o senso de realidade. É necessária uma temeridade intelectual perplexante para expor-se aos leitores com uma extravagância desta ordem.

Equivale isto a afirmar-se que os médicos inventaram as moléstias para justificar a sua função curativa e convencer-nos de que necessitamos deles, o que evidentemente é falso.

4) Na página 109 o livro desautoriza a censura da norma culta ao reputar errada a expressão outra alternativa pois em latim, alter significava outro. "Mas desde quando nós falamos latim no Brasil?" interroga-nos.

Desde nunca, obviamente, nem teria sido preciso que em algum momento tivéssemo-lo falado para, com base no próprio português, perceber-se o acerto da censura gramatical.
  
Com efeito, uma alternativa corresponde a uma opção entre dois elementos, à escolha que se faz de um com a exclusão do outro. Se há alternativa, pode-se eleger X em lugar de Y, ou o contrário disto.

Se alternativa significa uma dupla de elementos, outra alternativa supõe a existência de outros dois elementos entre os quais pode-se escolher. Há, portanto, duas duplas de elementos e duas escolhas a fazer-se, uma em cada par.

Ora, quando alguém desavisado da gramática emprega a expressão em análise, não se reporta a duas duplas de elementos e a duas escolhas, e sim a um terceiro elemento, que se acrescenta aos anteriores isoladamente. Logo, não há uma outra alternativa, e sim uma outra opção.

A norma culta aplicável ao caso procede e é mediante um sofisma, artifício freqüente no livro, que ele a menospreza.

5) Na página 126 encontra-se: "Em relação à língua escrita, seria pedagogicamente proveitoso substituir a noção de erro pela de tentativa de acerto" (itálicos do original).

Eis mais um caso de sofisma, em que o verossímil encobre o falso.

De fato, cumpre discernir entre tentativa de acerto e erro.

Tentativa de acerto é o ensaio, a experimentação, a prática do indivíduo que atua sob o ânimo de fazê-lo a preceito, que busca um resultado a ser confirmado ou negado mediante confronto com o ideal a que aspirou. Ao mesmo tempo em que ele almeja um resultado perfeito, há incerteza quanto à adequação do seu procedimento e à obtenção da resultância. São duvidosos os seus meios e os seus fins, aqueles na sua aptidão, estes na sua consecução, motivos porque cuida-se de uma experimentação de cuja falibilidade o seu autor acha-se cônscio.

Erro é o fracasso da atuação, o resultado incorreto ou diverso do almejado.

Tenta-se acertar quando delibera-se proceder a uma tentativa; erra-se quando a ação fracassa, quer tenha ela decorrido de uma tentativa, quer de um desempenho que se pretendia perfeito nos seus meios ou nos seus fins, ou em ambos. Qualquer tentativa pode resultar em um erro, porém nem todo erro provém de uma tentativa.

Se alguém, ao grafar certa palavra, fê-lo sob a deliberação de submeter a sua redação a prova, pela consulta a um dicionário ou a quem a conheça, terá praticado uma tentativa de acerto. Se, no entanto, este mesmo indivíduo grafar a mesma palavra sem o propósito de confrontar a sua grafia com a forma padrão, e se aquela discrepar desta, então ele não terá fracassado na sua tentativa de acerto, porquanto não terá tentado acertar: ele terá errado pura e simplesmente.

Pretender substituir a noção de erro pela de tentativa de acerto é aceitável  somente nas ocasiões em que há experimentação para posterior verificação (como nos exercícios de aprendizagem dos idiomas), fora das quais tal substituição deixa de funcionar como instrumento de aprendizado e portanto como uma forma de aprender-se a grafia correta e de evitar-se a repetição do erro, para se converter em uma desculpa fácil ao cometimento deste, produto, por sua vez, da ignorância ou da incúria, por cujas erradicações o Preconceito Lingüístico revela uma indiferença total, indiferença que também evidencia quanto ao que é decisivo e crucial na tentativa de acerto, a saber, o seu resultado.

Afinal, não basta que o indivíduo tente acertar, cumpre que ele consiga acertar e que o faça tão maximamente quanto possível. Louvar o erro embelezando-o com o título nobiliárquico que lhe confere o livro, ilude a questão fulcral e implícita: a de que é imperativo capacitar as pessoas a acertarem, e louvar o acerto, mediante a promoção perseverante e maciça da escolarização, da introdução do hábito da leitura e do prestigiamento do rigor no uso do idioma. Quem erra, fá-lo porque não conseguiu acertar, porque não o soube fazer, e não porque assim se determinou.

Ainda que o erro encarnasse uma tentativa de erro, segundo entende o Preconceito Lingüístico, uma vez praticado o erro, esgotar-se-ia a tentativa, não fazendo sentido reproduzir-se uma tentativa gorada ao invés de corrigir-se o erro, mediante a capacitação do indivíduo a um resultado positivo na oportunidade subseqüente, o que alcançar-se-á mediante a instrução dos que erram e jamais mediante a consagração dos seus erros.

Contudo e lamentavelmente, dentre os vários argumentos do livro, não há nenhum em favor da elevação do nível de instrução das pessoas, única forma de habilitá-las a acertarem a cada tentativa.

6) Na mesma página, à frase criticada no item precedente segue-se esta: "Afinal, a língua escrita é uma tentativa de analisar a língua falada" (itálico do original).

A língua escrita é uma tentativa de analisar a falada! Há portanto, duas línguas, a escrita e a falada, das quais a primeira consiste em examinar a segunda.

Que asneira, que extravagância!!!

Não, não há duas línguas, uma escrita e uma falada. Há duas formas como as dezenas de idiomas se manifestam: por escrito e oralmente, ou seja, aquilo que se tenciona exprimir, pode ser expresso por palavras pronunciadas ou lançadas em algum suporte material.

Em segundo lugar, a modalidade escrita não é uma tentativa de analisar a falada. A análise da língua falada, ou melhor, da forma oral de expressão, corresponde a uma destinação ou a um emprego que se pode conferir ao idioma, dentre um sem número de outras. Pode-se, com efeito, utilizar o idioma para ensinar, para poetar, para prosear, para filosofar, para iludir etc, e para analisar-se o uso oral que dele se faz.

Neste passo, o livro profere duas falsidades em uma só frase.

7) Na página 127 encontram-se estes dizeres: "Quanto à língua falada, fica óbvio que o rótulo de erro é aplicado a toda e qualquer manifestação lingüística... que se diferencie das regras prescritas pela gramática normativa, que se apresenta como codificação da língua culta, embora na verdade seja a codificação de um padrão idealizado, que não coincide com a verdadeira variedade culta objetiva".

Assim, tudo quanto se capitula de erro equivale, na verdade, à "codificação de um padrão idealizado, que não coincide com a verdadeira variedade culta objetiva".

Atente-se ao enunciado: "verdadeira variedade culta objetiva". Então porventura existe alguma variedade culta falsa ou subjetiva?! A variedade culta acha-se constituída nas gramáticas, de modo escrito, portanto objetivo, e verdadeiro, haja vista as gramáticas documentarem a norma culta como ela efetivamente existe e não ao contrário.

Os dois adjetivos (verdadeira e objetiva) são inteiramente dispensáveis e propiciam um exemplo de algo mau pensado e pior escrito.

Segundo o Preconceito Lingüístico, aquilo que se reputa erro encarna a "codificação de um padrão idealizado". Assim, quando alguém profere déi (ao invés de dez), tal expressão codifica um padrão idealizado.

Se se cuida de um padrão idealizado, é porque na sua concepção interveio a vontade humana de criar um ideal, a deliberação consciente de alguém ou de um grupo de pessoas, de falar daquele modo.

Ora, quem seria o criador deste padrão? Tal indagação o livro, cautelosamente, abstém-se de formular, pois a resposta a ela é esta: ninguém. Não há criador nenhum de padrão idealizado pois nada se idealizou, nada se concebeu no mundo das idéias.

Ao contrário, foi por ausência de reflexão, por incultura, por negligência, por comodismo, por imitação que aquela variedade surgiu e propagou-se, sem que os seus usuários tivessem noção nem intenção de codificarem patavina e de idealizarem fosse o que fosse.

Não posso atinar em como o padrão idealizado que equivale ao erro, seja codificado e comparável à codificação representada pela gramática. Esta sim, é uma codificação, pois compreende um acervo escrito de observações, de distinções e de prescrições organizadas pela inteligência humana. Há codificação porque há método, organização e redação, precisamente o que falta nos erros, que se vão formando ao sabor da negligência e da ignorância de uns e da imitação dos demais.

Para além disto, é contraditória a expressão "codificação de padrão idealizado": se algo acha-se em estado ideal, ainda não se constituiu na realidade, ainda é pura concepção mental, vir a ser. Ora, um código já existe, já é, já se constituiu materialmente. Logo, é impossível uma "codificação de padrão idealizado": ou trata-se de uma codificação e não há idealização, ou há idealização e não se trata de uma codificação. Ambos simultaneamente é que não pode ser, a exemplo do quadrado redondo e do morto vivo.

Diante disto, o mínimo que se pode concluir, é que Preconceito Lingüístico emprega pessimamente os vocábulos e concebe ainda mais pessimamente os conceitos com que argumenta.

8) Na página 124 depara o leitor a afirmação de que "a língua materna... é adquirida pela criança desde o útero, é absorvida junto com o leite materno". Atenção: o texto é mesmo assim: a língua é adquirida desde o útero e absorvida juntamente com o leite materno.

Confesso que li e reli tal passagem, que de começo percebi como seria natural, mesmo inevitável que a percebesse, à maneira de metáfora.

Ao considerá-la novamente, e com imensa perplexidade, conclui que Preconceito Lingüístico não empregou, neste trecho, nenhuma figura de linguagem e sim falou em sentido próprio.

Assim, na fase uterina de formação do embrião e do feto, esta criatura, que sequer falar sabe, já lá anda a aprender o idioma da sua genitora! Recém-nascido, analfabeto ainda, ela já adquiriu, no caso dos brasileiros, a língua portuguesa! Isto é que é prodígio!!! Durante a sua infância, ao sugar o seio da mãe, juntamente com o alimento líquido, a criança bebe o idioma!

Não se trata de metáforas: ambas asserções seguem a em que o autor nega ao idioma o caráter de "saber secundário, obtido por meio de treinamento, prática e memorização". Não se aprende, pois, o idioma por treinamento da pronúncia das palavras, nem pela prática dos tempos verbais nas diferentes pessoas, nem pela memorização da acepção das palavras e das regras gramaticais. Ele aprende-se por via oral, como bebida que é, e por via umbilical, como o que não sei. E tanto assim é, que o parágrafo prossegue com a prova do enunciado: "Por isso qualquer criança entre os 3 e os 4 anos de idade (se não menos) já domina plenamente a gramática da sua língua". Pudera! Bebeu-a desde recém-nascido e absorveu-a antes de nascer!

É inacreditável, é escandaloso, é mesmo monstruoso que uma asneira desta gravidade se encontre lançada, palavra por palavra, em um livro de que já se venderam cinqüenta mil exemplares! A que ponto chegamos!!!!

9) Na sua página 116, Preconceito Lingüístico preconiza aos professores lançarem dúvidas na mente dos seus alunos quanto à validade da gramática. Por que os estudantes iriam desperdiçar tempo em aprender e aplicar regras que os próprios docentes reputam duvidosas e verberam como indesejáveis? Por que então aulas de português? Claro, nas aulas ensina-se o que não se sabe e deve-se saber; se o saber gramatical é preconceituoso, não se compreende que ele seja objeto de ensino, caso em que o melhor é pura e simplesmente não se ensinar gramática e, de conseqüência, não se ensinar nada em termos de Língua Portuguesa, pois não se haveria de, em lugar da gramática, inculcar as formas coloquiais de uso idiomático, ou seja, aquilo que os alunos já sabem por conhecimento próprio.

Se alguém suspeitar de que com isto abriu-se o caminho à anarquia e aos guetos lingüísticos, acertou em cheio: o professor Bagno confessa preferir a barbárie do cada um por si, ao regramento da norma culta.

Semelhante predileção é de uma gravidade enorme e sem precedentes: ela despreza os padrões tradicionais de uso lingüístico, cuja constituição foi obra lenta de séculos e de gerações, graças aos quais, havendo homogeneidade de formas de expressão, há possibilidade de pronta compreensão.

A difundir-se tal preferência, cada qual que falará como quiser, sobretudo como puder, e os outros que entendam o que puderem e como puderem: o falante (ou escrevente) estará no exercício dos seus direitos lingüísticos, conceito encontradiço no opúsculo que analiso. Regressaremos à Idade da Pedra, em que, se havia já dominantes, dominados, preconceituosos e suas vítimas, ao menos - que consolo!- não havia gramáticas!!

Por isto e por incontáveis outras passagens, quem ler o livro com algum senso crítico, atina logo no quão pouco inteligente ele é. No entanto, com todo o seu primarismo, vem conhecendo um êxito estrondoso, nas suas nove, senão mais, edições, o que decorrerá, porventura, do prestígio de que gozam nos meios universitários (e não só) as doutrinas de observância marxista, ao ponto de haverem reduzido a capacidade crítica dos seus fiéis, na subserviência intelectual que os torna receptivos ao que de mais refutável possa haver.

Outro dos livros do mesmo escritor, Dramática da língua portuguesa, ele o redatou em "tom marcadamente engajado, militante mesmo", propondo um novo senso comum lingüístico, que rompa com a ordem estabelecida e consagre uma nova gramática, a dos brasileiros, mais exatamente, a dos brasileiros da classe média urbana e supostamente culta do Brasil atual, a ser adotada como novo padrão.

A exemplo do precedente, não é livro de ciência: é um panfleto político, que leva a sério somente quem quiser e em cujo final propõe-se identificar a desprezível gramática tradicional com a colonização portuguesa no Brasil, fomentando-se abertamente o ressentimento do povo brasileiro contra o seu próprio passado e contra os portugueses. Claro: se a gramática é má e foi-nos impingida pelos portugueses, são eles culpados por este nosso mal e portanto é justo que os detestemos.

O mal desta identificação é duplo: ela induz os brasileiros contra os portugueses, portanto fortalece o sentimento malsão do antilusitanismo ou preconceito hostil a Portugal e à sua gente, como desperta nos brasileiros um certo constrangimento quanto ao nosso próprio passado, um sentimento de vergonha de nossas origens, apto somente a mais debilitar o nosso patriotismo, em regra já tão esbatido.

Assim, a pretexto de nacionalismo, de um nacionalismo infantil e antigramatiqueiro, e no intuito de remover preconceitos, Preconceito Lingüístico promove o ranço de um povo contra outro e o ressentimento histórico do brasileiro, causa imediata do nosso tão encontradiço complexo de inferioridade face ao estrangeiro, origem, por sua vez, da admiração tola de muitos dos nossos patrícios pelos Estados Unidos da América, patrícios que, embora incapazes de redigir uma frase com exatidão e beleza em vernáculo, não poupam esforços por adquirir um inglês gramatical.

O terrorismo pedagógico - Duas passagens de Preconceito Lingüístico revestem-se de natureza prática, sugerindo atitudes a adotar-se nas escolas, no âmbito do ensino da Língua Portuguesa. Acha-se, uma, nas páginas 138 e 139, e nas 142 a 145 a outra.

A primeira corresponde à parte final do capítulo intitulado "A paranóia ortográfica", com cujo início (página 131) relaciona-se. Para que o leitor compreenda a vinculação entre o princípio e o final do referido capítulo, reproduzo-os:

"A atitude tradicional do professor de português - eis o início -, ao receber um texto produzido por um aluno, é procurar imediatamente os erros, direcionar toda a sua atenção para a localização e erradicação do que está incorreto. É uma preocupação quase exclusiva com a forma, pouco importando o que haja ali de conteúdo. É sobretudo aquilo que chamo de paranóia ortográfica" etc.

Ao recebermos, lê-se no final, um texto escrito por alguém (ou ao ouvir alguém falar), vamos procurar ver, antes de tudo, o que ele/ela está querendo comunicar, para só depois nos preocuparmos com os detalhes de como ele/ela está se comunicando. Vamos fazer a nós mesmos as seguintes perguntas:

- Esse texto (ou esse discurso) é coerente?
- Traz idéias originais?
- Ofende algum princípio ético?
- É preconceituoso?
- Reproduz idéias autoritárias ou intolerantes?
- Mostra um espírito crítico e/ou criativo?
- Demonstra um senso estético?
- Comunica que sentimentos?
- Ensina-me alguma coisa?
- Desperta minhas emoções? Quais?
- ...

E assim por diante. Isso é que é educar: dar voz ao outro, reconhecer seu direito à palavra, encorajá-lo a manifestar-se... Sem isso, não é de admirar que a atividade de redação seja tão problemática na escola.

Eu confesso que sinto muito maior prazer ao ler (ou ouvir) um texto cheio de erros de português - mas com idéias originais, inovadoras, coerentes, bem expressas -, um texto isento de preconceitos e de idéias rançosas, do que ao ler um texto com todas as vírgulas no lugar, com todas as regências cultas respeitadas, todas as concordâncias verbais e nominais, mas repleto de intolerância, de deboche, de sarcasmo, de concepções degradantes e por aí afora.

Se o ouvinte ou o leitor ativerem-se exclusiva ou preferentemente ao teor expresso pelo que ouviram ou leram, admito que aquele rol de interrogações sirva como orientação na análise do conteúdo respectivo, quer se cure, por exemplo, de uma redação escolar, ou, sobretudo, de um manifesto político, de um ensaio filosófico, de uma obra doutrinária.

Em se tratando, contudo, de um texto (ou de uma fala) produzido por um aluno como exercício em uma aula de Língua Portuguesa, nada mais natural do que o professor ater-se prioritariamente à forma e apenas subalternamente ao teor, ou mesmo desconsiderar a este. Ele atuará como fiscal da forma e como simples observador do conteúdo, que fiscalizará, no máximo, para verificar em que medida ele correspondeu ao tema que prescreveu, como objeto do discurso. Afinal, a missão deste professor cifra-se em capacitar os seus alunos a exprimirem-se com exatidão, propriedade e beleza.

Não lhe pertence, não lhe pode legitimamente pertencer, examinar o texto nos termos em que o autor o preceitua, ou seja, como secundariamente fiscal da forma e primordialmente como do pensamento.

Se diante de uma produção escrita ou falada, deve-se averiguar se ela ofende algum princípio ético, se porta preconceitos, se reproduz idéias autoritárias etc., o referencial da eticidade, do preconceito, do autoritarismo etc., encarna-se no leitor ou no ouvinte (ainda que ele julgue o texto segundo padrões alheios), que assim, avalia-lo-á positiva ou negativamente, consoante julgue-o autoritário ou tolerante, preconceituoso ou não, conforme à moral vigente ou avesso a ela, em função da sua experiência de vida, dos seus preconceitos, da sua religião, da sua ideologia, dos seus valores, do seu credo político, dos seus caprichos, em uma palavra, da sua sensibilidade pessoal.

Reconheço de boa vontade esta liberdade de juízo e a capacidade fiscalizatória que a fundamenta, em se tratando de um leitor (ou ouvinte) qualquer face a um escritor ou falante qualquer.

Não a reconheço absolutamente, em contrapartida, em um professor de português perante um seu aluno. Entre eles, o relacionamento é de índole profissional, é de ensino e de aprendizado, de transmissão de conhecimentos pertinentes ao uso do idioma, às suas formas, à sua estrutura etc., por modo a o professor habilitar o aluno a transmitir capazmente tudo quanto pretenda, independentemente do conteúdo pretendido.

Não corresponde ao professor fiscalizar se e em que medida os seus alunos transgrediram a ética, aderiram a preconceitos, perfilharam idéias autoritárias etc.: enquanto pessoa, goza o aluno da liberdade de adotar os princípios, os preconceitos e as idéias que a sua consciência lhe ditar, goza de liberdade plena de pensamento, de que ninguém, e portanto de que nenhum professor seu, pode erigir-se em fiscal e controlador. Menos ainda pertence ao docente fiscalizá-los em detrimento do seu papel institucional, relativo à forma e jamais ao conteúdo.

Suponha-se que um aluno, em forma corretíssima, haja redatado um panfleto racista: mais não deve o professor do que avaliar-lhe positivamente a produção, por mais que ela, como cidadão, lhe repugne. Da mesma forma, se este discente produzir um manifesto pela fraternidade universal, com má ortografia e nenhuma concordância, mais não deverá o lente do que avaliar-lhe negativamente o texto, ainda que ele, como cidadão, o encante.

Fora destas condições, a escola deixará de sediar o aprendizado, para converter-se no local por excelência do patrulhamento, da subserviência intelectual, do autoritarismo mental de quem pode mais sobre quem pode menos, do senhor da nota como detentor da verdade e de direitos sobre a consciência alheia.

Submetendo os professores os textos dos seus instruendos ao questionário sugerido em Preconceito Lingüístico, eles não os estariam educando, nem lhes dando voz, nem encorajando-os a manifestarem-se, tampouco lhes reconhecendo o direito à palavra: estariam a instituir o escolarmente correto, o terrorismo pedagógico, a manipulação das mentes pela necessidade das boas notas.

O decálogo da falácia - O segundo trecho de Preconceito Lingüístico dotado de natureza prática, sob a forma de preceitos, serve de fecho ao opúsculo e intitula-se "Dez cisões para um ensino de língua não (ou menos) preconceituoso)". Consideremo-los um a um:

1) Enuncia-se desta forma o preceito inicial: Conscientizar-se de que todo falante nativo de uma língua é um usuário competente dessa língua, por isso ele SABE essa língua. Entre os 3 e 4 anos de idade, uma criança já domina integralmente a gramática de sua língua. Sendo assim, e prossegue com o preceito seguinte.

Primário em seus raciocínios, o livro neste passo é-o também na sua redação. É como se ele se dirigisse a um público pouco apto a seguir raciocínios mais articulados e, de conseqüência, capaz de inteligir apenas o que, sendo escassamente inteligente, deve ser pobremente redigido. Fora eu o autor, teria concebido a frase inicial nestes termos: "Conscientizar-se de que todo falante nativo de uma língua é um seu usuário competente, motivo porque ele sabe-a".

Redigida com mais ou menos beleza, tal assertiva padece de falsidade.

Com efeito, os falantes nativos de um idioma não encarnam, por definição, seus usuários competentes. Ao contrário, são pessoas que exprimem-se por meio dela consoante o grau em que a conhecem, na medida em que empregam tal conhecimento e em que esforçam-se por usá-lo competentemente.

Afinal, nem todos empenham-se em adquirir os recursos e possibilidades expressivas que lhes oferece o seu idioma, nem todos esforçam-se por aplicá-los e portanto, nem todos sabem o seu idioma e nem todos, aliás, bem poucos, são seus usuários competentes.

Os falantes nativos de um idioma tornar-se-ão seus usuários competentes caso lhe hajam interiorizado a mecânica e adquirido vocabulário que lhes permita uma comunicação rigorosa e exata, se dominarem os recursos de expressão que ele oferece, se alcançarem externar-se com rigor de fundo e com beleza de forma.

Nada disto se adquire natural e espontaneamente. Ao contrário, o uso proficiente de um idioma abrolha de um esforço inteligente de seu aprendizado ao longo de algum tempo e do emprego, seja consciente, seja automático, do quanto se adquiriu.

Ninguém nasce já sabedor do seu idioma nem o sabe espontaneamente. O que se sabe espontaneamente, é comunicar-se no seu idioma, condicionado pelo quanto dele se domina e pelo quanto se emprega deste domínio. Não há competência idiomática pura e simples, livre de qualquer condição: ela depende do aprendizado e da aplicação do aprendido; longe de ser natural ao falante, resulta ela de um seu esforço cultural. Principia o decálogo, destarte, com uma mentira.

A asserção de que entre os 3 e os 4 anos de idade, uma criança já domina integralmente a gramática da sua língua é absolutamente escandalosa, de uma absurdidez indisfarçável. Custa-me acreditar que tenha sido formulada em tom afirmativo e exposta ao público à guisa de verdade.

Um infante de 3 ou 4 anos serve-se do idioma por mimese, ele exprime-se imitando o que ouve, na medida em que compreende o que assimila e fala como lhe falam, na medida em que logra articular as palavras, associar os significantes aos significados, relacionar os conceitos abstratos ao que lhes corresponde em concreto, fenômenos que, se vão se constituindo ao longo do desenvolvimento da criança, estão longe, muito longe, de, naquela tenra idade, permitirem-lhe dominar, e dominar integralmente a gramática. Qual de nós, aos 3 ou 4 anos de idade, conhecia já, e as dominava, a sintaxe, a fonética, a estilística, a morfologia e a semântica? Mesmo abundantes adultos não as conhecem e ainda menos as dominam.

A primeira cisão contém, portanto, uma falsidade e um absurdo.

2) Por sua vez, prescreve a segunda cisão "aceitar a idéia de que não existe erro de português. Existem diferenças de uso ou alternativas de uso em relação à regra única proposta pela gramática normativa". (itálicos do original).

A inexistir erro de português, será necessariamente correta toda e qualquer forma como se use o idioma e, desta arte, cada qual será livre para empregá-lo a seu talante, porquanto o seu uso pessoal, por mais destoante que seja do gramatical ou do que faz o seu semelhante, corresponderá a uma forma correta. Será, por definição, correta qualquer conjugação verbal, qualquer correlação entre significante e significado, qualquer concordância, qualquer utilização das preposições, qualquer sistema de pontuação.

Se, por exemplo, aprouver-me utilizar o futuro como pretérito e parênteses no papel de exclamações, tratar-se-á, por definição, de um emprego correto, por mais embaraços que abrolhe aos meus interlocutores. Errado é que não será; afinal, não há erro de português. Se esta minha gramática individual destoar da oficial ou da alheia, pior para estas: preconceitos, para cima de mim é que não!!!

Cada grupo ou indivíduo tornar-se-á livre para conceber o seu emprego particular de idioma, pelo que poderão constituir-se tantos usos quantos usuários, todos, claro, igualmente corretos uns face aos outros, enquanto alternativas ou diferenças relativamente à norma gramatical, cuja função radica, precisamente, na de uniformizar o uso em favor da compreensão, da parte de todos, daquilo que cada qual usa.

Enquanto, segundo o opúsculo que examino, a gramática normativa gera o preconceito, embora também viabilize a compreensão recíproca dos indivíduos, a cisão em comento, libertando-nos do preconceito, introduz-nos o caos. De Brasil, seremos Babel...

Em matéria de língua portanto, vale tudo, aliás, retifica o mesmo livro (na página 129), "tudo vale alguma coisa", mesmo que aquilo que vale, valha estritamente para algum ou alguns indivíduos, por falta de haverem assimilado o que pode e deve valer para todos.

Ainda que se interpretasse a afirmação de que "não existe erro de português" como "não existe erro de comunicação", ela conteria uma falseza.

Com efeito, é da experiência comum que nem toda comunicação se realiza com perfeição, transmitindo verdadeiramente o que o seu emissor tencionava. Quanto mais pobre o seu vocabulário, ou o do receptor, quanto mais freqüente a catacrese, quanto mais localizada no tempo e no espaço a terminologia, quanto menos homogênea a ordem idiomática, com tanto maior probabilidade e  gravidade verificar-se-ão os equívocos de comunicação, as ambigüidades, as dúvidas, as obscuridades, a desarmonia entre o que se tencionava transmitir e o percebido pelo destinatário.

Tanto maior será o risco de erro de comunicação, quanto maior a margem do erro de português, ou seja, a diferença ou a variação face à gramática normativa.

3) O terceiro ditame sugerido pelo livro traduz-se em "não confundir erro de português (que, afinal, não existe) com simples erro de ortografia" (itálicos do original). A ortografia integra o português e o lapso ortográfico representa uma modalidade de erro de português, dentre outras, como os de conjugação, de regência etc. Erro de português e erro de ortografia relacionam-se, respectivamente, como gênero e espécie, todo e parte, continente e conteúdo.

Se inexiste o primeiro (consoante a segunda “cisão”), dentro de que lógica não se deve confundi-lo com o segundo? Pois, de duas, uma: ou o erro de português inexiste e a confusão com o de ortografia é falsa, existindo apenas o segundo, caso em que é correta a cisão sob análise, ou a confusão é verdadeira e o erro de português existe, compreendendo, entre outras formas, o de ortografia, caso em que a terceira cisão contradiz a que a precede.

4) A quarta cisão apresenta-se formulada assim: "Reconhecer que tudo o que a Gramática Tradicional chama de erro é na verdade um fenômeno que tem uma explicação perfeitamente demonstrável. Se milhões de pessoas (cultas inclusive) estão optando por um uso que difere da regra prescrita nas gramáticas normativas é porque há alguma regra nova sobrepondo-se à antiga. Assim, o problema está com a regra tradicional, e não com as pessoas, que são falantes nativos e perfeitamente competentes de sua língua. Nada é por acaso" (itálico do original). Tudo quanto se observa no mundo físico e social que não sejam atos humanos, são fenômenos e como tais, passíveis de uma explicação científica. Explicá-los, contudo, não equivale a justificá-los e muito menos, a fundamentar a passividade humana perante eles.

São as moléstias fenômenos perfeitamente explicáveis: devem-se elas a agentes patogênicos, que os médicos procuram erradicar ao se apoderarem de um organismo. Diante do fenômeno, o ser humano pode e mesmo deve intervir, seja para eliminá-lo, seja para evitar-lhe a reprodução.

Se milhões de pessoas adotam um uso diverso do prescrito pela gramática, tal não se deve a uma "nova regra sobrepondo-se à antiga", nem a que o problema esteja "com a regra tradicional". Esta multidão não está optando por novas formas e adotando regras inovadoras; ela está pura e simplesmente negligenciando as que já existem.

Estes milhões de brasileiros não deliberaram deixar de atender à norma para, em seu lugar, regerem-se por uma outra. Não há substituição consciente do antigo pelo novo, o que suporia consciência de ambas. O que há, isto sim, é o desuso da regra, em função da sua ignorância e do desleixo da parte dos que, conhecendo-a, negligenciam-na.

Estes milhões de brasileiros não andam a optar por nada, eles falam como podem, limitados pelo seu analfabetismo, pela sua insuficiente escolaridade e pela ausência do hábito da leitura, vale dizer, pela nenhuma ou escassa interiorização das regras. E ainda pelo servilismo com que os sabedores das regras imitam os que as ignoram, em uma demonstração indigna do ser humano, de preguiça, de incúria, de render-se ao menor esforço, do exemplo que toma o estudado do que não estudou, ao invés de lho dar.

Estes milhões de brasileiros são os excluídos da gramática, são milhões de sub-letrados, vítimas do descaso dos governantes pela instrução popular. E quando não são os excluídos, são os que, tendo tido acesso ao aprendizado da gramática, desdenham de usá-la, cedendo às formas resultantes da ignorância. Rebaixam-se do seu conhecimento ao desconhecimento ambiente, o que reputo particularmente degradante e vergonhoso.

Quando observo a celeridade com que, nos últimos anos, as camadas urbanas médias, mesmo os professores, passaram a desusar os plurais e as concordâncias ("as roupa foi lavado"), pondero que tornamo-nos um povo inferiorizado, que se aviltou ao invés de se elevar. Não devido apenas aos plurais e às concordâncias em si, cujo desuso indica ignorância e negligência, contudo devido também ao fenômeno de que resulta esta negligência: em lugar de as camadas dotadas de saber empregarem-no e o partilharem com as que não lhe acederam, propiciando às massas um exemplo positivo, renunciaram coletivamente a esta função educadora (admiravelmente exposta por Ortega y Gasset em España invertebrada).

Com isto, o saber dos que o possuem redunda em inutilidade individual e social. Sobre quem freqüentou boas escolas e durante anos a fio estudou a Língua Portuguesa, pesa a obrigação, perante si próprio e perante a coletividade, de empregar o quanto adquiriu. A ausência deste senso de dever indica, por sua vez, a perda do sentido de responsabilidade social, neste particular ao menos.

O problema não radica, de conseqüência, na gramática tradicional, porém no povo que não a assimilou ou que, tendo-a assimilado, a negligencia. O fenômeno é o da ignorância que se revela, não o da gramática que se arcaiza. A solução não pode consistir em adaptar-se esta às formas coloquiais, porém sim em educar-se maciça e urgentemente as massas populares, incluindo-as na regra, ao invés de consagrar os efeitos da exclusão. Há que remediar o mal e não lhe perpetuar os sintomas, entendimento ausente em Preconceito Lingüístico, que não o formula sequer para o profligar, em uma renovada demonstração da sua apatia perante o nível de instrução das massas no Brasil, das quais tenciona remover os supostos preconceitos que as vitimam, porém não a incultura que as vitima ainda mais.

5) Prescreve a quinta cisão "conscientizar-se de que toda língua muda e varia. O que hoje é visto como certo já foi erro no passado. O que hoje é considerado erro pode vir a ser perfeitamente aceito como certo no futuro da língua", o que sendo inteiramente exato, não equivale a que toda mudança e toda variação sejam aceitáveis e devam ser admitidas sem mais critério do que a conscientização enunciada.

Se a mudança e a variação decorrem, como no caso brasileiro, do analfabetismo, da exígua escolarização, do desapego ao livro, da incúria, vale dizer, dos fatores evidentemente negativos que são a exclusão cultural e a negligência dos incluídos, então incorporar as alterações corresponde a consagrar os frutos da ignorância, a nivelar o idioma por baixo, a degradá-lo, a retroceder. Por isto é falacioso pensar-se, como pensa o autor de Preconceito Lingüístico, que falam os brasileiros tão bem quanto os portugueses, cada qual a sua modalidade de uso idiomático.

Não: os brasileiros falam mal o idioma porque o desconhecem e quando o conhecem, negligenciam-no; os portugueses falam-no bem porque o conhecem e porque aplicam o conhecimento respectivo.

6) Enuncia-se a sexta proposição em "dar-se conta de que a língua portuguesa não vai nem bem, nem mal. Ela simplesmente VAI, isto é, segue seu rumo". É o mesmo que lançar-se uma embarcação ao mar, desprovida de bússola e de carta de marear e quando ela naufragasse, exclamar-se, com inteira resignação: "Ela não foi nem bem, nem mal. Ela simplesmente foi, isto é, seguiu o seu rumo".

Que o vernáculo segue o seu rumo, é verdadeiro. O que não é absolutamente verdadeiro, é que as suas modificações sejam axiologicamente neutras ou indiferentes; que o ir, seja ir simplesmente, sem mais qualificativos, que o ir bem e o ir mal equivalham-se.

Aceitar o ditame em tela exige a mais cabal indiferença ética, um amoralismo completo, a indiferenciação entre o desejável e o indesejável, entre o louvável e o censurável.

A língua portuguesa vai, sem dúvida. Ela vai mal, muito mal para que se possa assistir sem preocupação, sem alarme, sem angústia ao espetáculo grotesco das simplificações sucessivas que vem sofrendo, à multiplicação das gírias que substituem a cada momento um vocabulário cada vez mais restrito, aos americanismos que substituem os vernacularismos, ao empobrecimento da capacidade de expressão das pessoas, à redação inepta dos advogados mais jovens, aos universitários sub-letrados, à pecha de arrogância e de preciosismo irrogada a quem, na academia, busca alguma beleza estética. E ainda à preguiça de ler, de consultar o dicionário, de construir as frases fora da mediocridade ambiente.

A que ponto de miséria chegamos!

Em seu amoralismo, a proposição de número 6 é socialmente hedionda: ao obscurecer o senso de qualidade, que permite distinguir o bom do mau, e ao conduzir à passividade diante da calamidade social que se traduz na incultura das massas, ela concorre para com a manutenção desta realidade, perpetuando a exclusão cultural ao protagonizar a resignação perante as suas manifestações.

7) Recomenda o enunciado subseqüente "respeitar a variedade lingüística de toda e qualquer pessoa pois isso equivale a respeitar a integridade física e moral dessa pessoa". Esta "cisão", que se compagina com a segunda, segundo a qual inexiste erro de português, vai mal redatada, porquanto repete o sujeito ao invés empregar o pronome que deveria tê-lo substituído, a evitar a prolixidade  da frase que, assim, acrescentar-se-ia em elegância. Há que, lá diz o sétimo mandamento, respeitar-se a variedade idiomática de qualquer pessoa enquanto uso, correto por inerência, da língua.

Concordo com a proposição, se por variedade lingüística entender-se um desempenho idiomático equivalente a outro ou a outros, desde que todos igualmente fiéis ao seu código normativo, em uma palavra, à sua gramática, como, por exemplo, as construções "o cara foi em cana" e "o indivíduo sofreu prisão" (não obstante o caráter vulgar da primeira, que pessoalmente evito) ou "parada de ônibus" e "paragem do auto-carro", correntes, a primeira, no Brasil, e a segunda além-mar.

Não reputo, contudo, respeitável nenhuma variedade se por este substantivo entender-se uma modalidade de enunciação que aberre da norma gramatical, que sobre ela tome licenças.

Respeitar, na acepção em que o enunciado utiliza o verbo, corresponde a ter por boa, a concordar com, o que se harmoniza com o indiferentismo ético implícito na sexta cisão. Respeitar-se as variedades lingüísticas equivale, aí, a aceitar-se passivamente e sem nenhum critério, qualquer formulação idiomática, por mais avessa que seja a qualquer norma gramaticalmente consagrada. Afinal, a variedade a respeitar é a de "toda e qualquer pessoa", o que torna toda e qualquer pessoa senhora do idioma e livre para conceber uma sua gramática pessoal.

Desrespeitar  as variedades individuais, a contrario, conduziria à imposição do preconceito de quem adota certa variedade, sobre os adeptos de outra. Portanto, tudo vale e vale tudo, segundo o próprio livro afirma-o.

Que o respeito à variedade lingüística alheia possa reputar-se uma expressão do respeito à integridade espiritual do indivíduo, é concebível. Porém não consigo atinar em que tal respeito importe ainda, como pretende o postulado sob análise, respeito à integridade física do ser humano, à sua incolumidade material.

Discordar de alguém, menoscabar-lhe o falar, desprezar-lhe o desempenho lingüístico, não lhe afeta absolutamente em nada o corpo, a mobilidade dos seus membros, o funcionamento dos seus sentidos, a sua continuidade epidérmica.

Por mais que me esforce, não atino em que o desprezo por uma variedade expressiva comprometa a perfeição dos organismos humanos, a não ser, claro, que se pretenda estender bastante longe (longe demais) os efeitos psicossomáticos das emoções.

Trata-se de uma frase de efeito, quiçá bombástica, porém ridícula e tola.

8) A cisão de número 8 deve ser entendida como um exagero que lhe retira veracidade, ou em jeito de metáfora generosa de livro redigido por um lingüista, que não advertiu no entanto o leitor da imagem utilizada com liberdade de poeta inspirado.

Com efeito, segundo ela, a língua "nos constitui enquanto seres humanos. Nós somos a língua que falamos", "ela molda nosso modo de ver o mundo".

As línguas não nos constituem como seres humanos, nem materialmente, pois somos constituídos de água, sais minerais, carbono etc., nem espiritualmente. Ao contrário, somos nós que as constituímos, como produto da nossa inteligência, da nossa vida em coletividade, da nossa educação.

Tampouco somos a língua que falamos, já metaforicamente, já em sentido próprio. Não o somos propriamente dito pois somos organismos animais e não agrupamentos de advérbios, de regras de pontuação etc. Basta ser-se dotado de uma capacidade intelectual menos do que primária para entendê-lo, motivo porque recuso-me a estender-me neste particular, mesmo porque se somos as línguas que falamos, então os mudos não seriam, ou seja, seriam o que não é, caso notável, seja na lingüística, seja na física.

Não somos a língua que falamos em sentido figurado pois não é dela que provém a qualidade humana de cada um de nós, o nosso conteúdo individual, que decorre dos valores que assimilamos, da religião que professamos, das experiências de vida porque passamos, do ambiente em que vivemos, da nossa herança genética.

Entre um indivíduo de fala russa e um de fala esquimó não há humanidades distintas por força dos seus diferentes sistemas de comunicação. Haverá porventura sistemas diferentes de comunicação em decorrência de diversos conteúdos humanos presentes neles. Assim, não somos a língua que falamos: ela é conforme somos.

Se fôssemos a língua que falamos, então um russo cambiaria de conteúdo, a sua percepção de mundo, a sua hierarquia de valores, as suas convicções etc., ao adotar, por exemplo, o idioma português. Ora, evidentemente, tal não se passa: o russo conserva-se tal e qual já era enquanto exprimia-se em russo apenas. Ao adquirir o português, ele terá acrescido às suas possibilidades de expressão e de aquisição de conhecimentos, um novo meio, sem passar a ser algo diverso do que era devido ao fato em si desta aquisição.

Encerra o mandamento em questão outra mistificação tola.

9) Da oitava afirmação resulta a de que "o professor de português é professor de tudo", o que também consigo perceber apenas à guisa de exacerbação expressiva ou como uma metáfora, aliás bem dispensável.

O lente de português, a exemplo de qualquer professor, ocupa-se da transmissão de uma certa espécie, perfeitamente delimitada, de conhecimentos. Ele ocupa-se de um determinado setor do conhecimento humano, ele encarna um especialista, e não um generalista.

Admito que o lente de vernáculo (ou de qualquer outra disciplina) possa enriquecer as suas aulas relacionando-lhes o conteúdo próprio com temas afins ou mesmo alheios a ele, que por algum modo as ilustrem. Desta forma, ele poderá, por exemplo, referir-se às escolas literárias, ao um novo dicionário, à aliteracia, à realidade social do país, aos efeitos culturais da preponderância de certo país etc.

Nenhuma destas achegas eventuais transforma-lo-á em um professor de tudo. Ao inverso, ele conservará a condição que lhe pertence por inerência de propiciador de conhecimentos respectivos ao idioma, sob risco de rapidamente degenerar-se em um profissional de má qualidade, que apenas escassamente cumpre o seu papel, fingindo que leciona para, em lugar disto, fazer-se de sociólogo, de filósofo, de historiador, senão mesmo de inculcador de ideologias.

Afinal, o advérbio tudo enseja o introduzir-se na aula de português qualquer conteúdo, inclusivamente os voltados ao doutrinamento religioso, político e filosófico, a propósito de exprimirem o entendimento do lente a respeito de tudo.

O professor de português não é professor de tudo, porém de português,
condição na qual deve esforçar-se por bem desempenhar a sua missão, ao invés de a desfigurar com uma pretendida polivalência.

10) Por fim, a décima afirmação consiste em que "ensinar bem é ensinar para o bem. Ensinar para o bem significa respeitar o conhecimento intuitivo do aluno, valorizar o que ele já sabe do mundo, da vida, reconhecer na língua que ele fala a sua própria identidade com ser humano. Ensinar para o bem é acrescentar e não suprimir, é elevar e não rebaixar a auto-estima do indivíduo. Somente assim, no início de cada ano letivo este indivíduo poderá comemorar a volta às aulas, em vez de lamentar a volta às jaulas!".

Ensinar bem é ensinar para o bem: jogo de palavras fracassado porque conduz a uma identidade falsa entre a proficiência docente e o conteúdo desta docência, a uma confusão, aliás grosseira, entre como se ensina e o que se ensina.

Ensinar bem corresponde a transmitir clara e compreensivelmente dados conhecimentos, por modo a propiciar-se ao destinatário desta transmissão, a pronta assimilação do conhecimento e o seu útil emprego, independentemente de se o que se ensina fomenta o bem ou promove o mal.

Aceito que no ensinar para o bem inclua-se respeitar os conhecimentos intuitivos do mundo e da vida que possua o aluno, reconhecer na língua que ele fala a sua própria identidade pessoal, acrescentar ao invés de suprimir, alçar-lhe a auto-estima em lugar de lha deprimir.

Indicando tais recomendações que o ensino deve enricar o aluno em sua qualidade humana, penso que qualquer professor endossá-las-ia, desde, contudo, fora do decálogo de que representam o fecho. E isto porque tal decálogo implicitamente prescreve a aceitação do escrever e do falar do dicente no estado em que eles se constituíram, fora da escola, a despeito dela ou contra ela: é aquilo que ele "já sabe do mundo, da vida", de que depende a sua auto-estima, a promover e não a minorar.

Minorá-la seria desmerecer o seu desempenho lingüístico porque discrepante da norma culta. Elevá-lo, respeitando o seu "conhecimento intuitivo do mundo" equivaleria a aquiescer àquelas formas de expressão que, ao fim e ao cabo, resultam dos flagelos sociais da escolarização insuficiente, do analfabetismo abundante, da leitura ausente e da incúria generalizada, formas que o aluno emprega por ignorar outras (ou por desvalorizar as que aprendeu).

Naquelas formas, longe de reconhecer-se a sua identidade enquanto ser humano, deve-se reconhecer aquilo a que ninguém, em sã consciência, deseja como qualificação pessoal, desde que não cultive a própria ignorância, o próprio  auto-aviltamento, a própria indignidade face à capacidade, tão humana, de progresso individual.

Há jaulas e aulas: as jaulas do Preconceito Lingüístico acham-se nas concepções nele exaradas, cujo efeito maior consiste no de conservar na incultura quem nela já se encontra, incapacitando-o de retirar-se dela, sob pena de se lhe irrogar a pecha de preconceituoso.

As aulas são o ensino da gramática, o convívio com a literatura, o estímulo ao emprego no cotidiano do que se adquiriu na escola, o enaltecimento da beleza e do rigor na expressão falada e escrita, a busca do auto-aprimoramento, o esforço em direção ao saber, a força de vontade de sobrelevar a mediocridade ambiente, o amor ao melhor, a aversão à pobreza intelectual, à falácia, ao uso do saber como instrumento da política, o discernimento entre o que eleva e o que avilta. E, tão importante quanto todo o anterior, um agudo senso de solidariedade face aos excluídos de um saber multisecular, que nos induza a procurar incluí-los nele, ao invés de embelecá-los, agravando-lhes a exclusão sob a falácia do preconceito lingüístico que, se existe, e de fato existe, volta-se contra a norma culta do idioma.

As razões do êxito - Portador de todas estas falácias e destes primarismos, tão pouco digno da inteligência humana, tão funesto nas suas conseqüências, tão ilusório no guerrar o preconceito, tão odioso no instituir o terrorismo pedagógico, a que atribuir o êxito avassalador das já nove ou dez edições de Preconceito Lingüístico, que em maio de 2002 totalizavam a impressionante tiragem de cinqüenta mil exemplares vendidos e portanto uma notável aceitação?

Atribuo-o à simplicidade que o perpassa, da primeira à derradeira páginas. Cuida-se de livro concebido em linguagem prosaica e simplista (sem ser reles), portanto legível pelas pessoas em geral, facilidade à qual soma-se a da simplicidade com que os seus argumentos desenrolam-se, a prescindir de maiores concentrações para a sua compreensão. É um livro fácil.

Facilitadores, trata-se contudo de elementos secundários e mesmo sem os quais o seu êxito verificar-se-ia. Pois o fator decisivo consiste em que o seu discurso é agradável ao leitor, não esteticamente (porquanto o seu estilo acha-se longe de representar um modelo de beleza), e sim enquanto formaliza idéias que por alguma forma justificam o distanciamento hoje tão pronunciado entre a fala coloquial e a gramática. Milhares de pessoas pelo Brasil afora, falando mal, sabendo mal o idioma e não se esforçando em sentido inverso, encontraram neste opúsculo uma teorização que lhes consagra o desempenho lingüístico, que o autoriza, que o enaltece, que o eleva a padrão e que avilta aquilo e aqueles que se lhe opõe (a gramática e os seus campeões).

É uma disquisição que, do começo ao fim, afaga a vaidade e o ego do leitor, das milhares de pessoas cujo saber idiomático ela reputa positivo e que livra-os do peso na consciência de dominarem fracamente o seu próprio idioma e do sentimento de que carecem esforçarem-se por o dominarem de fato.

É um livro populista, no sentido mais rasteiro do termo, que diz às massas o que lhes embala o coração, cativando-as pela emoção que lhes desperta ao convencê-las de que certas estão elas e errado aquilo que custa aplicação aprender.

É populista porque persuade as pessoas de não é preciso aprender a gramática pois esta arcaizou-se e que nelas reside a verdade idiomática.

É populista porque infunde-lhes um sentimento de superioridade coletiva diante de uma construção multisecular, que transforma cada desinstruído, cada subletrado, em alguém que se eleva, com a sua incultura e por causa dela, sobre o saber acumulado por gerações a fio.

É populista porque, tacitamente embora, taxa de preconceituoso o imperativo de que para saber-se, é preciso aprender-se, o que certamente é muito mais difícil do que satisfazer-se com o que se adquiriu por mera imitação do meio social.

É populista porque pretende externar um grito de libertação dos milhões de culturalmente excluídos, apresentando-se como o denunciador dos alegados autoritarismo, intolerância e repressão de que o livro os concebe como vítimas.

Tanto é populista e atua cativando simpatia ao invés de persuadir pelo rigor dos argumentos que, a despeito da sua miséria intelectual, obteve cinqüenta mil leitores, com cujos reflexão e discernimento não contou nem deles necessitava. Daí a freqüência com que generaliza falsamente, com que recorre a simplismos, a insensatezes, com que argumenta aquém de um certo grau de racionalidade.

O poder de emocionar superou o de raciocinar, mesmo eliminou-o.

O resultado de tudo isto só pode ser o do espetáculo atual da decomposição do idioma, em que o brasileiro sabe-o mal porque faltam-lhe escolarização e leitura, e porque quando lê, lê Preconceito Lingüístico e lhe perfilha as doutrinas.

Sentindo-se a encarnação da gramática verdadeira, "do português do Brasil", crendo-se livre de preconceitos, cada autor escreverá como lhe aprouver, sem mais critério que o da imitação do que assimilou do ambiente. Em breve originar-se-ão tantas gramáticas quantos forem os escrevinhadores e portanto literaturas compreensíveis apenas nos limites de tempo e lugar em que vigorava a ordem gramatical do autor. Haverá guetos lingüísticos, que excluirão ainda mais os excluídos: já afastados da norma culta, tornar-se-ão limitados na compreensão do que escrever-se fora do seu gueto, sofrendo assim um duplo e mais odioso prejuízo.

Além disto, agravar-se-á a má qualidade da redação em geral, seja dos estudantes, seja dos profissionais. Produções acadêmicas, petições judiciais, mensagens eletrônicas, anúncios comerciais, traduções de livros, discursos oficiais, matérias jornalísticas, em tudo perder-se-á, mais do já se perdeu, a noção da beleza e da elegância da forma, o rigor da concepção, a certeza da expressão e da compreensão. Prevalecerá a fealdade, a inépcia, a incapacidade.

Desaprendendo o brasileiro o que lhe pertence, o vernáculo, aberto um vazio na sua capacidade comunicativa, assimilará as formas do inglês, graças a cuja aquisição, gramaticalmente correta, prevalecem já na sua sintaxe e no seu vocabulário a ponto de, vezes muitas, falarmos inglês em português.

Dentre as várias preocupações expressas por Preconceito Lingüístico, não se encontra a mais mínima relativa à instrução popular, perante a qual, ao contrário, prevalece um silêncio tenebroso de indiferença consumada.

Nenhuma palavra pela educação, por mais e melhores escolas, pela dignificação do magistério, por melhores salários para o professorado; nenhuma indignação frente ao analfabetismo no Brasil, nenhuma inquietação face ao mísero índice de leitura dos brasileiros, nenhum apelo aos governantes, nenhuma postulação em favor de políticas educacionais mais intensas, o que seria de todo em todo pertinente em um livro que se confessa político (página 9).

Longe de fortuita, semelhante apatia face à educação é necessária ao êxito do livro, que serve-se da escassa qualificação intelectual dos brasileiros e mesmo dela depende: em primeiro lugar, pois quanto menos culto, esclarecido e capaz de pensamento autônomo, que lhe capacite discernir entre a verdade e a mentira, entre o conhecimento e a sua instrumentalização política, tanto menos os leitores de Preconceito Lingüístico serão capazes de lhe desmascararem os  seus sofismas e a sua miséria intelectual.

Em segundo lugar, quanto maior a incultura, a desinstrução, a falta de escolas, o desdém pela leitura, a desmotivação dos professores, a indisciplina escolar, a repetência, o trabalho infantil, tanto mais escassos serão a compreensão e a interiorização da norma culta; tanto maior será o distanciamento entre ela e as variedades coloquiais, tanto mais diversificadas serão estas e, de conseqüência, tanto mais abundantes serão as supostas vítimas dos preconceitos, da alegada exclusão, da proclamada "aplicação autoritária, intolerante e repressiva que impera na ideologia geradora do preconceito lingüístico" (página 10).

Convém ao Preconceito Lingüístico um povo tão fracamente instruído quão possível, para assegurar-se um público leitor proporcionalmente abundante na quantidade e crédulo na qualidade do seu convencimento. Por isto, muito mais do que demagógico e populista, esta é uma obra odiosa, que engana aos incapazes de perceberem que são enganados e que os mantém no engano para mais e melhor os enganar.

Uma interrogação - Quanto tempo, quanta mediocridade, quanta confusão, quanta estupidez serão necessários para que a sociedade brasileira distinga entre o que a engrandece de fato e o que a rebaixa, entre a mistificação e o progresso da sua gente e da sua cultura?

Curitiba, janeiro de 2003.