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Movimento Nacional em Defesa
da Língua Portuguesa
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NOSSO IDIOMA
A pobre língua, deformada por novas manias
Quantas expressões erradas você usou nos últimos dias, sem pensar
no que dizia?
Ruy Castro (*)
Então... Quantas vezes hoje você já começou uma frase
com "Então..."? (E com uma misteriosa pausa logo depois de dizer "então..." – donde as reticências.) Em todas as ocasiões, esse
"então..." não significou absolutamente nada. Dizê-lo ou deixar de dizê-lo dava na mesma. Mas, se você o disse, é porque já chegou
àquele perigoso estágio em que as palavras antecedem ao pensamento – tanto que nem se lembra de ter dito. Transfira isso para todas
as vezes que falou sem pensar, opinou sem pensar ou acusou sem pensar, apenas porque as palavras se formaram espontaneamente na sua
boca. Daí, digamos, a votar sem pensar é também um pulo.
Não tenho nenhuma birra generalizada contra o uso de "então". Como advérbio, fazendo as funções de
nesse ou naquele tempo, é uma palavra linda: "O futebol de então era mais clássico". Mesmo como interjeição, dando continuidade a
uma discussão suspensa e quase sempre significando um estímulo, tem tudo a ver: "Então, Fulano, vamos ou não vamos almoçar?" Mas
tenho urticárias contra esse abuso de entões como uma interjeição melíflua, que só serve para tapar um buraco na frase e não leva a
lugar nenhum: "Então... Não sei se lavo o carro ou se vou comer um macarrão com a mamãe..."
Assim como há pragas cíclicas de gafanhotos e de outros insetos na lavoura, "então..." é apenas
uma das pragas recentes a infestar a língua. Nem é a pior. A pior, sem dúvida, é o abuso de "Com certeza!" – assim mesmo, com
exclamação. O uso quase fanático de "com certeza" (de um ano para cá ou, pelo menos, foi então que o percebi) está quase condenando
à morte outras expressões que, no passado, tanto nos valeram, como "Sem dúvida!", "Claro!", "Lógico!", "Óbvio!", "Positivo!",
"Certo!" e até mesmo o "Certamente!", para não falar do humilde, miraculoso e perfeito "Sim!". Não há nenhum motivo para "Com
certeza!" monopolizar as afirmações do vocabulário, exceto o fato de que, num processo galopante de degeneração da língua, estamos
falando como zumbis e os jovens, talvez, mais do que todos.
Comicamente, as pessoas passaram a exclamar "Com certeza!" até mesmo quando a frase que se segue
não dá certeza de coisa nenhuma. "Fulano, você já comprou o disco do Supla?" "Com certeza! Mas antes preciso pedir o dinheiro pro
meu pai." As sílabas se formam magicamente no aparelho fonador e as frases saem com a maior facilidade pela boca, sem a mínima
interferência cerebral. Não há relação entre o pensamento e a palavra. Todos os processos lógicos, desenvolvidos desde Aristóteles,
são destruídos por uma rastaqüera frase-feita, inventada e/ou adotada por não-pensantes.
Não se sabe de onde saem essas manias. Mas sabe-se muito bem como elas são disseminadas: pela
televisão. O terreno em que vicejam são os programas de auditório, os talk-shows e os comerciais – estes, cada vez com maior
freqüência, interpretados por personagens debilóides. (E os atores que os interpretam devem ser ótimos, porque fazem muito bem o
tipo.) Sem falar nos jogadores de futebol, cuja habilidade com a bola não tem, nem precisa ter, nenhuma relação com qualquer forma
de inteligência. As entrevistas nos intervalos ou no final das partidas são pândegas: "Fulano, como você explica os cinco gols que
sua equipe sofreu nesse primeiro tempo?". "Com certeza! Nós já sabíamos que eles iam atacar pela direita, porque o professor (sic)
tinha nos expricado (sic). Mas ainda tem muito jogo, o grupo está fechado e vamos voltar para o segundo tempo e reverter esse
resultado para alcançar nosso objetivo, que é a vitória!" Essa saraivada de clichês formou-se mecanicamente na glote do craque e
saiu, impune, parecendo formar um pensamento. Mas foram apenas flexões das cordas vocais – nenhum neurônio foi convocado a atuar.
Jogadores de futebol falam discursos decorados, não porque se submetam a cursos de oratória no
vestiário, mas porque são condicionados a falar assim por seus treinadores. Esses são os grandes geradores de clichês futebolísticos
– principalmente os que se julgam muito espertos, como Luxemburgo ou Filipão. Compare seus discursos ocos com os de homens
articulados, com diversos interesses extrafutebol, como Oswaldo de Oliveira e Carlos Alberto Parreira. E não cometerei a injustiça
de confundir Romário, Leonardo ou Zinho com o grosso dos que jogam por aí. Mas, considerando-se que, entre os brasileiros mais
influentes da atualidade, estão os jogadores de futebol e as louras pneumáticas, não é difícil imaginar para onde vai a pobre
língua.
Entre muitos outros recentes aleijões impostos à língua, será preciso mencionar a epidemia de
gerúndios? "Nós vamos estar te enviando...", "Eu vou estar te retornando...", "Ela vai estar te contatando..." Que raio de língua é
essa? Português não é. Estruturalmente, parece inglês, só que processado em internetês e reproduzido em analfabetês puro e simples.
E não vamos pôr a culpa nas secretárias ou telefonistas, categorias que, por força do hábito, têm um léxico próprio. Pode-se ouvir
gente de todas as classes sociais falando desse jeito. O abuso do gerúndio é uma agressão ainda mais cruel à língua porque fomos
nós, brasileiros, que, no século 20, o salvamos da extinção a que ele parecia condenado em Portugal. E como o salvamos? Por uma
sintonia fina de seu uso, aplicando-o com propriedade e quando necessário. Vem agora esse grotesco gerúndio cubista e ameaça
escangalhar uma das mais criativas e funcionais peculiaridades da fala brasileira.
O escritor italiano Alberto Moravia disse certa vez que um dos grandes problemas de nosso tempo
era o de que, agora, "até os analfabetos sabem ler". Pode ser – mas ainda não aprenderam a escrever. Há algumas semanas, vi várias
vezes na imprensa o uso de "sofrível" com o sentido rigorosamente oposto ao seu verdadeiro sentido. "Sob Fulano de Tal, o time xis
fez uma campanha sofrível: 15 jogos, 2 vitórias, 3 empates e 10 derrotas." Ora, isso não é sofrível. Ao contrário, é péssimo. Seria
sofrível se o tal time tivesse conseguido cinco vitórias, cinco empates e cinco derrotas em 15 jogos – ou seja, se tivesse ficado na
média, no suportável, no "sofrível". Porque é isso que, segundo o Aurélio ou qualquer dicionário, significa sofrível: aquilo que se
pode sofrer, que se consegue suportar. Os estudantes do passado conheciam muito bem esse significado: os professores avaliavam seu
desempenho em ótimo, bom, sofrível, ruim ou péssimo (levar um sofrível para casa era garantia de boas chineladas). Com o abandono
desses conceitos pelos colégios, a palavra saiu de uso e, depois de décadas de hibernação, volta agora com o sentido adulterado.
Antes tivesse continuado a dormir.
E por que, de repente, "atrativo" deixou de ser substantivo ("Um dos atrativos do Rio são as
praias") para tornar-se, sem pedir licença, adjetivo? "O carro tal tem um preço bastante atrativo". Não que esteja de todo errado,
mas, para designar algo com um poder de atração, sempre tivemos a bela palavra "atraente". Ou será melhor "atrativo" porque se
parece mais com "attractive", que, em inglês, é sempre adjetivo e quase nunca substantivo? Da mesma forma, cresce o número de
gente falando em "audiência" para designar o público que vai a qualquer lugar (e não só quem está em casa, acompanhando o evento
pela TV) e "audição" (em lugar de apresentação). É assim que, com o perdão do exemplo, "uma audiência de 100 mil pessoas compareceu
não sei aonde para assistir à audição do padre Marcelo". É verdade que uma pessoa que sai de casa para assistir a uma "audição" do
padre Marcelo merece fazer parte de uma "audiência", mas a língua portuguesa não é obrigada a ser submetida a essa tortura extra.
E, no caso de "bagatela", em que ficamos? "A estrela Nicole Kidman recebeu a bagatela de US$ 20
milhões para rodar o filme xis", diz o jornal. Isso é pouco ou muito? Bagatela, no meu tempo, significava pouco. No tempo do
Aurélio, também. Mesmo assim, fui conferir: "Bagatela. Do italiano bagatella. Ver ninharia." Bem, ninguém precisa ir ao
dicionário para saber que ninharia quer dizer mixaria, insignificância. Donde bagatela só faz sentido se você estiver pagando barato
por uma coisa cara. Mas nossos jornais, ultimamente, estão confundindo tudo. Mesmo nas páginas de economia (que se supõe sejam
feitas por jornalistas que já ultrapassaram a bagatela dos 23 anos), costuma se ler: "O Tesouro vai gastar a bagatela de R$ 10
bilhões para cobrir o rombo do banco tal."
Tudo bem, os números enlouqueceram e já estamos nos acostumando. Mas o que acontecerá quando as
palavras também enlouquecerem?
(*) Ruy Castro
publicou este artigo no
Caderno 2 do jornal O Estado de São Paulo de 12/1/2002. |