MÍDIA E RELIGIÃO
A salvação cotada em dólar
Muniz Sodré (*)
In God we trust. A frase ("em Deus nós confiamos") é, como se sabe, o velho dístico da
moeda norte-americana. Vale a lembrança agora que ficamos sabendo pela imprensa que uma igreja evangélica da Barra da
Tijuca, Zona Sul do Rio de Janeiro, realiza os seus cultos em inglês. A explicação é que, assim, também fiéis estrangeiros
poderão beneficiar-se das pregações.
Até aí, nada demais. O interesse maior da notícia está na revelação de que o grande êxito
da iniciativa deve-se à presença de brasileiros. Entrevistada, uma fiel confessou nada entender do que ali se prega, mas que
achava "lindo o som da língua inglesa".
Há muito tempo vêm afirmando os sociólogos que, junto com a multiplicação de seitas na cena
urbana contemporânea, o fenômeno religioso autonomiza-se cada vez mais frente à transcendência (o sagrado, o além-do-natural)
e à própria sociedade. A vivência religiosa torna-se estilo de vida, há seitas para todos os gostos, assim como no mercado
de consumo se diversificam a oferta e a demanda. Crença e mídia passam a ter mais afinidades do que supõe a vã teologia.
Na verdade, teologia e marketing, já há algum tempo, andam de mãos dadas. O fenômeno
"mítico-religioso" não é suscitado pelo suposto poder dos conteúdos informativos, mas de um lado (a) por uma lógica mercantil, profético-moralista e
autoescatológica, que troca o antigo Bem ético pelo bem-estar individualista, associando salvação e consumo. "Suntuoso é o
caminho para a salvação – consuma e sinta-se bem!", ironiza John Carroll, crítico de cultura.
De outro lado (b), pela articulação da rotina cotidiana dos indivíduos (onde antes a religião tradicional intervinha
com seus discursos reguladores) com o efeito (quase divino, à beira do sobrenatural) de simultaneidade, instantaneidade e
globalidade característico da intervenção das modernas telecomunicações no tempo-espaço, que contrai por aceleração da
temporalidade o espaço físico convencional e tende a abolir o tempo por eternização do instante sem duração, confluindo para
uma visão de ciberespaço próxima à concepção cristã de paraíso etéreo. E ainda (c) pela ideologia que vê na suposta racionalidade comunicacional o
"melhor dos mundos".
Na verdade, toda e qualquer experiência subjetiva do sobrenatural ou da transcendência, a
que se dê o nome de religião, depende fortemente de práticas mediadoras, que variam do ritual a formas escritas. Com
referência a este último aspecto, costuma-se associar o surgimento do mercado de livros impressos na Europa quinhentista à
expansão do protestantismo.
No âmbito da comunicação massiva do final do século 20, reprisa-se a velha combinação da
prática mediadora com a vivência mística, só que agora sob a égide do medium, tecnologicamente afim a
características divinas, como onividência e ubiqüidade. Sob o influxo da retórica midiática ou dos híbridos de
sacerdotes-atores-homens-de-marketing, os novos crentes são seduzidos, como os já antigos, pela promessa de um democrático
acesso direto à divindade.
Língua franca
Tudo isso cheira a dólar. Nos Estados Unidos, desde o final dos anos 70, como intróito à
era neoconservadora que resultaria no economicismo de Ronald Reagan (a chamada reaganomics), floresceu uma espécie de
"capitalismo cristão" coadjuvado pelo tele-evangelismo eletrônico. Debruçada sobre a derrocada de valores tradicionais (a
"onda" juvenil, o peso ideológico dos imigrantes, a expressão pública das minorias etc.) e centrada no messianismo do
espetáculo místico, a "igreja eletrônica", ou ainda "igreja comercial", passou a constituir verdadeiros impérios
televisivos. Neste contexto, tudo se vende e se compra – da fé à redenção.
A princípio, o fenômeno parecia exclusivamente norte-americano. Hoje, entretanto, a
imprensa escrita comenta às vezes sobre uma espécie de "guerra santa" entre as igrejas no Brasil, com o objetivo de montar
cada uma o seu próprio império de rádio e televisão.
O fenômeno é particularmente conspícuo no âmbito das novas seitas pentecostais. Além de
consolidar o status quo doutrinário das mais antigas, a mídia eletrônica impulsiona o crescimento de novas,
arregimentando centenas de milhares de adeptos em especial nas regiões mais empobrecidas e marginalizadas.
É comum que os líderes religiosos ou pastores sejam versados em técnicas de marketing ou
mesmo provenham desse campo profissional. É logicamente conseqüente que o inglês, língua franca do comércio e da tecnologia
mundial, termine entrando como parte da estratégia "marqueteira". Pouco importa, no fundo, que se entenda ou não o que se
prega. Assim como a mídia comercial, tudo isso tem mais a ver com "massagem" do que com mensagem. E, pelo que se observa,
tem muito a ver com práticas eleitorais. Deus nos salve.
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