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Movimento Nacional em Defesa
da Língua Portuguesa
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NOSSO
IDIOMA
Breves considerações sobre a lei do idioma
Antonio Veronese (*)
"Fico observando essa discussão sobre a lei Aldo Rebelo e sua
repercussão. Há os que a acusam de anacronia, de xenofobia, e de outras ‘ias’ mais. No entanto, o fato é que chega uma hora em que a
questão da identidade tem que falar mais alto; afinal de contas, a língua é a nossa pátria!
Disto sabem bem os franceses que, há décadas, legislam em defesa do francês e da francofonia.
A anglicização galopante do português no Brasil perverte e desnatura a mais bela de todas as línguas latinas (e perdoem aqui a minha
jactância luso-brasileira). Da mesma forma decreta, por desuso, a morte de palavras belíssimas como, por exemplo, 'cancioneiro',
substituída, parece que definitivamente, pelo malfadado song-book como, com muita propriedade, já reclamara o mestre Antonio
Callado.
Nesta linha de raciocínio, chega a ser engraçado que a compilação da obra do grande
compositor de música popular brasileira Cartola, carioca por excelência e com indiscutíveis raízes africanas, seja chamada de
song-book pelos próprios brasileiros, como bem aponta Marcos de Castro no seu livro O caos na ortografia. Os portugueses,
com certeza, não cometeriam tamanha impropriedade.
Mas, fazendo cá comigo essas ilações, acabei passando por uma situação que bem ilustra a
questão. Dia desses, entrei numa dessas lanchonetes com pomposos nomes em inglês. Queria comer alguma coisa leve, e minha opção
estava lá no painel assim descrita: Cheese, Ham and Egg. Chamei o garoto que estava servindo e, fiel à última flor do Lácio,
mandei: 'Ô rapaz, me vê aí um Queijo, Presunto e Ovo.' Ele me olhou sem reação, como se eu tivesse me dirigido a ele em sânscrito ou
num patoá qualquer. Diante da sua perplexidade, insisti na língua de Saramago: 'Meu filho, eu quero um Queijo, Presunto e Ovo.'
Inutilmente. Fez-se uma pausa desconfortável, ao final da qual o rapaz, tentando assumir o
controle da situação, sentenciou: 'Olhe moço, só tem o que está escrito ali, ó', apontando num gesto largo o cardápio afixado à
parede, que mais parecia um texto shakespeariano do que uma simples lista de guloseimas.
Eu, maldosamente, fingia não entender, e insistia no meu bom portuguesinho: 'Exatamente, meu
filho, e é mesmo por estar ali no cardápio que estou te pedindo: quero um Queijo, Presunto e Ovo.' Em vão. Uma senhora do meu lado,
atrasada pelo tempo que eu tomava ao rapaz, lançou-me um olhar furioso, e eu estava a ponto de desistir da minha cruzada filológica
quando a gerente, vendo o impasse posto, acudiu a tempo do outro lado do balcão: 'Oh Severino, o que o homem tá querendo é um
Cheese, Ham and Egg.' E repetiu enfatizando cada sílaba, num inglês fluente e sotaque irretocável de Connecticut: Cheese, Ham
and Egg!
Severino, então, abriu no bom rosto de nortista um largo sorriso aliviado: 'Ah, entendi, o
que o senhor quer é um Cheese, Ham and Egg!! É pra já, doutor.' E em voz alta comandou sem mais delongas ao cozinheiro: 'Tião,
salta ligeirinho um Cheese, Ham and Egg aqui prô my brother!!!!'".
(*) Antonio Veronese é articulista da coluna
Observatório. Este artigo foi publicado em 20/05/2001 no jornal carioca O Globo.
O tema foi debatido na lista de debates
Idioma, mantida pelo MNDLP, pela internauta Caia Fittipaldi:
Assunto: RES: [Idioma] Observatório
Data: Fri, 25 May 2001 13:51:53 -0300
De: Caia Fitti <mcfitti@****.**.***.br>
Concordo, claro, com tudo, da matéria do Observatório.
Mas aposto que o que o moço da lanchonete disse, de fato, foi: 'Tião, salta ligeirinho um
xezerã-enégui aqui prô meu brodinho'. [Já seria diferente se o rapaz dissesse: 'Tião, sartaí um xezerã cum égui estalado'. Neste
caso, a gente poderia, ainda, ter esperança de que ele soubesse o que é (NO MUNDO!) um égui. E, se ele soubesse, não faria mesmo
muita diferença chamá-lo de égui ou de ovo ou huevo ou oeuf ou de x-diferente-de-y.]
O que interessa destacar NÃO É que as pessoas não-letradas estão 'aprendendo inglês'. Porque
elas estão É DESAPRENDENDO a experiência social de sua tribo, que lhes foi transmitida na infância, quando a tribo lhes ensinou uma
língua, E NÃO ESTÃO APRENDENDO COISA ALGUMA QUE SUBSTITUA AQUELE SABER. Os pobres não-letrados, aqui, estão, só, tentando
sobreviver, com meios insuficientes, num mundo que não faz sentido algum na cabeça deles.
Tomada a questão do ponto de vista de lingüistas descritivistas de Academia, "os falantes
estariam, naquele caso, demonstrando a infinita criatividade da língua". Besteira pura (quando não é, também, besteira
mal-intencionada de cientistas que fazem 'ciência-de-classe')!
Li no livro do Popper ("Conjecturas e Refutações", Ed. Universidade de Brasília): "A Física
não ensina o agricultor a escolher entre um arado ou uma foice. A Física só pode ajudá-lo a entender como funcionam um e outra e a
construir o melhor arado e a melhor fonte, em cada circunstância." [Eu sabia que tinha lido em algum lugar a idéia de que não é
preciso consultar os lingüistas pra decidir proteger a língua portuguesa do Brasil. No domingo à noite, afinal, achei: tá no Popper.
É bom saber, porque aqueles caras da Lingüística-burra SEMPRE calam a boca e metem a viola no saco quando se cita Popper: eles
MORREM DE MEDO do Popper!]
Os falantes iletrados, neste contexto de ter de 'se virar' num mundo em que a língua
dominante não lhes é ôrgânica (no sentido em que Gramsci usa esta palavra), estão perdendo os meios de
expressão/comunicação/manifestação que tinham e NÃO ESTÃO conseguindo integrar-se na linguagem dos dominantes. Dizer que eles, bem
ou mal, falam uma língua que eles mesmos entendem também é besteira: ninguém, no mundo, em língua alguma, pode dizer que sabe o que
é um xezerã...
Afirmar que 'tudo bem' porque, apesar das dificuldades, a
'tradução/adaptação' das palavras permitiu que acontecesse a comunicação é conformar-se com pouco. Comunicação por comunicação...
bastaria apontar para o cartaz e gemer "Mim querrrrer una". Sempre deu razoavelmente certo.
(...)
Caia
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