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Movimento Nacional em Defesa
da Língua Portuguesa
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NOSSO
IDIOMA
Do mico-leão ao anambé
Hélio Schwartsman (*)
Muitos se mobilizam contra o risco de extinção que paira sobre
baleias e micos-leões-dourados. Há até quem lute pela sobrevivência de fósseis - o paradoxo é saboroso -, que estão sendo
comercializados no mercado negro. Mais ameaçados, mas menos populares são os idiomas.
Ninguém sabe ao certo quantos eles são hoje no mundo. As estimativas vão de 4.000 a 10.000,
mas parece um bom palpite fixar seu número nas proximidades de 6.500. Tanta variação é possível porque as fronteiras entre língua,
dialeto e falares regionais são tudo menos claras. Embora algumas definições engenhosas já tenham sido propostas, na prática não há
critérios objetivos.
A discussão é mais política do que técnica. Em termos de semelhança, é mais do que razoável
afirmar que o servo-croata, por exemplo, é uma só língua. A diferença mais marcante está no fato de os sérvios empregarem o alfabeto
cirílico, e os croatas, o latino. Diferenças no léxico existem, mas são mínimas. A rivalidade entre os dois povos, contudo, os leva
a afirmar que seus respectivos modos de expressão têm identidade própria, constituindo-se em línguas independentes. Agora que
existem um Estado sérvio e outro croata, é bastante provável que a divisão se "oficialize".
No pólo oposto, o chinês é considerado um idioma. Por vezes se o divide em mandarim e
cantonês. Na expressão escrita, não resta dúvida da unicidade da língua. Na forma oral, contudo, ocorrem diferenças marcantes de
aldeia para aldeia, a ponto de comprometer a intercompreensão. Fosse outra a realidade política, não seria absurdo dividir os
"chineses" em vários idiomas.
Línguas podem ser colocadas em três grandes grupos em relação a suas perspectivas de
sobrevivência. São chamadas de "moribundas" quando já não são aprendidas pelas crianças. Acredita-se que de 20% a 50% dos idiomas
estejam nessa situação. Diz-se que estão "ameaçadas" quando se encontram em vias de deixar de ser aprendidas por crianças. E são
consideradas "seguras" quando não se enquadram em nenhuma das categorias anteriores. Apenas 10% dos idiomas são robustos o bastante
para se encaixar nessa última definição; 90% do total não chegarão até o ano 2100.
O fenômeno de surgimento e extinção de línguas não é novo. Acredita-se que o pico da
diversidade lingüística tenha ocorrido 15 mil anos atrás, quando uma população brutalmente menor do que a atual falava mais de 10
mil idiomas.
Mesmo assim, é razoável afirmar que a extinção - que alguns chamam de genocídio - foi muito
intensificada nas últimas décadas. O evento mais notável é a urbanização. Se é relativamente fácil que populações isoladas
permaneçam falando uma língua, a questão se complica bastante nas cidades. No começo, os filhos consideram o idioma dos pais -
falado apenas na família - inútil e o aprendem meio a contragosto. Seus filhos, contudo, já não o aprenderão e, no espaço de duas ou
três gerações, a língua perece.
O Brasil, ao contrário do que se poderia imaginar, é um dos países em que se falam mais
idiomas. São 219, segundo o linguista Tove Skutnabb-Kangas, que mantém um interessante site sobre o tema (www.terralingua.org). O país é o nono colocado, ficando atrás de Papua-Nova Guiné (850),
Indonésia (670), Nigéria (410), Índia (380), Camarões (270), Austrália (250) e México (240). Vale reforçar que, dada a precariedade
dos critérios, esse é apenas um cálculo possível, entre outros.
A grande maioria desses pequenos idiomas vai morrer em breve. No Brasil, em agosto do ano
passado, morreu Muihu Anambé, um dos sete últimos falantes de anambé (da família tupi-guarani), que vivem às margens do rio Cariri,
no Pará.
Diante da inexorabilidade, importa tentar manter o máximo possível de registros dessas
línguas em vias de extinção. Esse, porém, é um processo caro e trabalhoso, quando não perigoso.
Nos anos 90, na Etiópia, bem-intencionados lingüistas acabaram matando os dois últimos
falantes de gafat. Ao serem transferidos para as terras altas, foram contaminados pelo vírus do resfriado e morreram.
Por maiores que sejam os esforços dos que militam contra a extinção das línguas, a tarefa é
ingrata. É mais fácil preservar baleias e micos-leões-dourados. Em princípio, basta deixar de caçá-los ou de destruir o ambiente de
que dependem. Com as línguas, é preciso convencer seus falantes, atuais e potenciais, a utilizá-la, muitas vezes contra tendências
políticas, econômicas e culturais - a famosa globalização - bastante poderosas.
A própria idéia de conservar idiomas em fitas magnéticas e gramáticas improvisadas é
problemática. É evidente que o anambé, mesmo documentado, permanecerá uma curiosidade, um exotismo. Jamais será um grego clássico ou
um latim, que são línguas mortas, mas seguem desempenhando influência vital sobre a cultura do Ocidente. O anambé, com um pouco de
sorte, será objeto de tese acadêmica, uma interessantíssima gramática comparada anambé-karitiana.
É claro que é muito melhor algum registro do que registro nenhum, mas não podemos nos
esquecer de que línguas, como a maioria dos organismos vivos, têm infância e maturidade. Vivem-nas e, depois, acabam morrendo. O
diabo é que essa tal de globalização ajuda a matar precocemente, indivíduos e idiomas.
(*) Hélio Schwartsman é jornalista. Este artigo foi
publicado em 22/2/2001 na seção
Pensata do jornal Folha de São Paulo. |