Clique aqui para voltar à página inicial  http://www.novomilenio.inf.br/idioma/20010201.htm
Última modificação em (mês/dia/ano/horário): 07/26/00 16:42:25

Movimento Nacional em Defesa
da Língua Portuguesa

NOSSO IDIOMA
Paideia

A educação para a virtude - um projeto urgente para o Brasil

Luiz Otávio de Oliveira Amaral (*)

A educação é uma função tão natural e universal da comunidade humana e tão auto-evidente, que tem exigido, por isso mesmo, muito tempo para ser plenamente compreendida, tanto pelos que a recebem, quanto pelos que a praticam. Daí, com efeito, a tardia literatura específica e hoje a profusão de teorias, doutrinas e achismos acerca do tema. Já nos antigos gregos o conceito arete (cuja tradução para a atualidade não é fácil), a virtude da têmpera heróica, ética e da nobreza que caracterizava a bravura guerreira dos cavaleiros, eis talvez o primeiro conceito de educação, de formação do homem. O homem vulgar, assim, não tem arete. A arete é, então, um atributo da excelência humana, a beleza de caráter que orienta a praxis (a ação cotidiana) humana para o Bem, é enfim a unidade suprema de todas as excelências.

Em Homero (Ilíada e Odisséia) vamos encontrar este conceito helênico de formação do homem grego de então: “Hipóloco me gerou, a ele devo a minha origem. Quando me enviou a Tróia, advertiu-me insistentemente que lutasse sem cessar por alcançar o poder da mais alta virtude humana e sempre fosse, entre todos, o primeiro”. Eis aí o mais belo sentimento pedagógico da arete - o mais perfeito equilíbrio entre altivez e magnanimidade cujo troféu é a honra. Outra poética e emblemática passagem da Ilíada acerca dos fins da educação é quando o velho Fênix, educador do jovem Aquiles, herói-protótipo dos gregos, recorda o fim para o qual foi educado: "Proferir palavras e realizar ações". Como se vê, com razão Platão considerou Homero o educador de toda a Grécia.

A paideia - estruturação da vida individual, assente em princípios de virtude absoluta, cultivo da perfeição humana - é o meio para se alcançar a arete. Com efeito, já houve tempo em que se considerava a paideia (mais ainda a agoge espartana) o mais alto fim do Estado (polis). Tudo na vida dos helênicos girava em torno do ideal da arete. As artes: a arete da tragédia, da comédia, da poesia, da música (Homero, Ésquilo, Sófocles, Simônides, Tirteu...); a filosofia, ou arete do saber (Sócrates, Platão...); os esportes/ginástica (arete da força física/ideal olímpico); a política (politeia=vida pública+vida privada, em Péricles, politeuma).

Conceito ampliado - É com os sofistas que o conceito restrito de educação se amplia e se eleva até a mais alta arete humana, superando o simples conceito de “criação dos meninos” (em Sete contra Tebas, de Ésquilo) primeira referência ao conceito educação que já agora abarca o conjunto de todas as exigências ideais, físicas e espirituais que conduzem à formação humana mais ampla e consciente (humanitas, em Cícero; Bildung em alemão, algo como cultura superior).

É bem expressivo, por outro lado, que Platão, Isócrates, Demóstenes, dentre outros, considerem o defeito especifico da retórica  - a arte maior dos sofistas - o falar para agradar aos homens e não para atender o "bem eterno", é corrupção do discurso (crise da arete retórica, a pseudo-paideia).

Daí porque hoje, quando somos acometidos da síndrome moderna da avalanche teórica (de opiniões, achismos, que em certos casos não vão além do mero rebatizar de denominações) que sufoca a todos, é curial o crivo da condenação reiterada de Platão aos sofistas (inclusive Górgias de Leontini e Protágoras os maiores dentre os muitos sofistas da antigüidade clássica): porque eles reduzem o conhecimento à opinião e o bem à utilidade, relativizando valores e princípios absolutos para a vida humana, não ostentam mais que "sapiência aparente" (isto foi depois, também, confirmado por Aristóteles).

Assim, toda e qualquer retórica cientifica descomprometida com sua efetividade, livre da necessidade probatória, nos leva a certo grau de desconfiança. A novidade superante é sempre uma necessidade da jornada humana, mas a natureza não dá saltos, e a imposição absoluta do novo só pela novidade é tolo desafio à natureza dialética daquele evoluir humano.

Nova educação - Da educação nas sociedades primitivas, que visava apenas manter a imutabilidade sagrada das técnicas culturais, embora não se desconhecesse que nenhuma sociedade humana sobrevive sem que sua cultura seja transmitida de geração para geração - esta entrega (do latim tradere) de cultura é a tradição -  passou-se para a nova educação, nas sociedades ditas (mais) civilizadas que incorporam, além daquela transmissão cultural, o dado novo do aperfeiçoamento e correção da tradição.

É que "todas as coisas mudam sempre sobre uma base que não muda nunca" (Ruy/1910). Assim, por exemplo, os conceitos de Direito (sempre o reto, o justo), de democracia (evoca sempre povo), de pedagogia (paidagogia, evoca sempre a idéia de condução, daí o escravo  -  o paidagogo -  que conduzia pelas mãos a criança à escola, ao saber).

Mudam as palavras, mas as coisas em si (ou seus conceitos) são as mesmas: educar é alterar a natureza humana, é tornar os homens melhores, enfim alcançar a arete é o propósito de nossa vida; a pedagogia sofista bem divisou isto. Há a virtude cívica (arete política) que é o fundamento do Estado; há a verdade como virtude essencial da ciência (episteme) e diria mais: de toda educação; há a virtude do indivíduo que é múltipla: a solidariedade, a eticidade, a justiça, além do adestramento/instrução técnico-profissional (parte não essencial da paideia autêntica, que visa formar o homem na arete total). A virtude em Platão se decompunha em: justiça, prudência,  piedade e valentia.

Pedagogia - Antes de ser ciência autônoma, a pedagogia era parte integrante da ética ou da política e elaborada unicamente em atenção aos fins propostos pela ética e pela política ao homem, isto enquanto pensar filosófico especificamente pedagógico. Porém, enquanto natureza prática/empírica, a pedagogia se referia ao primeiro e mais elementar adestramento da criança para a vida (privada e pública).

Eis aqui o ponto crucial desta especulação: este viés prático/pragmático (hoje mais adestramento utilitarista) anulou a razão de ser (a arete total, a formação virtuosa do educando, adulto ou criança) da pedagogia e conseqüentemente da educação. Daí, as deformações nos quadros dirigentes da sociedade brasileira em especial, porquanto se a sociedade não mais devota dedicação absoluta aos valores/virtudes paradigmáticos (o bem por princípio e a vantagem por decorrência/premial) seus indivíduos só podem mesmo tolerar e pior, aspirar, também, pilhar o interesse público.

Por que será que tantas “autoridades” têm sido ocasionalmente flagradas em desvirtudes, falhas e crimes infamantes? A resposta até pode ser: por causa de arroubos de virtudes de algumas autoridades, cumulados com o interesse jornalístico/comercial da imprensa. Mas a resposta plena de verdade é que: estes casos só representam a ponta do iceberg, ou seja, há fora das vistas uma consciência permissiva cada vez maior no seio da sociedade. Já se vê mesmo um Estado marginal dentro do Estado oficial.

O que se dirá das listas de homenageados, condecorados e premiados com os mais altos cargos públicos, listas essas repletas de indignidades “politicamente corretas (?!)”. Pesquisem-se tais listas e comprovar-se-á o quanto há de inversão moral. A propósito, é bem atual a advertência de Platão: importa mais infundir à polis um ethos (o espírito ético) bom e não dotá-la dum amontoado de leis...

Direito/Educação - Com efeito, o Direito tem forte poder educativo. Por outro lado, a educação tem  forte sabor jurídico (é pobre, senão paupérrima a educação que só ensina o fazer, o ter e despreza o ser: o ser justo, ser ético, o ser cidadão, o ser bom, enfim). Reconhecer isso passa longe de eventuais disputas ou hegemonias profissionais, acadêmicas; eis que é imperativo de sobrevivência e progresso social de um povo. Ontem já era assim; hoje, no entanto, é cada vez mais urgente tal compreensão estratégica.

Então, faz-se urgente conciliar o amor pelo eu subjetivo (antítese do eu comunitário) com a totalidade do mundo circundante. O culto da alma individualizada com a consciência viva da comunidade, da cidade/estado, com a virtude cívica genérica de cada eu.

Em suma, trata-se de harmonizar os interesses privados/individuais com os interesses públicos/cívicos. Até porque são realidades de alta reciprocidade de interferência: um bom estado exige um bom cidadão e vice-versa, ou seja, um cidadão que saiba mandar e obedecer orientado pelo fundamento da justiça. Tudo isto é função da educação autêntica, instrumentalizada pelo ensino das virtudes (ou melhor da virtude que é única, mas que apresenta porções ideais).

Com efeito, foi a cultura ática a primeira a equilibrar as duas forças: o impulso criador do indivíduo e a energia unificadora da comunidade política. Nem o benfazejo apogeu da alma individualizada, do ente individual/pessoa humana que surge com o cristianismo, nem a radicalização individualista do liberalismo (e pior ainda do neoliberalismo) devem tolher a vocação - conquanto essencial, hoje bastante minimizada - da educação enquanto ensino ético-político, verdadeiro eixo de sustentação da formação integral do homem contemporâneo, máxime do brasileiro.

Essência - A formação ética e política é, assim, parte essencial da verdadeira paideia, da educação autêntica. Daí porque Tucídides disse: “chamo à nossa cidade a alta escola da cultura da Hélade”. Como se vê, o Estado é, ou deveria ser, a mais alta escola da cultura plena e a vida privada a propaideia (base/preparatória da paideia) da vida pública (da paideia política).

A formação do caráter, na perspectiva da arete total, da perfeição humana, deve ser levada a efeito desde cedo, como uma hodierna propaideia; educar a todos para serem dignos do trono real. Já que temos de viver inexoravelmente em sociedade e organizada minimamente, é então indispensável, que desenvolvamos as virtudes públicas/cívicas (civita/polis=Estado), o “estado dentro de nós”, como pregava Platão (República).

Todavia, a sementeira desta paideia contemporânea só pode frutificar em regime de tempo integral e desde a primeira infância até o último suspiro, eis que a educação plena jamais se completa, senão a vida. A perfeição humana, a educação total (arete total) é sempre, uma fórmula de eterna procura, tal como a justiça, a democracia, objetos de desejo jamais alcançáveis enquanto resultado absolutamente conclusivo ou terminativo.

Pressuposto - Ensinar pressupõe a crença de que mudanças são possíveis, de que o discurso da acomodação não melhora as dores do mundo; daí porque o ato de ensinar é constante exercício da faculdade humana de criticar.

É preciso criticar, discutir, mudar, enfim não parar de buscar a razão de ser de nossa ação educativa, este é o problema fundamental de toda educação: o educando na perspectiva do estadista e este na perspectiva do pedagogo; vale dizer: a meta-exemplo e o projeto consciente de seu melhor fim.

É educação em sentido mais alto, mais que mero adestramento para o fazer, ou para o ter. É, pois, educação no sentido ético, como supremo bem e suma felicidade humana, o bom e o belo a serviço da formação do homem.

Segue-se que uma escola, sobretudo a universitária, muda e passiva, já não merece tal denominação, senão a de túmulo do progresso humano. Como nossa atual educação (em todos os níveis da sedimentação educativa) tem reagido ao patético quadro social (interferente no individual, é claro) que nos envolve? Ou na base do "salve-se quem puder" (bem ou mal dissimulado: por exemplo, "não nos envolvemos em política/cuidamos apenas de formar profissionais"); ou "fazemos o que é possível" (por exemplo: "trouxemos um político/um filme para discussão, temos uma disciplina específica...").

Ora, o Brasil dos excluídos, da violência e corrupção generalizada, da dissolução cultural..., mais do que episódicas preocupações ou campanhas pontuais, está a exigir de nossa educação em geral um constante exercício da reflexão ético-social perpassando todos os momentos da vida e na perspectiva da educação total e permanente, cuja iniciação se dá na escola que é, nada mais nada menos, o espaço inicialmente mais propício nesta paideia total. O grande educador Paulo Freire educa-nos ao proclamar: "Estou convencido da natureza ética da prática educativa"; mas, por certo, da ética universal, não da "ética do mercado". (Out.1999).

(*) Luiz Otávio de Oliveira Amaral é advogado militante, ex-professor de Direito na UnB e UDF, ex-diretor de Faculdade de Direito em Brasília. Atualmente leciona e é coordenador pedagógico da Faculdade de Direito da Universidade Católica de Brasília (UCB). Foi assessor de ministros da Justiça e da Desburocratizarão/Presidência da República. Autor de "Relações de Consumo" (4 volumes); "O Cidadão e Consumidor" (co-autor); "Comentários ao Código Defesa do Consumidor", coord. Prof. Cretela 
Júnior (Ed.Forense) e "Legislação do Advogado", MJ, 1985. Possui outras obras e vários artigos publicados sobre Direito, Educação e Ética.