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Última modificação em (mês/dia/ano/horário): 11/28/00 03:26:22

Movimento Nacional em Defesa
da Língua Portuguesa

NOSSO IDIOMA
A coragem de intervir

Lauro José da Cunha (*)

Se nós tentarmos entender a linguagem por uma perspectiva bakhtiniana, conceberemos a língua como uma arena onde se desenvolve a luta de classes. Para Bakhtin, a língua é sensível a toda e qualquer mudança e deslocamento social, assimilando e incorporando em seu interior os reflexos das variações mais sutis e imperceptíveis das relações sociais, que o tempo se encarregará de tornar visível e inteligível, configurando-se fatos, no futuro, com os quais dever-se-á lidar, não mais em sua condição inicial, mas já em conflito.

Com a linguagem é assim; por se tratar de um "inconsciente coletivo", como assim o chamou o autor, é algo abstrato, usada no nosso cotidiano, e que nos repassa a sensação de que não há a necessidade ou compromisso de estarmos atentos à forma que ela assume ou como é utilizada no nosso meio, acrescenta ainda a reflexão de que a língua tem estreita relação com a situação sócio-política, servindo para exprimir as relações de conflito de classe.

Lauro José da Cunha

Se utilizarmos essa concepção para avaliar a presença significativa de estrangeirismos na sociedade brasileira, entenderemos que essas influências, exposições, interferências, convivência e por fim presença de estrangeirismos na língua está apenas exprimindo uma mudança e deslocamento das ações sociais, e que ela está sendo sensível a essas mudanças, uma vez que não é neutra; aliás, é mais política do que muitos, que acreditam na importância relativa do problema, e que semelhantes reflexos nada têm de importante.

De alguma forma, esse cenário é rico em nos beneficiar com ilustrações da visão social do Brasil; resgatando uma outra consideração do autor citado, considera que a comunicação verbal, que é inseparável das outras formas de comunicação, "implica conflitos, relações de dominação e de resistência, adaptação ou resistência à hierarquia, utilização da língua pela classe dominante para reforçar seu poder etc."; nesse sentido, diz que essa mesma classe dominante tenta conferir ao signo ideológico (à palavra, à linguagem) "um caráter intangível e acima das diferenças de classe, a fim de abafar ou de ocultar a luta dos índices sociais de valor que aí se trava, a fim de tornar o signo monovalente".

É assim que tendemos a ver a presença constante e gradativa dos estrangeirismos no nosso meio como algo natural, não nocivo, "fruto da globalização", diriam outros, como se isso não significasse o próprio desequilíbrio das classes sociais, essa presença marca bem a distância de acesso que classes socialmente desfavorecidas têm dos recursos, bens e serviços por meio dos quais esses estrangeirismos chegam até nós.

Ser indiferente a essa realidade, como se ela não nos dissesse nada diretamente, ou nada tivesse a ver com nossa realidade, seria apenas referendar a atitude de condescendência com o sistema social que nos engendra, bem como de neutralidade política conveniente ou inconsciente, infelizmente.

Considerar irrelevante a enxurrada de estrangeirismos vem ao encontro de atitudes de manutenção do status quo; afirmar a diferença é negar a identidade; reconhecer que a linguagem reflete divergências sociais é um pressuposto de ter que encará-las; negar é preciso, e a identidade de nós brasileiros hoje é essa, refratada pela linguagem.

Temos atualmente a oportunidade de discutir que tal questão transcende o mero patriotismo ou purismo lingüístico, mais do que significar um outro sistema lingüístico, a língua carrega consigo ideologias.

O problema maior não é saber o gênero de palavras como HTML ou URL; a língua inglesa não dá a mínima para isso, o artigo que utilizam "é mágico", pode ser usado para quatro modalidades, masculino e feminino, tanto plural quanto singular; isso é problema para os países que importam tecnologia; preocupante, todavia, é pensar que não há a necessidade de discussão do excesso e das suas implicações na sociedade brasileira.

O objetivo ou lucro final não é criar uma "alfândega da palavra", como o fez a França, ao estabelecer uma entidade que procura estar sintonizada com as tendências de necessidades da língua e que apresenta recomendações oficiais (recommandation officielle) para palavras estrangeiras, como prêt-à-manger, como sugestão para fast-food; o importante é o despertar para a discussão e importância de se valorizar o uso efetivo de nossa própria língua; em um momento em que um número significativo de usuários tem acesso limitado às produções na própria língua, aceitar indiferentemente o excesso de estrangeirismos é potencializar as dificuldades de comunicação; como o disse Gnerre, "a linguagem constitui o arame farpado mais poderoso que bloqueia o acesso ao poder".

(*) Lauro José da Cunha é aluno do Programa de Pós-graduação em Lingüística e Língua Portuguesa da Unesp-Araraquara (em Araraquara/SP) e professor de Língua Inglesa da Universidade do Estado de Mato Grosso.