|
Movimento Nacional em Defesa
da Língua Portuguesa
|
NOSSO
IDIOMA
A coragem de intervir
Lauro José da Cunha (*)
Se nós tentarmos entender a linguagem por uma perspectiva
bakhtiniana, conceberemos a língua como uma arena onde se desenvolve a luta de classes. Para Bakhtin, a língua é sensível a toda e
qualquer mudança e deslocamento social, assimilando e incorporando em seu interior os reflexos das variações mais sutis e
imperceptíveis das relações sociais, que o tempo se encarregará de tornar visível e inteligível, configurando-se fatos, no futuro,
com os quais dever-se-á lidar, não mais em sua condição inicial, mas já em conflito.
Com a linguagem é assim; por se tratar de um "inconsciente coletivo", como assim o chamou o
autor, é algo abstrato, usada no nosso cotidiano, e que nos repassa a sensação de que não há a necessidade ou compromisso de
estarmos atentos à forma que ela assume ou como é utilizada no nosso meio, acrescenta ainda a reflexão de que a língua tem estreita
relação com a situação sócio-política, servindo para exprimir as relações de conflito de classe.
Lauro José da Cunha
Se utilizarmos essa concepção para avaliar a presença significativa de estrangeirismos na sociedade
brasileira, entenderemos que essas influências, exposições, interferências, convivência e por fim presença de estrangeirismos na
língua está apenas exprimindo uma mudança e deslocamento das ações sociais, e que ela está sendo sensível a essas mudanças, uma vez
que não é neutra; aliás, é mais política do que muitos, que acreditam na importância relativa do problema, e que semelhantes
reflexos nada têm de importante.
De alguma forma, esse cenário é rico em nos beneficiar com ilustrações da visão social do Brasil;
resgatando uma outra consideração do autor citado, considera que a comunicação verbal, que é inseparável das outras formas de
comunicação, "implica conflitos, relações de dominação e de resistência, adaptação ou resistência à hierarquia, utilização da língua
pela classe dominante para reforçar seu poder etc."; nesse sentido, diz que essa mesma classe dominante tenta conferir ao signo
ideológico (à palavra, à linguagem) "um caráter intangível e acima das diferenças de classe, a fim de abafar ou de ocultar a luta
dos índices sociais de valor que aí se trava, a fim de tornar o signo monovalente".
É assim que tendemos a ver a presença constante e gradativa dos estrangeirismos no nosso
meio como algo natural, não nocivo, "fruto da globalização", diriam outros, como se isso não significasse o próprio desequilíbrio
das classes sociais, essa presença marca bem a distância de acesso que classes socialmente desfavorecidas têm dos recursos, bens e
serviços por meio dos quais esses estrangeirismos chegam até nós.
Ser indiferente a essa realidade, como se ela não nos dissesse nada diretamente, ou nada
tivesse a ver com nossa realidade, seria apenas referendar a atitude de condescendência com o sistema social que nos engendra, bem
como de neutralidade política conveniente ou inconsciente, infelizmente.
Considerar irrelevante a enxurrada de estrangeirismos vem ao encontro de atitudes de
manutenção do status quo; afirmar a diferença é negar a identidade; reconhecer que a linguagem reflete divergências sociais é
um pressuposto de ter que encará-las; negar é preciso, e a identidade de nós brasileiros hoje é essa, refratada pela linguagem.
Temos atualmente a oportunidade de discutir que tal questão transcende o mero patriotismo ou
purismo lingüístico, mais do que significar um outro sistema lingüístico, a língua carrega consigo ideologias.
O problema maior não é saber o gênero de palavras como HTML ou URL; a língua inglesa não dá
a mínima para isso, o artigo que utilizam "é mágico", pode ser usado para quatro modalidades, masculino e feminino, tanto plural
quanto singular; isso é problema para os países que importam tecnologia; preocupante, todavia, é pensar que não há a necessidade de
discussão do excesso e das suas implicações na sociedade brasileira.
O objetivo ou lucro final não é criar uma "alfândega da palavra", como o fez a França, ao
estabelecer uma entidade que procura estar sintonizada com as tendências de necessidades da língua e que apresenta recomendações
oficiais (recommandation officielle) para palavras estrangeiras, como prêt-à-manger, como sugestão para fast-food;
o importante é o despertar para a discussão e importância de se valorizar o uso efetivo de nossa própria língua; em um momento em
que um número significativo de usuários tem acesso limitado às produções na própria língua, aceitar indiferentemente o excesso de
estrangeirismos é potencializar as dificuldades de comunicação; como o disse Gnerre, "a linguagem constitui o arame farpado mais
poderoso que bloqueia o acesso ao poder".
(*)
Lauro José da Cunha é aluno do Programa de
Pós-graduação em Lingüística e Língua Portuguesa da Unesp-Araraquara (em Araraquara/SP) e professor de Língua Inglesa da
Universidade do Estado de Mato Grosso. |