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Movimento Nacional em Defesa
da Língua Portuguesa
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NOSSO
IDIOMA
Formação da Língua Portuguesa
Neide Smolka (*)
Começaria dizendo que já em 1938, um
grande estudioso da Língua Portuguesa,
Cândido de Figueiredo, dizia: "Há estrangeirismos e estrangeirismos. Uns são imprescindíveis, e
fazem parte do idioma nacional; outros, convenientes, e do seu discreto emprego podem advir vantagens; outros, ainda, são apenas
toleráveis, e procede louvavelmente quem os dispensam; e muitos há, muitíssimos até, que só se empregam por indesculpável ignorância
ou por condenável desafecto à pureza da língua".
Naquela época, a crítica dizia respeito principalmente a termos
franceses e latinos, por razões óbvias. A França era então a nação que mais numerosas exportações lexicológicas fazia em relação à
língua portuguesa, tanto à falada em Portugal, quanto no Brasil. Quanto ao uso de palavras latinas, nessa primeira metade do século
XX, fala aquele escritor que, fora termos do latim utilizado pela Igreja e o chamado latim forense, é preciso que se tenha muito
cuidado em relação ao real significado do que se está dizendo, para não correr o risco de fazer uso de citações erradas ou
impróprias.
Digo isso para que todos nós estejamos cientes de que sempre houve
problemas gerados pela introdução de palavras estrangeiras em qualquer língua, principalmente na nossa que tem uma história muito
especial.
Pelo pouco tempo que disponho para falar com vocês, a primeira
dificuldade que sinto é a de como e a partir de que momento começo a contar a história da língua portuguesa.
Aqueles que fizeram Letras, hão de lembrar-se de uma disciplina que
até pouco tempo fazia parte do núcleo obrigatório do currículo daquele curso: Filologia Românica que, por serem poucos hoje, no
Brasil, os especialistas no assunto, deixou de ser oferecida em alguns cursos de Letras. Essa matéria nos ensina como o povo romano,
em suas conquistas, que vão desde o século III a.C. até o II d.C., foi introduzindo o latim em grande parte da Europa. E foi então
que surgiram as chamadas línguas neolatinas: o romeno, o dalmático, o rético, o sardo, o italiano, o provençal, o francês, o
catalão, o espanhol e o português.
Ora, como fui Titular de Filologia Românica, durante cerca de quinze
anos, na Universidade Mackenzie, posso afirmar a vocês que é bastante difícil conseguir passar em apenas um ano de aulas tudo o que
se sabe sobre o assunto. Vou dizer, portanto, apenas que os romanos chegaram à Península Ibérica em 195 a.C. e conseguiram
conquistá-la plenamente em 133 a. C.. Quando lá chegaram, a chamada Hispânia era habitada por iberos e celtiberos, povos bárbaros e
com civilização incipiente. Quando isso aconteceu, a língua até então falada naquela região não conseguiu resistir ao latim, língua
já bem definida tanto quanto à gramática, como a textos literários de grande valor.
Julgo importante também citar que, até o século VI d.C., se falou na
Península Ibérica o latim vulgar (latim falado pela plebe e que coexistia com o latim clássico, falado e escrito pelos cultos de
então). Não posso deixar de lembrar que, ao entrar o latim em qualquer região, o povo submetido passava a falá-lo, mantendo,
todavia, resquícios de fonética e fonologia, de morfologia, de sintaxe e mesmo de estilística de sua língua original. Daí advém o
que chamamos hoje de sotaque, sendo essa a razão principal das novas línguas (neolatinas) que vão surgindo.
'...Ego cartemiro et astrilli una cum
filiis meis fundaui eclesiam...' - Clique na imagem para ver em pormenor. É o mais antigo documento latino-português, de 870 d.C.
É interessante também passar a vocês que, entre os séculos VI e IX
d.C., as províncias conquistadas por Roma passam a falar o que se chama romance, que nada mais é do que o prenúncio do nascimento
das novas línguas que só passam a ser línguas de verdade, quando surgem os seus primeiros textos literários.
Sinto não poder conversar com vocês sobre os porquês da distinção que
vai aparecendo gradativamente entre a língua portuguesa e a língua espanhola, fato que começa a partir da invasão árabe no século V
de nossa era.
Gostaria de comentar, também, o que aconteceu com a língua portuguesa
quando, a partir do século XV, começaram os lusitanos suas conquistas na África e na América do Sul. Em recente viagem que fiz ao
Senegal (África) a convite da Unesco, para representar nosso País em um Fórum Internacional de discussão sobre a escravatura negra,
tive o grande prazer e a grande oportunidade de manter contato direto com representantes dos cinco países de lá que falam português
(Angola, Cabo Verde, São Tomé e Príncipe, Guiné-Bissau e Moçambique). E pude, então, sentir como falam a nossa língua. Mas, quem
sabe, não faltará oportunidade de passar aos meus conterrâneos o que lá vi e ouvi.
Como já disse antes, a história da nossa língua, por várias razões, é
bem complexa e original. Assim sendo, julgo mais interessante ater-me à problemática do desenvolvimento da língua portuguesa
especificamente no caso brasileiro, o que, acredito, vai deixar mais claro o porquê, sob o ponto de vista filológico, da abertura a
"empréstimos", necessários e desnecessários, que aqui existe.
Em primeiro lugar, de acordo com o que ensina Serafim da Silva Neto,
em seu livro Introdução ao Estudo da Língua Portuguesa no Brasil (1950), podemos dividir em três fases a sua história. A
primeira fase começa com o início da colonização (1532) até a expulsão dos holandeses de nossa terra (1654). A segunda vai até a
vinda da família real portuguesa para o Brasil (1808) e a terceira, daquele momento até os nossos dias.
A primeira fase é representada, em sua grande parte, pelo uso da
chamada "língua geral", baseada praticamente no tupi com influências de línguas banto e sudanesas da África. O português era falado
pelas famílias lusitanas que para cá vinham e começou a ser ensinada pelos jesuítas aos índios, tendo em vista a sua catequese.
Criou-se, dessa forma, um "linguajar de emergência", uma linguagem especial falada pelos mamelucos e mulatos e usada também pelos
mercadores nas suas viagens e pelos bandeirantes e outros aventureiros em suas expedições sertão a dentro.
'...eigreijas que foron de nosso
padre...' - Clique na imagem ver em pormenor
Já na segunda fase, a "língua geral" vai sendo pouco a pouco
desterrada, limitando-se a ser falada nas povoações do interior e nos aldeamentos dos jesuítas. Vai aumentando consideravelmente a
quantidade de imigrantes lusitanos, e são, por isso, instalados, cada vez em maior número, colégios para atenderem a essa população.
Surgem estudiosos e professores de nossa língua, como é o caso do Pe. Vieira. Ele próprio, em sua obra Sermões (1690),
comenta que a "língua geral" está desaparecendo e que se fala no Brasil, naquela época, além dela, mais quatro línguas: a
portuguesa, a etiópica (usada principalmente na Bahia pelos padres para catequizar cerca de vinte e cinco mil negros que lá viviam)
e duas indígenas (tupi e tapuia, utilizadas no interior).
Essa segunda fase representa a real preparação para a instalação
definitiva da língua portuguesa no Brasil, o que vai acontecer, de fato, com a vinda da Família Real, em 1808, quando tem início a
terceira fase que perdura até os nossos dias.
Como se pode ver, a língua portuguesa foi entrando no Brasil
gradativamente, sofrendo influências indígenas e africanas, o que não impediu que, principalmente pelo fato de não terem sido
línguas escritas o tupi, o banto e os vários falares sudaneses, o português saísse vitorioso como nossa língua e mais, como o maior
responsável pela unidade nacional de nosso País.
Aliás, no Brasil, não existem dialetos, mas apenas falares típicos em
regiões distintas. A estrutura gramatical é totalmente a mesma. As diferenças regionais dizem respeito apenas à área da semântica.
A propósito, julgo interessante mostrar a vocês pelo menos um exemplo
de falar típico de um de nossos Estados. Há alguns anos estudei os falares de alguns deles e pedi ao jornalista Walter Sampaio que
criasse algumas estórias em que aparecessem termos típicos de cada região. Vou ler uma delas para vocês. Ouçam com atenção, pois
assim vão ver praticamente a diferença entre dialeto e falar. Escolhi um trecho que apresenta o linguajar do Rio Grande do Norte:
"Ele queria ser bandejo. Pensava que o melhor caminho era bancar o mitrado porque
assim mostraria tenência e, quem sabe, as pessoas vissem nele borogodó. Mas, o grande problema para atrapalhar seus planos é que ele
estava enfadado. E tinha também muita pissica..."
Vamos traduzir?
"Ele queria ser famoso. Pensava que o melhor caminho era bancar o ladino porque
assim mostraria sabedoria e, quem sabe, as pessoas vissem nele algum atrativo. Mas, o grande problema para atrapalhar seus planos é
que ele estava em má situação financeira. E tinha também muita falta de sorte..."
A meu ver, é bom salientar que, quando se estuda a formação de uma
língua, são utilizados, em filologia, três termos técnicos: stratum, substratum e superstratum. Em Filologia
Românica, por exemplo, o latim é o stratum, o substratum, no caso específico da Península Ibérica, era a língua falada
pelos iberos e celtiberos quando os romanos lá chegaram e o superstratum foram as línguas que influenciaram o latim já
instalado na região.
Inquirições, de D. Dinis,
primeiro documento em papel em Portugal, em 1288. Clique na imagem para ver em pormenor
Se estivermos tratando de Filologia Portuguesa, o real substratum do
português falado no Brasil foram as línguas indígenas, o nagô, o quimbundo sobretudo o tupi, uma vez que os índios eram autóctones,
e a primeira leva de escravos negros trazidos para cá data de 1538. No século XVI, chegaram ao Brasil cerca de três mil negros que
foram espalhados por toda a colônia, num total de mais de cinco milhões para aqui trazidos, entre aquele século e o século XIX.
Quanto aos superstratos que nos legaram influências de todo o tipo,
temos vários povos que aqui estiveram, primeiro lutando para conquistar regiões de nosso país, como holandeses e franceses, por
exemplo, e, depois, imigrantes, principalmente italianos e alemães, que vieram para trabalhar sobretudo na agricultura.
Nossa língua é, portanto, aberta a todo o tipo de empréstimos e pelas
mais diferentes razões. Do século XVI até praticamente metade de nosso século, as palavras inseridas em nosso vocabulário o eram em
geral por motivos sócio-culturais, religiosos e comerciais. Com o crescimento cada vez maior dos Estados Unidos, principalmente
depois da Segunda Grande Guerra Mundial (1939-1945), lá florescem a ciência e a tecnologia e termos ingleses passam a ter
significado internacional. E nós, brasileiros, também fomos aderindo a tais empréstimos e passamos a usar um sem número de
neologismos de origem anglo-saxônica.
Ora, como já tive oportunidade de ressaltar no início deste trabalho,
já dizia Cândido de Figueiredo, em 1938, que uma língua usa de vários os tipos de estrangeirismos, alguns até necessários, mas
outros que são de fato abusivos. E é o que está acontecendo hoje em nosso País.
Vou tentar ver por partes esse problema, mesmo porque ele extrapola o
campo semântico. O caso brasileiro, por exemplo, é bastante complexo. Já tive oportunidade de dizer várias vezes que não existe o
que poderíamos chamar de raça brasileira e que nós somos resultado de uma imensa e intensa miscigenação de vários povos. Assim
sendo, a língua aqui falada sofreu, ao longo do tempo, forte influência das línguas faladas pelos povos que para cá vieram e tal
influência não diz respeito apenas ao campo semântico, mas em relação a todos outros aspectos em que pode ser estudada uma língua.
Para não me alongar sobre esse assunto, lembraria apenas que, na linguagem coloquial, em nossa concordância nominal, há grande
tendência de não pronunciarmos o -s (s final). Tal fenômeno ocorre, é claro, acima de tudo, pela falta de cultura da população, mas
é influenciado também pela língua italiana, cujo plural não é marcado pelo -s, como pelo francês que geralmente não
pronuncia as consoantes finais.
Sobre o uso de estrangeirismos introduzidos em nossa língua, acredito,
em última análise, que seja um problema de bom senso, uma vez que vivemos num processo cultural constante e que é nosso dever como
cidadãos impedir qualquer invasão abusiva de termos ou expressões alienígenas, se fazem parte de nosso vocabulário corrente palavras
com o mesmo significado. Concordo plenamente com o que dizem tanto o Isto é, no artigo "Portuguese, Please" e a
Revista Veja, no artigo "O bom senso está on sale". Todo radicalismo é perigoso, quanto mais se estamos no campo da
comunicação.
Palavras como "hôtel", como "football", entre outras,
apesar de haver correspondentes em português - hospedaria, albergue, pousada para "hôtel" e ludopédio ou balípodo para "football"
- , foram aportuguesadas e adotadas pelo povo em geral.
Já expressões como "Shopping Center", em geral internacionalmente
adotada tem, pelo menos a meu ver, uma boa correspondência em português: Centro Comercial. Nesses casos, eu daria preferência ao
emprego da nossa língua. Dentro dessa mesma linha, temos a palavra já aportuguesada e dicionarizada esnobe que vem do inglês “snob”
e significa pessoa pretensiosa, pessoa afetada.
Estariam, com certeza, dentro do uso abusivo "on sale" (=
liquidação), "off" (= desconto).
Problemas como esses aparecem em todas as línguas. No próprio texto da
Veja, diz o professor John Robert Schmitz, da Unicamp que mesmo na França, o país que menos aceita empréstimos, apesar dos
esforços da Academia Francesa de Letras, não conseguiu erradicar da língua a palavra inglesa “weekend”. E é interessante que essa
mesma palavra começou a ser empregada aqui, mas o povo deu preferência ao nosso fim de semana.
No tocante à terminologia da Informática, é claro que é totalmente
possível passar todas as expressões em inglês para o português. Mas é preciso que se pense que toda evolução cultural não se
processa de imediato. Basta lembrar, à guisa de reflexão e mesmo de comparação, que a Independência do Brasil se deu em 1822 e que
foi só em 1836 que surgiram os primeiros textos literários de nacionalismo exacerbado, através do Romantismo.
Os estudos superiores de Informática tiveram início em 1971, lembro-me
bem, pois fui eu quem dirigiu, no Brasil, o primeiro Vestibular para candidatos ao Curso de Tecnologia em Informática, na
Universidade Mackenzie. Tais estudos tinham, para nós, toda uma aparência estranha e estrangeira, com Fortran, Basic etc. E a
nomenclatura americana foi ficando. Todos os que fazem uso do computador se foram habituando a dizer "deletar", dar um "enter",
"page up" e outras expressões desse tipo. É evidente que está mais do que hora de traduzirmos, nos equipamentos que compõem
aquela máquina, para o português as palavras e as abreviações que nela existem, desde que seja peça de origem brasileira.
Para finalizar, como ficou aqui exaustivamente demonstrado, não se
pode radicalizar, não só no tratamento do assunto aqui abordado, formação da língua portuguesa, como em nenhum outro no campo das
idéias. Não existe nenhuma causa que justifique tal postura, tal engajamento, tal dogma.
O Movimento Nacional de Defesa da Língua Portuguesa insere-se nessa
linha de ação e por ela deve pautar-se. Como a própria língua que busca defender, com tenacidade, ele e ela são, sem dúvida alguma,
um processo cultural. E desse processo, com certeza, tem de ser contida a invasão abusiva, a exploração da ignorância do povo, a
desculpa de pretensas leis de mercado, até mascaradas com esse estrangeirismo chamado ou apelidado de "marketing".
A chamada globalização, com o mundo ligado pela Internet, não é válida
como justificativa para um suposto processo de aculturação universal pela linguagem da Informática. Em verdade, o fenômeno
circunscreve-se a uma tecla de computador e a essa fantástica rede de computadores interligados. É apenas ali que funciona essa
língua, ou melhor, essa linguagem universal. Tirá-la dali e espalhá-la nos processos lingüísticos culturais no dia-a-dia das
pessoas, é atribuir-lhe poder que ela não tem. O mito, assim, vira mistificação.
Nossa língua é rica, linda, poderosa como instrumento de comunicação.
Por isso, ela pode perfeitamente prescindir de vocábulos, expressões idiomáticas ou mesmo exóticas de outras realidades que nos
agridem.
Agridem nossa inteligência, nossa compreensão. Dão estranhas e até
ridículas denominações a hábitos simples de comportamento social.
Somos contra essa realidade cultural? Claro. Mas dentro de sua
verdadeira dimensão. Se neste trabalho, que alonguei acima do que devia, consegui demonstrar a tese como contribuição ao momento e
ao Movimento, sinto-me extremamente gratificada.
(*) A professora-doutora Neide
Smolka é mestra em Educação, professora titular de Filologia Românica da Universidade Mackenzie, doutora em Língua e Literatura
Grega pela Universidade de São Paulo. Palestra promovida em 31/8/2000 pelo MNDLP com o apoio do
Sesc/Santos.
O texto desta palestra está disponível em arquivo no
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