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Movimento Nacional em Defesa
da Língua Portuguesa
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NOSSO
IDIOMA
O Descobrimento
Luiz A.G.Cancello (*)
Estou em casa, é quase madrugada. Tenho vontade de navegar. É
preciso ligar o computador (ou a computadora?). Espero a página do provedor aparecer enquanto o browser carrega (arranca, diriam os
portugueses). Ligo-me à Internet. Vou a Portugal, a Lisboa, entro no site da Expo98, digito "Brasil" no campo da procura (num motor
de busca, assim o chamam os irmãos de além-mar), clico o mouse... ou, como preferem aqueles, "premo o botão do rato",
deparo-me com dados sobre Pedro Álvares Cabral, inclusive uma gravura retratando o comandante.
Abro o retrato em uma tela (ou seria um ecrã?) maior. Aqui está ele, composto em 1024x840
pontos e 16 milhões de cores. Perde a nobreza e a textura da impressão, é verdade; ganha peso e luminosidade, sugeridos por um
sombreado de fundo. Salvo o arquivo gráfico em meu HD, ou fica mais elegante dizer que guardo o ficheiro gráfico no meu disco?
De início, o navegador (Cabral, não o Netscape) sente um estranhamento, ser descoberto por
um brasileiro sentado em nau de silício, mas logo se acostuma. Não é a primeira vez que o tiram virtualmente de sua casa e o levam
para outros lugares da Terra; em vida fez uma única grande viagem marítima, agora pesquisadores e curiosos levam-no pelos oceanos
percorrendo fios de cobre e fibras óticas. Tantos anos nas águas, tão poucos segundos para ser carregado.
Curioso, pergunta-me sobre esta gente de cá, como foram os conta(c)tos nestes últimos 500
anos, se somos parecidos com os portugueses, pois deles descendemos, ao que parece usamos quase o mesmo di(c)cionário (não
concordamos em todos os nomes, afinal há entre nós o grande oceano e suas veredas), somos lá fisicamente meio semelhantes. Digo eu
que as coisas não são tão simples, que alguns brasileiros são um pouco diferentes, mais maltratados por sua pobreza, tantos
marginalizados, sem acesso aos meios eletrônicos, ou electrónicos, que vá, mas alguns de nós vamos lutando por uma igualdade a ser
atingida.
Pergunta-me: E este país é muito grande? Tem muita gente? Vai até os confins que tratamos em
Tordesilhas? Abro outra janela do browser, ou navegador, entre tantos bookmarks (???) acesso o provedor que hospeda
(alberga! alberga!) a Home Page (Morada Virtual, vi este nome simpático em páginas portuguesas, o caro comandante me entende?) do
Movimento dos Sem-Terra. Vou rolando o documento, digo, deslocando o documento, salvo as fotos de uma grande passeata em dire(c)ção
à capital do país em um dire(c)tório apropriado. Não, caro Cabral, não salvo nada nesse sentido, continuará a haver muita terra para
poucos, não tenho meios para mudar isso, os modernos poderes virtuais são limitados. Quis apenas dizer que guardo as imagens na
memória, a do computador, na minha já estão guardadas desde há muito.
O Tratado de Tordesilhas, meu amigo, não resistiu à História. Fomos entortando a linha
imaginária para oeste, chegamos perto da terra dos fabulosos Incas, tomamos posse de uma imensa floresta que há por aquelas bandas e
dali ao norte, onde corre o rio mais caudaloso do planeta. O que fizemos com tanto chão e tanta água? Na verdade, até hoje não
sabemos bem o que fazer.
Ah, quer ver como está o lugar onde suas caravelas aportaram? Pois não, é preciso achar um
site de Porto Seguro. Sempre temos o desejo de voltar às origens, certo? Vamos novamente ao premer do rato. Aí está uma parte da
nossa bela juventude, alguns a chamam de "beautiful people", veja essas moças tão formosas, apenas um pouco mais vestidas do
que aquelas nativas encontradas com espanto por seus marujos. Sim, é o mesmo país, uns escutam sertanejo, outros ouvem axé, e nem
chegamos ao pagode, temos também o rock, o rap e o funk, neste final de milênio a idéia de colonização sofreu
grandes mudanças, como pode ver.
Um pequeno ícone piscante interrompe o tour, dizendo-me para ligar o programa de e-mail
(desculpe-me o lapso, correio electrónico) para fazer o download, ou melhor, aceder a uma mensagem recém-chegada ao provedor. São
palavras de uma amiga de Coimbra, perguntando a quantas anda o artigo que me encomendaram sobre o Descobrimento. Divido a janela em
dois, Cabral em cima e o Brasil na parte de baixo, fico pensando em responder-lhe que deveríamos descobrir outros brasis, alguns que
muitas vezes cobrimos com a indiferença, outros de que nem sabemos, e devemos também cada vez mais descobrirmo-nos, nós e os irmãos
d'além-mar, agora que a Internet encurta o Atlântico que nos separa, afinal sabe-se lá quem descobre quem, há tanta viagem a ser
feita!
Ocorre-me então a pergunta crucial, aquela que há cinco séculos nos intriga. Pergunto ao
comandante se a rota que seguiu pretendia mesmo atingir Calicute, ou se já sabia da nossa existência, se queria desde o começo
descobrir-nos. Espero ansioso a palavra decisiva, tento sondar-lhe a expressão, mas o velho marujo está sério, com o semblante
imóvel, não consigo entendê-lo. Passará por seu rosto um sinal de dúvida? Quero ouvi-lo, anunciar enfim a verdade original para meus
compatriotas e para minha correspondente, mas a expressão do comandante está inescrutável. Aciono o comando para maximizar a janela,
quem sabe de perto ele me responde, mas vejo que a máquina travou. As teclas estão mudas, seja por recusa, espanto ou problemas no
hardware, como dirão isto meus amigos de lá?
A qualquer momento posso recarregar os arquivos (ficheiros, vá lá) e fazer o caminho de
novo, redescobrir tudo, mas não agora. O computador está funcionando bem, o travamento foi um episódio isolado, e a linha
telefônica, a esta hora, não costuma dar problemas. Intrigado com tudo o que viu, evitando uma difícil escolha entre o acaso e o
propósito, Cabral renunciou à virtualidade e foi-se embora. Vou deixá-lo em paz. Talvez eu devesse ter apresentado o país de maneira
diferente, desfilei com rapidez uma série de imagens, um fidalgo do início da Renascença portuguesa não poderia estar habituado ao
estilo video-clip pós-moderno. E mesmo que me demorasse em infinitas janelas, quem poderia abarcar 500 anos em um rato?
A madrugada já vai longe, a conta da Telefónica já vai alta, encerro a viagem, vou dormir
com a sensação de que alguma coisa ficou por ser feita. Há muito que navegar. É preciso construir novas naus.
(*) Luiz A.G.Cancello é psicólogo e escritor em Santos.
Este texto foi publicado no jornal A Tribuna de Santos em abril de 2000. |