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Movimento Nacional em Defesa
da Língua Portuguesa
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NOSSO
IDIOMA
Pensar - Língua na berlinda
Especialistas discutem formas de enfrentar os estrangeirismos que tomam conta do português
Nahima Maciel (*)
Um reclame poderia ser um preconício. Fazer uma
massagem seria bem menos relaxante se fosse uma premagem, e usar um carnê de anotações, então, se tornaria uma complicação
caso o caderninho levasse o nome de choribel. As palavras em itálico sequer figuram no "pai dos burros", o dicionário da
língua portuguesa. Mas já foram cogitadas para substituir os vocábulos de origem estrangeira que hoje integram o léxico português.
Não deu certo.
Reclame, carnê e massagem são, sim, palavras emprestadas de outra língua — a francesa — mas
isso quase não é lembrado no momento da pronúncia. São vocábulos incorporados, perfeitamente compreensíveis e que há muito figuram
em nossos dicionários. Já de preconício, premagem e choribel — supostas versões ou traduções — pode-se dizer
que não existem. E não existem simplesmente porque não funcionam.
O uso de palavras estrangeiras na língua portuguesa esteve na mesa de debates do seminário
Idioma e Soberania — Nossa Língua, Nossa Pátria, que lotou o auditório Nereu Ramos, na Câmara dos Deputados, nos últimos dias 14 e
15. Os doze conferencistas — entre escritores, professores, jornalistas e embaixadores — passaram mais de 12 horas em debates e
palestras discutindo a presença da língua portuguesa no planeta e propondo maneiras de preservar e difundir o idioma de Camões.
O português, falado hoje por 200 milhões de pessoas, estaria ameaçado pela presença, muitas
vezes estapafúrdia e freqüente, de palavras em inglês no vocabulário e na ortografia? Ou esse processo é natural e aceitável, já que
outras palavras-chave, como globalização e internacionalização, se tornaram íntimas do vocabulário português? Sancionar um acordo
ortográfico, como o projeto de lei para enfrentar a "desnacionalização lingüística" proposto pelo deputado Aldo Rebelo (PC do B),
seria uma solução?
Entre os filólogos participantes predominaram argumentações ponderadas. Os jornalistas, mais
preciosistas, preferiram falar dos pequenos assassinatos contra a língua. Já os embaixadores de Portugal, Francisco Knopfli, e da
França, Alain Rouquié, defenderam métodos de preservação do idioma com os exemplos concretos da Comunidade dos Países de Língua
Portuguesa e o projeto político da francofonia.
Os lingüistas presentes ao seminário não acreditam em ameaças ou invasões. Entendem o
estrangeirismo como conseqüência natural das transformações da língua. Afinal, língua viva é aquela que muda, incorpora, transforma
e se deixa transformar. A exposição de Volnyr Santos, professor de língua portuguesa na Pontifícia Universidade Católica do Rio
Grande do Sul, ilustrou como os estrangeirismos são inevitáveis e muitas vezes bem-vindos.
O professor lembrou que grande parte das palavras estrangeiras hoje incorporadas entraram
para a língua portuguesa, no Brasil, com o modernismo da primeira metade do século 20. Apesar do nacionalismo dos modernistas, os
estrangeirismos passaram a figurar no vocabulário dos literatos como uma expressão clara do desejo de reforma e vivência da língua.
Era a idéia antropofágica: se apropriar, destruir para reconstruir. E, na reconstrução, muitas expressões acabaram ficando.
É o caso das palavras citadas no início deste texto. Os substitutos propostos resultam de
pesquisa realizada pela equipe de Volnyr Santos para identificar a possibilidade de traduzir termos estrangeiros já incorporados à
língua portuguesa. Durante o seminário Idioma e Soberania, o professor gaúcho apontou algumas razões para a presença dos
estrangeirismos com argumentações que podem chocar o mundo literário.
O português, nascido como uma língua prática, usada por mercadores e navegadores, teria
impossibilitado a existência de grandes filósofos lusófonos. A pouca capacidade de abstração do português seria a causa. Para
solucioná-la, veio o empréstimo de termos e expressões estrangeiras. E mais: de todas as línguas nascidas do latim vulgar, o
português é a mais nova e por isso ainda está em fase de construção. Longe do exemplo francês, que pode ser considerada uma língua
acabada e uma das mais resistentes a palavras estrangeiras, o nosso idioma é deficiente. "Os estrangeirismos são testemunho de
competência lexical insuficiente", explica o professor Volnyr.
Cultura em crise - Além disso, mudanças na ortografia não implicam mudanças
lingüísticas. Evanildo Bechara, professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e membro da Academia Brasileira de Filologia,
apontou a ortografia como elemento periférico à língua. Preservar a unidade lingüística sim, mas sem esquecer que ela é fruto de um
fenômeno socio-cultural e acompanha o destino do povo que a fala. E a crise na língua portuguesa? Bechara, autor da Moderna
Gramática Portuguesa, nega a existência de qualquer crise. "Não é a língua que está em crise, é a cultura do povo", garantiu.
Essa cultura se reflete também no estrangeirismo. Até que ponto os empréstimos feitos a
línguas outras que a de Camões podem ser considerados saudáveis? O uso excessivo e desnecessário de estrangeirismos, além de
esdrúxulo, pode tornar impossível a compreensão, especialmente se assimilados em sua forma original. É o caso quando economistas
falam em trade-off, profissionais de moda citam low profile e lojas de disco exibem anúncios como CDs/40% Off.
No entanto, filólogos concordam com a necessidade do empréstimo em vocabulário técnico-científico para idéias desenvolvidas em
outras línguas.
O jornalista Eduardo Martins, autor do manual de redação de O Estado de São Paulo,
apresentou exemplos de anúncios publicitários e títulos de jornais em que expressões estrangeiras tomam o lugar do bom e claro
português. "Numa língua rica como a nossa, com 400 mil palavras, qual a necessidade disso?"
Para Arnaldo Niskier, ex-presidente da Academia Brasileira de Letras (ABL), respeitar a
norma culta nos códigos escritos está entre as melhores formas de preservação do bom português, mas não se pode fazer vista grossa
às deficiências no sistema educacional brasileiro. "Simplificar a nomenclatura da língua portuguesa ajudaria a aliviar a memória de
nossos alunos", acredita Niskier.
O que pode parecer uma heresia nada mais é que o processo de evolução natural da língua.
Mexer em nomenclaturas significa também incorporar e legitimar mudanças impostas por quem vive a língua e com ela constrói sua
identidade. Prova disso está no Dicionário editado pela ABL. Há 15 anos fora do mercado, a obra volta às livrarias a partir de
março, inteiramente revisada. Aos 72 mil verbetes originais foram acrescentados 78 mil novos vocábulos e expressões. O número de
verbetes confirma a afirmação de Evanildo Bechara: "O que caracteriza a língua é o que caracteriza o homem, ou seja, a diversidade".
Francês ainda influencia o mundo - Catarina da Rússia, esposa do imperador Pedro, o
Grande, só falava a língua materna com os criados. Longe dos plebeus, a imperatriz preferia o francês. Na época, séculos 18 e 19,
ser francófono funcionava como um passaporte para o mundo ocidental. O francês era o idioma da cultura por excelência, do saber por
rigor e da elegância por costumes. Ou, em linguagem contemporânea, constituía a língua da globalização. Passados pouco mais de dois
séculos, o francês perdeu espaço para o inglês, mas não deixou de lado sua hegemonia na influência em outros idiomas.
No livro Palavras sem Fronteiras, Sérgio Correa da Costa, ex-embaixador brasileiro em
Washington e há 12 anos residente na França, recuperou três mil palavras que circulam livremente entre 46 idiomas. Se vivesse hoje,
Catarina da Rússia provavelmente falaria inglês, mas ainda seriam vocábulos franceses os que mais veria estampados em revistas e
jornais. Lançada esta semana pela Academia Brasileira de Letras e Academia Francesa no Rio de Janeiro, a obra recebeu o prêmio Grand
Prix 99 do Institut de France.
Das três mil palavras identificadas por Sérgio, principalmente na imprensa mundial, 1.420
são francesas e 1.150, inglesas. Apelidadas de "sem fronteiras", essas palavras se tornaram universais e compreensíveis em 46
idiomas. Sérgio acredita que a influência do francês esteja ligada ao caráter de abstração da língua. "São em grande parte noções de
sentimentos, situações, nuances, semitons, insinuações", explica. Para expressões como rendez-vous, fin de siècle e
femme fatale não há tradução capaz de carregar a mesma conotação que a francesa. "Então por que não deixar logo a femme
fatale com tudo o que ela traz...", sugere o escritor. Em segundo lugar, o inglês seria, seguindo os resultados da pesquisa de
Sérgio, o idioma para definir objetos ou situações precisas. É o caso de hambúrguer, check-in e check-out.
Além da surpresa do francês como língua de maior influência, o escritor esbarrou no latim, a
terceira na lista das mais presentes em outros idiomas. Do latim, considerado um idioma morto, Sérgio só pesquisou as palavras
conservadas intactas. Não são, portanto, palavras de origem latina. "Não me interesso por etimologia, porque essa é uma questão que
nunca acaba, mas pela forma original da palavra", avisa. Os vocábulos latinos foram colhidos na imprensa contemporânea.
Enquanto isso, o alemão e o russo, símbolos de culturas européias de grande influência,
pouco aparecem. Na verdade, as duas línguas importam mais palavras do que exportam. À frente dos idiomas eslavos e germânicos, estão
três outros originários do latim. Italiano, espanhol e, por último, o português, também têm suas expressões influenciando idiomas
alheios.
Dispostos em ordem alfabética, os vocábulos de Palavras Sem Fronteira têm tudo para
formar uma verdadeira Torre de Babel. Mas a homogeneidade de compreensão nas outras línguas garante o entendimento universal. Sérgio
afirma que qualquer leitor de uma das 46 línguas estudadas tem referências suficientes para entender todas as três mil palavras.
(N.M.)
SERVIÇO
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Palavras sem Fronteiras
Primeiro livro de Sérgio Correa da Costa. 82 páginas.
Lançamento Editora Record.
R$ 60,00. Ainda não disponível nas livrarias de Brasília. |
(*) Nahima Maciel é jornalista do jornal
Correio Braziliense, do Distrito Federal, que publicou este artigo na edição de 19/3/2000,
caderno Dois. |