Arnaldo Niskier (*)
Uma saudável epidemia tomou conta da imprensa
brasileira. Os grandes jornais publicam alentadas seções de valorização da língua portuguesa, que alguns até ajudam a
abastardar com sua crônica e indesculpável falta de cuidado. Quando sai na machete do jornal que "Ronaldinho marca gol de
placa na Itália", não há quem se choque com o lamentável cacófato antes que a página seja definitivamente impressa?
Desses tempos saudáveis de reação participa também a Folha, com sua oportuna e bem
escrita ação "Inculta & Bela", assinada pelo competente Pasquale Cipro Neto, que também produz em O Globo o "Ao pé da
letra".
O professor Sérgio Nogueira é autor de "Língua Viva", no Jornal do Brasil, enquanto
Napoleão Mendes de Almeida, durante muitos anos, deu lições admiráveis em O Estado de São Paulo. O jornal carioca O
Dia presta a sua contribuição aos domingos, com o "Na ponta da língua". E há outros exemplos por aí.
A que se deve atribuir tamanho e súbito interesse? Numa audiência recente com o Presidente
Fernando Henrique Cardoso, ao receber a nova diretoria da Academia Brasileira de Letras, o tema aflorou com naturalidade, ao
ser comentada a elaboração do "Dicionário da ABL", que está sendo tocada pelos especialistas Sílvio Elia, Antônio José Chediak
e Evanildo Bechara, professores do colégio Pedro 2º, mais Diógenes de Almeida Campos (representante da Academia Brasileira de
Ciências).
Arriscamo-nos a uma interpretação, sempre possível de discussão. Em primeiro lugar, pode-se
registrar o fato, facilmente comprovável, de que nunca se escreveu e falou tão mal o idioma de Ruy Barbosa. Culpa, quem sabe,
da deterioração do nosso sistema de educação básica.
Em segundo, o pouco apreço que devotamos ao gosto pela leitura. Nosso índice per capita
mal alcança dois livros por habitante; na França, por exemplo, oscila em torno de oito.
Não se pode estranhar a afluência de interessados a espaços culturais como o Centro Pompidou,
em Paris, por onde transitam diariamente cerca de 25 mil pessoas. Tudo feito de modo científico, para fazer com que os
usuários se interessem, desde cedo, pelos mistérios da leitura. O atelier des enfants é simplesmente genial; dá gosto
ver as crianças às voltas com os materiais impressos, ricamente ilustrados, competindo com os vídeos em nítida vantagem.
Em terceiro lugar, para não ir muito longe, podemos citar a "contribuição" dos meios
televisivos. Donos de uma força descomunal, salvo as exceções de praxe, como os programas gerados pela TV Cultura de São
Paulo, praticam um magistral desserviço à educação brasileira. Comunicadores falam mal, atores não se expressam adequadamente,
dublagens são feitas de forma chula, programas infantis deseducam - o que se pode esperar desse triste universo?
A classe dita culta mostra-se displicente em relação à língua nacional, e a indigência
vocabular tomou conta da juventude e dos não tão jovens assim, quase como se aqueles se orgulhassem de sua própria ignorância
e estes quisessem voltar atrás no tempo.
Novas formas de regência verbal, são adotadas, e, também por influência do economês, todos
"oportunizam", "absolutizam", "otimizam", "a nível", disso e daquilo e "colocam" perguntas e dúvidas "enquanto" alunos...
Para que estudar verbos irregulares se é mais fácil dizer "interviu" ou "manteu" ou, ainda,
descobrir outras utilidades para o "aliás" e o "inclusive"? E o triste "houveram"?
Cursos superiores de pedagogia e de direito se omitem no estudo da língua portuguesa. Esses
cursos, mais que os outros, deveriam ser os primeiros a cultivá-la - se não por sentido cívico, por força do seu dever e da
sua função junto à sociedade.
Hoje, no Brasil, há "butiques" e não lojas; multiplicam-se os nomes de fantasia em inglês e
francês, como "Design", "Fast Man", "Déjà Vu", "Crazy Machini", "Company". Lojas para a classe alta ostentam seu pedigree
em palavras estrangeiras e preços altos. Fachadas de prédios sofisticados não se contentam com uma numeração correta e
conforme às posturas municipais. É preciso que se distingam de outras por inspirações estrangeiras.
Os chamados anglicismos estão, entre nós, nacionalizados e incorporados ao dicionário por
transformação semântica ou morfológica: bife, clube, bonde, dólar, iate, teste não agridem mais a língua nacional.
Também não se podem ignorar a experiência tecnológica e científica e as relações comerciais,
políticas e diplomáticas, que não prescindem de expressões como blue chip, spread, prime rate, bit,
software e muitas outras.
Essas expressões pioneiras, expressivas e sintéticas, sem similares ainda em nossa língua,
não chegam a arranhá-la. Constituem um jargão especializado, que não interessa à população em geral, mais preocupada com o
salário mínimo e os preços do arroz e do feijão...
A conclusão é que se deve cuidar dessa matéria de forma inteligente, sem patriotadas, mas
com a objetividade, no sentido de valorizar o idioma de Machado de Assis e Eça de Queiróz. Se a nossa pátria é a língua
portuguesa, por que não cuidar dela?
(*) Arnaldo Niskier, professor e escritor, é
presidente da Academia Brasileira de Letras e membro do Conselho Nacional de Educação. Texto publicado na coluna
Opinião do jornal Folha de São Paulo em 15 de janeiro de 1998. |