Terezinha Tagé (*)
Colaboradora
"A videoescritura permite desfrutar melhor a própria bagagem cultural. Mas
provavelmente o vocabulário de quem escreve se tornará mais pobre"
Sergio Lepri, ensaísta italiano
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Hoje o computador permite escrever de um modo ágil, mais
claro, muito próximo da linguagem falada no nosso cotidiano. É o que costumamos chamar de vantagens da videoescritura, palavra
inserida no nosso universo vocabular neste fim de século [N.E.: século XX], como representação de
um gesto cada vez mais freqüente e característico.
Sobre este tema ouvimos as mais diferentes opiniões. Uma parte dos usuários do computador
limita-se a compará-lo com uma máquina de escrever. Outros preferem aproveitá-lo para trabalhos de contabilidade, de
arquivamento de informações ou de criações gráficas em geral. Em todos esses modos de relacionamento com esta máquina existe uma
preocupação comum: quanto e como a videoescritura influi na maneira de produzir textos, isto é, no vocabulário e no estilo de
quem escreve?
Os neurobiólogos e os neurolingüistas explicam que há cerca de vinte séculos a invenção do
alfabeto fonético dominou o sistema neurológico da leitura. Neste caso há uma prioridade da análise seqüencial e temporal em
todo o processo de elaboração dos atos de ler e escrever. Quando este ato é praticado no computador, há uma mudança desta
situação. A predominância recai sobre a análise visual e espacial.
Ilustração do cartunista Seri, publicada com o artigo em A Tribuna
Esta modificação na diretriz da escritura, que fazemos geralmente da esquerda para a direita, pode
mudar da direita para a esquerda. Isto provoca uma lateralização diferente no funcionamento do cérebro. Como conseqüência, nossa
estrutura cognitiva fica modificada. Passamos a compreender o sentido das coisas de um modo distinto. As mensagens lidas ou
ouvidas são interpretadas pelo conjunto apresentado. Por este motivo surgem desentendimentos e choque de valores entre os que se
expressam nestes sistemas opostos, tanto para a escrita quanto para a leitura ou a simples comunicação oral. Do mesmo modo,
algumas pessoas, após o uso freqüente apenas da escrita no computador, não conseguem ou têm dificuldade de praticar outros tipos
de leitura e escrita.
Outro ponto a ser considerado refere-se à interferência que o instrumento empregado para
escrever exerce sobre a forma aparente da escrita. Ao contrário do que possa parecer, há uma grande diferença entre o que foi
escrito à mão e o que foi digitado ou datilografado. Da mesma maneira que existe uma marca especial no resultado e no processo
empregado por alguém que se utiliza da pluma, da caneta-tinteiro, da caneta esferográfica, do lápis, da máquina de escrever com
ou sem corretivo, também há especificidades na utilização do computador. Para cada um destes meios, há uma postura psicológica
própria, desencadeada por um movimento particular do cérebro.
Nossos pensamentos são organizados em formas únicas em cada uma destas possibilidades. É
possível escrever uma carta ou uma mensagem para um amigo com uma caneta com tinta colorida, exercendo um certo tipo de
criatividade e fantasia. Talvez haja quem ainda sinta o prazer de desenhar as letras que compõem as palavras. O predomínio de
nosso condicionamento voltado para a escrita linear impõe conceitos que se expressam em construções de frases como blocos
previamente alinhados. Com a escritura tipográfica ou com a realizada por meio de máquinas, as palavras passam a ser coisas,
objetos prontos, as letras são padronizadas sem a marca do indivíduo. São feitas com pedaços de madeira (como as antigas
prensas) ou com ligas metálicas. Mesmo ao ser apagadas, deixam marcas. Não lutamos com o que já está pronto.
No caso da videoescritura, as palavras são bits, impulsos de eletricidade e desaparecem sem
deixar marcas. A historicidade de um documento, base para as ciências como a História ou a Filologia, perde sua razão de ser.
Mesmo o texto que fica na memória do computador torna-se independente de quem escreve. Os três momentos do ato de escrever não
se separam: selecionar, pensar, grafar, integram-se. Pensa-se enquanto se escreve. Não há a preocupação do erro, da distração,
do ato de repensar. Tudo pode ser imediatamente trocado de lugar, transformado. Resta saber se esta facilidade não acabará por
acomodar e empobrecer nossa capacidade de dar sentidos novos e melhores ao que escrevemos.
(*) Terezinha Fátima Tagé Dias Fernandes é
pesquisadora e professora no Departamento de Jornalismo e Editoração da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São
Paulo (USP). Artigo publicado em 13 de abril de 1997 no caderno AT Especial/Leituras
do jornal A Tribuna de Santos. |