"A iniciativa da nacionalização filológica do vocabulário
exótico há de partir de alguém; um será o primeiro a dar-lhe o cunho brasileiro; e por que não pode ser este o escritor? Todo
o povo brasileiro pronuncia distintamente grogue, lanche, piquenique, tílburi; escrevendo-se estas palavras com sua
ortografia inglesa corre-se o risco de não ser, às vezes, entendido por quem não conheça a língua. Um dos grandes serviços que
podia prestar o nosso jornalismo era este, de nacionalizar as palavras estrangeiras importadas pelo comércio, indústria e
moda; ou rejeitá-las da circulação, substituindo-as por equivalentes portuguesas, que daria voga". - José de Alencar, O
Globo, do Rio de Janeiro, 18 de novembro de 1875.
Wladimir Araujo (*)
É muito raro uma
palavra estrangeira (exceto as estritamaente técnicas) invadir território alheio e, ao cruzar fronteiras, vê-las abertas,
sentinelas dormindo e, mais ainda, obter acolhida triunfal, simpatias. Perestróica é uma delas
[1]. De Moscou para o mundo, bastou um sorriso do camarada
Gorbachov e a obscura palavra russa interiorizou-se em todos os idiomas, canonizada pelo concílio ecumênico do capitalismo em
festa. Na década de 40, o mesmo aconteceu com a palavra bikini, proveniente do topônimo Bikini, um ponto do Oceano
Pacífico, entre as Ilhas Marshall, onde os norte-americanos, em 1946, realizaram grandes experiências com uma bomba atômica.
Como datam da época os primeiros e explosivos maiôs curtíssimos e de duas peças - tão explosivos, ao menos em nossas praias,
que o Presidente Jânio Quadros chegou a proibi-los - a analogia foi perfeita. Aprovada a moda, aprovada a palavra, bikini
virou biquíni e há muito ganhou a honra dos dicionários.
Mas não é sempre que isso acontece. É muito
raro. Em geral há pesadas resistências. Zelando pela pureza do vernáculo, há os dicionaristas, os gramáticos, os tímidos, os
escritores sem imaginação, os professores idem, puristas estratificadores da língua, relutantes em conceder o imprimatur
às novidades vindas de fora. Quando, no começo do século (N.E.: século XX), Charles Miller, em 1904, trouxe uma bola de foot-ball para São Paulo e aqui organizou o primeiro
team do esporte que logo se transformaria em paixão nacional, alguém, difícil saber quem, por primeiro escreveu a palavra
futebol. Os sentinelas do vernáculo implicaram com ela. Foot-ball não podia, futebol não servia. Queriam
que o povo falasse ludopédio ou, como segunda opção, podobálio! E essa tolice teve defensores até em livros
didáticos [2].
Era o tempo em que os entendidos do idioma ainda se
insultavam pelos jornais por três motivos predominantes: se havia uma língua brasileira, colocação de pronomes e
estrangeirismos [3]. Entre estes, o inimigo preferencial
eram os galicismos, a respeito dos quais se gastaram rios de tinta.
A briga vinha de muito longe. Quando saiu a primeira
edição de Iracema, em 1865, Pinheiro Chagas, em Portugal, referindo-se especificamente aos galicismos de José de
Alencar, escreveu: "...o defeito que eu vejo em todos os livros brasileiros e contra o qual não cessarei de bradar
intrepidamente é a falta de correção na linguagem portuguesa, ou antes, a mania de tornar o brasileiro uma língua diferente do
velho português por meio de neologismos arrojados e injustificáveis..." José de Alencar respondeu com o tacape de Peri: "Temos
nós culpa do ódio que semearam em Portugal os exércitos de Napoleão?" [4].
Quem estranharia hoje, por exemplo, palavras como
massacre, confecção (roupa), qualidade (no sentido e virtude), detalhe, envelope? Pois bem, por usá-las no romance Os Maias,
Eça de Queirós recebeu esta descompostura de Rui Barbosa: "Nessas extravagâncias, nessas impurezas, nessas degradações da
palavra, continuará ele (Eça de Queirós) a exercer a sua justa autoridade, o seu ofício natural de atuar criadoramente
sobre o idioma? Não pode ser" [5].
Eça de Queirós sempre foi acusado de "escrever em
francês", mas Almeida Garret, um dos santos da devoção de Rui Barbosa? Eis como foi mimoseado por ter usado a palavra
deboche: "Deboche, em cujo lugar temos crápula, devassidão, libidinagem, desvergonha, barganteria, continua a
reputar-se o mais torpe e dissoluto dos galicismos". E conclui citando Cândido Figueiredo, outro rabugento inimigo dos
estrangeirismos: "Não é português. É francês" [6].
Detalhe, vocábulo também usado por Garret,
recebeu pancada mais rija: "Detalhe, com as suas derivações detalhar, detalhado, detalhadamente, vinha, com a audácia e o
desasseio do mais tosco barbarismo, sobrepor-se a um acervo de expressões vernáculas, sãs, correntias, sonoras, variadas,
expressivas: miudeza, minudência, particularidade, pormenor, circunstância, por menor, por miúdo, pelo miúdo, miudamente,
minuciosamente, circunstanciadamente, particularizadamente e muitas outras análogas, ou derivadas. Esse (Garret) lançou
as radículas pertinazes do escalracho no mau terreno; mas no bom, na língua dos escritores onde se aprende a falar, não
encontrou jamais senão repulsa" [7].
Esses comentários azedos por causa de estrangeirismos eram comuns,
eram o tom "normal" e assim permaneceriam muito tempo entre os estudiosos da língua. Rui Barbosa, por exemplo, não os
utilizava para humilhar adversários, como o professor e gramático Ernesto Carneiro Ribeiro a quem foi dirigida a famosa
Réplica, nem por sentimento de superioridade por ser tido e havido, inclusive por ele mesmo, como o sabichão da época. O
que se dava era uma verdadeira guerra entre os campeões da língua, que se batiam ardorosamente por ela, com réplicas,
tréplicas e desaforos em jornais e mesmo nos livros. Ninguém chegou ao duelo por causa de um pronome, mas, como se diz no
jargão futebolístico de hoje, todos "entravam na dividida". O jogo era pesado.
Só mais um exemplo: Mário Barreto, escrevendo em
1914, achava o verbo evoluir "um intolerável barbarismo". "Evoluir é coisa que não temos em português verdadeiro e que
se não perdoa a quem quer que se preze de saber falar ao menos sofrivelmente a nossa rica, sonora e majestosa língua." Queria
que fosse evolver. "A não quererem servir-se de evolver, têm evolucionar". E quem recusasse a
alternativa, teimando com o evoluir, não sabia ao menos sofrivelmente a nossa majestosa língua
[8].
Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades...
Antes de continuarmos sobre palavras estrangeiras,
nacionalizadas ou não, cabem parêntesis a respeito da observação acima, de Rui Barbosa: "na língua dos escritores onde se
aprende a falar". Essa afirmação é comum, encontra-se em todos os teóricos da boa linguagem, mas tem sua parte de exagero. No
prefácio de Éramos Seis, da Sra. Leandro Dupré, Monteiro Lobato, a quem ninguém nega o crédito de bom escritor, ao
fazer elogios extraordinários ao famoso romance, observa: "Parece que nisso de língua andamos erradíssimos. Há duas línguas, a
falada e a escrita. A falada é a grande coisa, pois que é o meio de comunicação entre todas s criaturas humanas, afora as
mudas. A língua escrita veio depois, e é coisa restritíssima. Toda as criaturas humanas jogam com a língua falada, e quantas
com a escrita? Uma porcentagem insignificante. Isso faz que a língua falada resida permanentemente no apogeu da expressão e do
pitoresco, ao passo que a escrita se atrase a ponto de ficar uma coisa exigidora de tradução". E mais adiante: "Ah, se toda
gente escrevesse como fala, a literatura seria uma coisa gostosa como um curau que comi domingo em Tremembé"
[9].
Quem observar os milhares
[10] de palavras de origem estrangeira, provenientes de muitos idiomas, já
adaptadas morfológica e foneticamente ao Português do Brasil, principalmente as mais recentes, isto é, dos últimos 100 anos
mais ou menos, notará que elas foram entrando de mansinho, acomodando-se devagar, aos poucos, contornando as urupucas armadas
pelos atentos sentinelas do vernáculo. De repente, não se sabe como, ficam brasileiras, mesmo tendo a naturalização
contestada.
Ainda uma vez Rui Barbosa: depois de dizer que a
palavra feérico, do francês feérique "não pode ser transportável senão mediante deformação escandalosa, e em
português não soa coisa com coisa", observa: "Tais os neologismos a que eu resisto, e me envergonharia de ceder. Pôr de
compostura à descarada nudez de palavras ou frases estrangeiras uma leve alteração literal é contrabandear sordidamente de uma
a outra língua. Nem traduzir sabem, às vezes, os autores desses esquálidos atentados" [11].
Na verdade, tais palavras são contrabandeadas mas, como todo
contrabando, são amistosamente recebidas por nosso povo, primeiro às escondidas, sem se saber bem do que se trata, depois à
luz do dia, em praça pública, todo mundo fingindo que não vê, como a Polícia Federal faz com as bugigangas vindas do Paraguai.
À semelhança destas, são procuradas, são buscadas, trazidas no fundo da mala dos economistas, dos publicitários, dos gurus da
informática, das revistas que inventam a pronúncia figurada das letras de música em inglês. São as sacoleiras da língua
portuguesa. Umas palavras entram logo. Outras, provisoriamente apreendidas, aguardam a devida liberação.
Esses contágios enriquecedores do idioma fazem-se às
vezes por via erudita, às vezes pela boca dos imigrantes, às vezes pelos meios anteriormente mencionados, às vezes, a maioria,
pela imprensa. A esta se deve creditar o mérito de ter introduzido no idioma um grande número de palavras estrangeiras,
oportunas, insubstituíveis, adaptadas corretamente à nossa morfologia e fonética. Quando comecei a trabalhar em jornal, numa
época em que ainda era moda apreender contrabando no porto de Santos, ao redigir a notícia alguém perguntava: como se escreve,
whisky ou wiskey? E sempre tinha um sabido para explicar a diferença e soletrar o certo. Hoje uísque é
uísque mesmo, assim brasileiramente, por imposição da imprensa, que interiorizou também as palavras adequadas aos
esportes, a começar por todos os termos relativos ao futebol, além de centenas de topônimos dos cinco continentes, e uma
quantidade incalculável de vocábulos referentes ao comércio, indústria, relações internacionais, navegação marítima e aérea,
comunicações, ciências em geral etc., etc. [12].
Quem primeiro chamou a atenção
para o papel da imprensa na tarefa de enriquecer a língua por meio da nacionalização de palavras estrangeiras foi José de
Alencar, em artigo publicado no jornal O Globo, do Rio de Janeiro, em 18 de novembro de 1875. O grande romancista era
também polemista enérgico em defesa dos seus livros, suas frases, suas palavras. Polemizando com Joaquim Nabuco, sempre a
respeito dos eternos estrangeirismos, e defendendo o aportuguesamento criterioso de palavras tornadas indispensáveis pelo uso,
escreve José de Alencar: "A iniciativa dessa nacionalização filológica do vocábulo exótico há de partir de alguém; um será o
primeiro a dar-lhe o cunho brasileiro; e por que não pode ser este o escritor? Todo o povo brasileiro pronuncia distintamente
grogue, lanche, piquenique, tílburi; escrevendo-se estas palavras com sua ortografia inglesa
corre-se o risco de não ser às vezes entendido por quem não conheça a língua [13]. Um dos grandes serviços que podia prestar o nosso jornalismo era este, de nacionalizar as palavras estrangeiras
importadas pelo comércio, indústria e moda; ou rejeitá-las da circulação, substituindo-as por equivalentes portuguesas, que
daria voga." [14].
Segundo o sensato conselho de José de Alencar e Fernão de Oliveira,
vamos a algumas e poucas sugestões, além da já mencionada palavra perestróica. Referem-se todas a palavras bem
popularizadas, de uso comum, constante, e pertencentes ao universo vocabular brasileiro, excluindo-se qualquer exemplo que não
tenha tais características, e todas bem acomodadas às exigências da nossa morfologia e fonética.
Laser, formada pelas letras iniciais de light amplification
by stimulated emission or radiation (amplificação da luz por emissão ou radiação estimulada) é neologismo em inglês, mas
transportado já como palavra pronta para o português onde, como é óbvio, também é neologismo, ou mais exatamente,
peregrinismo. Esta palavra chegou ortográfica e foneticamente pronta. Entretanto, laser, assim escrito, em português
lê-se exatamente como o substantivo lazer. Já aclimada em nossa língua com a pronúncia inglesa correta, nada impede que
se escreva lêiser, acomodando-a, sem prejuízo e com vantagem, à nossa ortografia, como já acontece com centenas de
palavras da mesma procedência. O mesmo vale para o bem conhecido blazer, que pode transformar-se em blêiser.
Office boy também merece aportuguesamento, ou abrasileiramento:
oficebói, como já acontece com a bem menos popularizada ofsete. Cowboy já virou caubói, na
imprensa, embora não dicionarizado. Pode-se aplicar a regra e escrever-se pleibói (de playboy). E também
pleigraunde (de playground).
Lobby é outra que merece atenção. Já temos nos jornais a
palavra lobista, de uso adotado pelo Manual de Redação e Estilo do Estado de S. Paulo. Por que não lóbi?
Lobby, diga-se de passagem, é de origem latina, do latim medieval.
Freeser também poderia facilmente ser transformada em fríser.
Pegando carona numa campanha da Brastemp, fríser teria abertas as portas do dicionário.
Vocábulo muito usado hoje na linguagem falada e escrita é hall.
Assim escrita, lê-se em português, - al -, como o - al - de almanaque. Mas como a pronúncia inglesa também passou ao
português, fala-se à inglesa, coerentemente. Mário de Andrade, há exatos 66 anos transformou-o em hol (podendo, aliás,
ter dispensado o - h -, não pronunciado por nós, que aparece nesta grafia apenas como dispensável permanência etimológica).
Hol apareceu no já citado conto "Túmulo, túmulo, túmulo", em 1926, sendo repetido várias vezes em Macunaíma
(1928): "Bem no meio do hol de acapu mobiliado com sofás de cipó-tiririca (...)" (Capítulo XIV - Muiraquitã).
Nesse mesmo capítulo há outras novidades para a época, hoje já assimiladas: "Dizem que mais tarde a onça pariu uma ninhada
enorme. Teve filhos e filhas. Uns machos, outros fêmeas. Por isso que a gente fala 'um forde' e 'uma chevrolé'".
Mais três palavrinhas e acaba a prosa.
Pizza. Por que não pitsa? Pizza, pela nossa
fonética, lê-se pisa. Como falamos pitsa, é justo que se escreva assim, tanto mais que o plural (o nosso, não o
italiano) é pitsas. De onde saiu também a palavra (falada) pitsaria, que obviamente não corresponde ao italiano
pizzeria, pois pelas nossas leis fonéticas o - a - de pitsa permaneceu na pitsaria, como o - e - de
pizzeria é o mesmo de pizze, plural de pizza. O pizzaiuolo napolitano virou pitsaiolo em São
Paulo e certamente em qualquer lugar do Brasil onde seja usada esta palavra. Não há motivo para se manter a grafia italiana.
Por falar em pitsa, ocorre naturalmente seu condimento quase
sempre inseparável: alici, plural de alice (que quer dizer anchova, ou enchova). Na pronúncia portuguesa
alice lê-se como Alice, a do país das maravilhas. Os grupos - ce - e - ci -, em italiano, não têm pronúncia correspondente
em português. O problema já foi resolvido naturalmente porque a palavra é pronunciada milhares de vezes todos os sábados, pelo
menos em São Paulo, como aliche. Não é a pronúncia italiana. Mas não estamos na Itália. Abrasileirado o som, pode-se
perfeitamente escrever aliche e incorporar ao patrimônio lingüístico nacional o que já entrou vitoriosamente no
patrimônio culinário.
Esta solução para transcrição da sílaba - ce - do
italiano para o português é bem antiga. Em 1625, fez parte dos reforços que a Espanha mandou a Pernambuco, para lutar contra
os holandeses, uma grande unidade militar que tinha, entre os seus comandantes, o napolitano Giovanni Vincenzo Sanfelice,
conde de Bagnuolo. Assim Varnhagen registra o seu nome. Ao escrever a história dos acontecimentos desse período, dos quais foi
contemporâneo e participante, Frei Antonio Callado grafa o nome daquele militar brasileiramente como João Vicencio São
Feliche, conde de Banholo. Deixando de lado as demais soluções criativas, vê-se que Felice virou Feliche.
Igualzinho ao meu aliche. O texto é de 1645 e é o mais antigo que encontrei a respeito [15].
Solução análoga, e a meu ver correta, foi a encontrada por Mário de
Andrade para o grupo consonantal - sc - italiano, também sem correspondente na pronúncia em português, antes de - i - ou - e
-. Para fascista, vocábulo assim escrito em italiano e assim mesmo usado na escrita e dicionarizado no Brasil, Mário de
Andrade encontrou a forma fachista, no conto "Caim, Caim e o resto", publicado em 1924 e depois passando a
figurar no já mencionado Os Contos de Belezarte. Isso numa época em que São Paulo abrigava centenas de milhares de
italianos, com os seus jornais e escolas e, principalmente, uma confraria devotíssima de Mussolini, italianos e brasileiros.
Em carta a Luís da Câmara Cascudo
[16] Mário de Andrade inventou uma palavra que, para fazer
figura, precisa vir por inteiro no contexto: "Meu caro Cascudinho, então não se escreve mais para este polista com saudade?
nem ao menos você está carecendo aí de algum livro hitlerofachisticocamisaverdice pra mandar pedir e eu ter o gosto de
receber letra sua! Será que nem pra isso o Fachismo serve?"
Para terminar, outra novidade que nada tem a ver com estrangeirismos
mas vale a pena conhecer: "Cascudinho velho (...) Como vai? Lhe escrevo de mala pronta, embarcando pra aquele Rio que ambos
achamos invivível outra vez viver nele."
Invivível!
Notas
[1]
Perestróica, e não perestroika, é a melhor grafia para esta palavra. Não há motivo para escrevê-la com - k -. O
- c - corresponde ao - k - do alfabeto cirílico. Assim, escrevemos vodca, tróica, e outras vindas do russo e já
dicionarizadas.
[2] Na
Grammatica Historica publicada pela FTD em São Paulo, em 1926, há a defesa não só dessas duas palavras, como a de
cinesíforo para chofer, ou motorista, atividade que também estava em seus começos. Depois de reconhecer que
o uso consagra a vitória dos "neologismos do povo", o autor anônimo da Grammatica (página 540) lamenta: "Por isso,
dificilmente triumphará o legítimo cinesiphoro em luta contra o espúrio chofer (do francês chauffeur) ou o sabio
ludopedio, podobalio, contra o estrangeirismo futebol (do inglês foot-ball)." Nesse mesmo ano de 1926, Mário de
Andrade usava a palavra chofer num dos seus mais belos contos, "Túmulo, túmulo, túmulo", incluído posteriormente
no livro Os Contos de Belazarte (1934). Também esteve entre os pioneiros da palavra futebol, esporte do qual
certamente não gostava, como se vê no capítulo VI de Macunaíma (A Francesa e o Gigante): "E foi assim que
Manaape inventou o bicho-café, Jiguê a lagarta-rosada e Macunaíma o futebol, três pragas." Chegou mesmo a criar a palavra
futebóleres, no capítulo VII (Macumba), do mesmo livro.
[3] A
respeito, Monteiro Lobato escreveu, em 1924, o conto "O colocador de pronomes", publicado no livro Negrinha,
arrasadora sátira aos puristas do idioma. Monteiro Lobato, porém, também pertencia à irmandade dos inimigos dos galicismos.
Para eles, inventou a palavra "pitecofonemas", "vocábulos macacos (...) que perderam o pelo e se vestem hoje à moda de
França, com vidro no olho". Dois perfeitos pitecofonemas modernos, estes vindos do inglês, são mídia e marketing.
Nunca o brasileiro foi tão Pitchecanthropyus (sem o erectus) do que com o uso desses dois vocábulos.
[4]
Pós-escrito à segunda edição de Iracema (1870). Esta citação e outras que serão devidamente mencionadas foi tirada
(página 67) do importante livro O Português do Brasil - Textos críticos e teóricos (1820-1920) - Fontes para a teoria e a
história, da professora Edith Pimentel Pinto, da Universidade de São Paulo (Livros Técnicos e Científicos Editora em
co-edição com a Editora da USP, São Paulo, 1978). A autora prestou um grande serviço aos estudiosos da língua portuguesa ao
reunir 109 textos, em geral de difícil acesso, de 47 autores brasileiros que, entre 1820 e 1920, de Frei Caneca a Laudelino
Freire, puseram em discussão o Português do Brasil. A introdução, de 43 páginas, mostra com clareza os vários rumos tomados
por essa discussão e abrem caminho para novos estudos.
[5]
Réplica, § 369 e seguintes do Volume II da edição da Fundação Casa de Rui Barbosa, Rio de Janeiro, 1980. A primeira
edição em livro dessa torrencial e mal-humorada aula de Português (900 páginas) é de 1904. A primeira publicação do texto, por
ser documento oficial do Senado, saiu como suplemento do Diário do Congresso, em 10 de outubro de 1903.
[6]
Idem, Volume II, § 467, página 376 e seguintes.
[7]
Idem, página 377. A propósito: detalhe todo mundo (todo mundo também é galicismo) sabe o que é. Duvido, porém,
que você, leitor amigo, saiba o que é escalracho. Eu precisei do dicionário. O que é melhor, um estrangeirismo claro ou
um escalracho limpidamente vernacular que ninguém sabe o que é, tendo servido apenas para esconder o pensamento do autor?
[8]
O Português do Brasil (ver Nota 4), página 432.
[9]
Monteiro Lobato, Urupês - outros contos e coisas, edição organizada por Artur Neves, Companhia Editora Nacional, São
Paulo, 1943, página 588 e seguintes.
[10]
Como a maioria das pessoas não sabe, milhar é masculino. Mas só nos dicionários e na língua escrita, quando quem
escreve não erra. Considerando tratar-se de uma palavra entre as mais pronunciadas no Brasil, milhões de vezes por dia, no
jogo do bicho, de Norte a Sul, em todas as camadas sociais, sempre no feminino, por que não oficializar essa forma
plebiscitária?
[11]
Rui Barbosa, op. cit., volume II, § 479, página 394 e seguintes.
[12]
A bem da verdade, muito antes da imprensa, mas pioneiramente solitário, Mário de Andrade já usara a palavra uísque em
Macunaíma (1928) várias vezes. Só no capítulo V (Piaimã) ela aparece pelo menos duas, inclusive com um curioso
derivado: "árvore uisqueira". Mas não pegou.
[13]
Nota-se nesta observação uma curiosa e feliz coincidência com o que escreveu o primeiro gramático da língua portuguesa, Fernão
de Oliveira, a propósito do mesmo tema: "As dicções que trazemos de outras línguas escrevê-la-emos com as nossas letras como
elas soam, como ditongo, filósofo e gramática (Nota: na época escrevia-se diphthongo, philosopho e grammatica)
porque tudo o mais é impedimento aos que não sabem essas línguas donde elas vieram, senão quando ainda forem tão novas entre
nós que seja necessário pronunciá-las com a melodia de seu nascimento; mas nós trabalhemos quanto pudermos de as amansar e
conformar com a nossa (...)". Fernão de Oliveira, A Gramática da Linguagem Portuguesa, introdução, leitura actualizada
e notas por Maria Leonor Carvalhão Buescu, Imprensa Nacional - Casa da Moeda, Lisboa, 1975. A primeira edição desta primeira
gramática da nossa língua "acabou-se de imprimir (...) a 27 dias do mês de Janeiro de 1536 anos da nossa salvação".
[14]
O Português do Brasil (ver Nota 4), página 141. As palavras mencionadas por José de
Alencar eram na época, e continuaram ainda por muito tempo, usadas no original: grog, lunch ou luncheon,
picnic e tilbury.
[15]
Varnhagen, História Geral do Brasil, Vol. II, página 198, Melhoramentos, 6ª edição, sem data - frei Manuel Callado,
O Valeroso Lucideno, Editora Itatiaia em co-edição com a Editora da Universidade de São Paulo, São Paulo, 1987, Vol. I,
página 52. Este livro foi escrito em 1645 e teve sua primeira edição em Lisboa em 1648. Frei Callado, contemporâneo da invasão
holandesa em Pernambuco, teve vida movimentada: participou da luta como guerrilheiro, o que não o impediu de manter amizade
com o Conde Maurício de Nassau, que muito o admirava. É de seu livro, às vezes fantasioso, que vem quase tudo que sabemos
sobre Calabar: "um mancebo Mameluco, mui esforçado e atrevido", de quem foi confessor no dia em que o enforcaram e
esquartejaram. Embora nunca citado neste sentido, é muito bom estilista, dono de texto vivo e agradável, e testemunha
importante não só da História da invasão holandesa como do Português escrito no século XVII.
[16]
Cartas de Mário de Andrade a Luís da Câmara Cascudo, introdução e notas de Veríssimo de Mello, Villa
Rica Editoras Reunidas, Belo Horizonte, 1991. As duas cartas citadas são respectivamente de 1 de março de 1935 (página 136) e
15 de maio de 1940 (página 151). Credite-se a Veríssimo de Mello o bom senso e o bom gosto de ter mantido os textos
rigorosamente de acordo com os originais. Infelizmente, não é isso o que ocorre com a grande maioria dos trabalhos de Mário de
Andrade, que só podem ser estudados do ponto de vista filológico e até mesmo literário se a sua ortografia, pontuação e outras
características formais forem inteligentemente respeitadas. Ressalte-se também a importância da edição destas cartas que, como
fonte de estudos, acrescentam muita coisa ao que já se sabe do profundo interesse de Mário de Andrade pela cultura do
Nordeste.
(*) Wladimir Araujo é editor do
D.O. Leitura.Texto incluído no suplemento D.O. Leitura,
de 10 de abril de 1992, publicado pela Imprensa Oficial do Estado de São Paulo. |