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Movimento Nacional em Defesa
da Língua Portuguesa

NOSSO IDIOMA
Palavras que pedem espaço

Características fonéticas da língua portuguesa falada no Brasil, através do uso coletivo e constante, enraizadas nas origens do idioma, merecem ter acesso aos espaços cultos normativos, como gramáticas e dicionários, território onde as palavras só conseguem entrar através da mediação incompreensivelmente indispensável dos "bons autores".

Wladimir Araujo (*)

É conhecida e bem estudada a influência erudita na fonética, morfologia, sintaxe e vocabulário da língua portuguesa a partir do século XVI. Por essa via, através de Camões, João de Barros, Fernão Mendes Pinto e outros contemporâneos, ou que vieram logo a seguir, em geral eruditos latinistas do Renascimento, o idioma recebeu novas contribuições que o tempo se encarregaria de consolidar.

Abonando-se naqueles autores, que passaram com todo o direito e sem nenhuma intenção, de poetas, cronistas, moralistas, oradores, a mestres da língua portuguesa, os gramáticos e dicionaristas como que sancionaram os seus achados, e a erudição de extração clássica penetrou fundo nos domínios do Português, onde se acha bem entronizada até hoje. A língua popular, espontânea, a verdadeira "inculta e bela", a velha língua da Idade Média, perde o impulso nos meios eruditos, isto é, nos textos, recebendo um ponto final simbólico dado por Gil Vicente.

Entretanto, como veremos em muitos exemplos a seguir, os escritores portugueses do século XVI, ao lado das formas eruditas que adotaram, também se utilizaram abundantemente das populares, conflitantes com os novos rumos literários, o que é natural, pois eram as que usavam no dia-a-dia e, afinal, a língua era a mesma. Chamada impropriamente de época de transição - porque todas as épocas, e não só para as línguas, são de transição - o certo é que no século XVI sem dúvida verificou-se uma transição violenta, a partir da qual muita coisa foi definitivamente deixada para trás.

Além dos textos de feição clássica dos novos autores, datam desse século as primeiras tentativas de normatização da língua portuguesa através do aparecimento das primeiras gramáticas. Assim, aos poucos a língua foi adquirindo a sistematização doutrinária antes inexistente e, com isso, caíram em desuso - sempre na norma escrita - também as formas populares, medievais, ainda tardiamente usadas pelos clássicos.

Mas, abaixo desta sólida superfície erudita, profundamente preocupada com a forma "correta", que se consolidou definitivamente no século XVIII e não dá mostras de querer ceder, continuou e continua até hoje no Brasil um substrato fonético irremovível, teimosa permanência do período pré-clássico e, em parte, também clássico.

É o tema deste artigo, que pretende, em primeiro lugar, abordar alguns aspectos das permanências fonéticas no português do Brasil, enraizadas nas origens do idioma, de uso coletivo e constante, formas que ainda não viram reconhecido o direito, que têm, de acesso aos espaços cultos normativos, como gramáticas e dicionários, território onde as palavras só conseguem entrar através da mediação incompreensivelmente indispensável dos "bons autores".

Nunca se viu um dicionário abonar seja o que for baseando-se só na língua oral, a não ser para desqualificar como gíria, termo chulo ou "popular". A instância máxima desta espécie de tribunal lingüístico, porém, é o uso coletivo e constante, ainda que a palavra não tenha sido impressa uma só vez. Estando dentro dos padrões morfológicos e fonéticos, a palavra existe. É uma das situações em que o analfabeto se converte em autoridade lingüística, para usar a observação de Heinrich Lausberg [1]. Em segundo lugar, pretende pedir a atenção dos nossos filólogos para o problema, não só no sentido de estudá-lo, pos isso sempre foi e continua sendo feito, mas no sentido de tirar da cozinha e colocar na sala de visitas os fatos lingüísticos que nunca deveriam ter sido expulsos dela.

Antes de entrarmos no exame de alguns fatos, vamos ver o que não entra. Excluímos da exemplificação o que ainda hoje permanece na pronúncia de muitas pessoas sem instrução, mas nem de todas, sendo totalmente proscrito da linguagem culta. São casos que hoje não têm as características de uso coletivo e constante, embora já o tivessem. Para não remontar aos textos arcaicos, onde os exemplos são ainda mais abundantes, bastam Os Lusíadas [2] para testemunharem em obra clássica a permanência do que era usual em textos eruditos do período anterior:

Despois direy da sanguinosa guerra (III-5)
Promptos estauam [3] todos escuitando (III-3)
Nas ilhas de Maldiua nace a pranta (X-70)

Camões usou, nos Lusíadas, 17 vezes a forma despois, e nem uma depois. O mesmo com o verbo escuitar, as duas vezes. Pranta e prantar, duas vezes a  primeira e uma a segunda. Nem uma na forma atual.

Quem ouve rádio e televisão sabe perfeitamente que essas formas não caíram em desuso. Nem no horário eleitoral. Mas estão confinadas na maioria e, portanto, ficam fora da relação das de uso coletivo e constante.

Ficam fora também, obviamente, as licenças poéticas, embora o seguinte exemplo de Camões mostre a vontade de viver de certas palavras, com ou sem as devidas licenças:

Viria exprimentando o mar yrado (VIII-67)

Trata-se de pronúncia hoje largamente difundida, mas o exemplo não pode ser generalizado, primeiro porque nem todas as pessoas falam assim e, segundo, porque o verbo em seus vários modos e tempos aparece 14 vezes nos Lusíadas, 12 das quais com a síncope do - e-, mas sempre por necessidade de metrificação, como se vê no exemplo acima citado.

Pode-se pensar também que a pronúncia corrente na época era essa, não obstante Camões ter usado duas vezes o verbo experimentar, na forma hoje consagrada, quando foram necessárias suas cinco sílabas. Também tem a ver com a fonética, embora fuja um pouco (só um pouco) do assunto o fato de o verbo ter sido escrito 10 vezes em 14 com - s- esprimentando, esperimente, etc.), além de duas vezes em oito o substantivo esperiencia. Considerando que experientia, experimentum e o verbo experiri são assim grafados e assim pronunciados ex e não es, e que Camões era bom latinista, é permitido pensar que a pronúncia com - s - era a corrente e Camões conformou-se com ela. Neste caso o - x - atual voltou como bem desnecessária restauração renascentista, tendo entrado no poema ou por erro tipográfico, ou, como foi comum no início da imprensa, por iniciativa do próprio tipógrafo que compôs o texto.

Ficará fora também a ditongação extremamente generalizada, em todos os segmentos sociais, do -a - (rapaiz, gais), do - e - (mêis, vêiz), do - o - (nóis, arroiz) e do - u - (puis, lúiz), porque essa ditongação expandida até as pessoas de bom nível de instrução ou é relativamente recente, ou não ficou documentada em textos literários em conseqüência do purismo predominante desde o século XVII. Mesmo assim, é bom lembrar que Fernão Mendes Pinto, o grande prosador quinhentista, em sua Peregrinação[4] usa dezenas de vezes peis ou péis, plural de : "... logo punham os peis sem medo por onde queriam..." (Capítulo XXII); "... assi voaria meu corpo a ir beijar esses teus vagarosos péis..." (XLVIII)

Finalmente, serão excluídos da exemplificação os textos de Gil Vicente e as cartas e as peças teatrais de Camões pelas boas razões expostas pelo professor Segismundo Spina [5]: "Gil Vicente não gozou da estima dos homens cultos do seu tempo, pois além de lavrar suas peças em português (Nota: o chique era em castelhano) manteve-se muito próximo da fala corrente." E mais adiante: "Foi visto o caso de Gil Vicente, cujas composições dramáticas são um testemunho da linguagem corrente no seu tempo; o próprio Camões, no seu teatro, mas sobretudo nas suas cartas, reproduz a fala de meados do século XVI, como faz também Jorge Ferreira de Vasconcelos em suas peças. O teatro é sempre um testemunho da linguagem viva e falada na época do autor (...)"

Assim, vamos usar apenas textos destinados só a pessoas bem elegantes.

Excluídos todos os casos discutíveis, e eliminadas as fontes contestáveis, examinaremos algumas persistências fonéticas, de uso coletivo e constante, no português do Brasil, com raízes medievais posteriormente consagradas por poetas e prosadores quinhentistas, a seguir não documentadas a partir do momento em que o linguajar espontâneo da Idade Média deixou de ser escrito, definitivamente cedendo espaço à latinização erudita, isto é, à volta a um passado de mais de 1.500 anos implícita na própria palavra Renascimento.

Comecemos pelo - e - átono transformado em - i - como em siguro, dispesa, sigundo, assim falado e não apenas por pessoas incapazes e escrever corretamente estas palavras. A televisão, esse meio que permite o que os filólogos do passado jamais imaginariam, isto é, uma pesquisa diária, farta, prontinha dentro de casa, podendo ser gravada em inibições, com falantes de todos os níveis de instrução, de Norte a Sul do país, a qualquer hora do dia e da noite, sem precisar batalhar verbas do CNPq, a televisão nos traz todos os dias os exemplos acima citados, na pronúncia de pessoas notoriamente escolarizadas e de alto nível de instrução.

Esta pesquisa via TV, aliás, levanta um problema sério: a norma culta, realmente culta, aquela adstrita a todas as exigências gramaticais, afinal é falada quando, onde e por quem? Certamente não pelo Presidente da República, os governadores, prefeitos, senadores, deputados, vereadores, ministros, secretários, jornalistas, economistas, padres e bispos, psicólogos, médicos, engenheiros, empresários etc. etc., e menos ainda pelos profissionais da própria TV, todos adeptos da perenemente sadia "norma inculta".

Programas semanais como Os Trapalhões, ou diários como a Escolinha do Professor Raimundo, com os seus vários milhões de alunos, dão poderoso impulso no sentido de desestruturar a norma culta, tendo principalmente sobre as crianças, pelo exemplo teatralizado, atraente e constante, o poder de desfazer facilmente o resultado, obtido a duras penas, dos esforços feitos em sala de aula pelos professores de língua portuguesa.

Tais programas reproduzem e multiplicam formas heterodoxas de linguagem, destruindo com grande eficácia o que o já precário sistema escolar consegue edificar. Porém são casos extremos, isto é, não é a linguagem habitual dos programas de TV, assinalados apenas para lembrar mais esta poderosa força desagregadora do vernáculo, inexistente até há poucos anos, e que certamente ainda trará novas e grandes conseqüências sobre o português falado no Brasil, principalmente na área da fonética e, através dela, na ortografia.

Mas o - e - átono transformado em - i - tem ilustre ancestralidade.

Um título de venda do século XIII termina assim: "... eu notario publico d'El-Rey... iscriui e conffirmo..." [6].

O Foral de Penela, escrito em latim bárbaro em 1139, e traduzido para o português no século XVI, começa com a criativa liberdade ortográfica e fonética do tradutor, mostrando que o - e - átono pronunciado como  - i -, mal nascendo a língua portuguesa, não respeitava nem o latim, dando como resultado esta curiosa redação: "Em nomyny domyny amem." A seqüência do texto é toda em português mesmo [7].

Bom exemplo do caminhar desta prática encontra-se nas sucessivas traduções das Regras de São Bento através dos séculos. Assim, o texto aproximadamente do ano de 1351 tem a seguinte frase: "... se preuenhã (previnam-se) as sas ifirmidades assi dos corpos come dos costumes..." (Note-se ainda a palavra custume, que será objeto do estudo do - o - átono transformado em - u -).

No século seguinte (c. 1415), a tradução de Frei Martinho de Aljubarrota, da mesma frase, diz: "... e sopportem muyto pacientemente as suas infirmidades..." Em 1556, a tradução de Frei Guilherme da Paixão dá a seguinte redação: "... e soportê muyto paçientemente as suas infirmidades..." [8]. É bom assinalar que o verbo infirmar existe no português atual e é usado freqüentemente nos textos jurídicos. Tanto no texto do século XIV como no do século XV escreveu-se "uida perdurauil" que no texto seiscentista já transforma o adjetivo em "perduravel", denotando a intromissão do acusativo latino - em -, por conta de mais um "restaurador".

Exemplo único que encontrei nas Regras de São Bento, mas bem significativo a este propósito é - im - em lugar de - em -, na versão de 1351: "... de todo ï todo". Lembra bem está im casa. "Ingano no coraçon" e "falso testimunho" são outras expressões quatrocentistas das mesmas Regras. Linguagem erudita, é bom que se lembre: são textos de monges beneditinos destinados à leitura de todos os membros dessa Ordem altamente intelectualizada.

O - i - fez carreira.

Camões não usou a palavra quase e sim quasi [9] as cinco vezes que dela precisou nos Lusíadas:

quasi junto donde o Sol ardendo (II-6)

O verbo ensinar, usou-o 4 vezes. E insinar, 13:

Agora deleitando, agora insinando (X-84)

Mais expressivo é o caso de mãi, assim grafada, singular e plural, todas as 25 vezes que Camões precisou de mãe nos Lusíadas:

Rompendo pelo çeo a mãi fermosa (IX-21)

Rezando as mãis, irmãs, damas & esposas (IX-51)

Leão (animal) e Leão (topônimo) aparecem as dez vezes como lião, assim como lioa, as duas vezes, uma como topônimo:

Que é fraqueza entre ovelhas ser lião (I-68)

De Lião sendo, & não dos Portugueses (III-70)

Qual parida lioa fera e brava (IV-36)

Deixando a serra asperrima Lyoa (V-12)

E assim também os derivados:

Cercado nella foy dos Lioneses (III-70)

Responde Lionardo, que trazia (VI-40)

O texto copioso do citado Fernão Mendes Pinto fornece a seguir muitos outros exemplos, com a vantagem adicional de ser em prosa, como aliás outros que já apresentamos. Como, porém, além de Camões ainda teremos de nos socorrer dos trovadores, é conveniente assinalar este predicado (de ser em prosa). Ele foi salientado por Leite de Vasconcelos em pequeno artigo sobre o galego antigo, ao observar que certas formas galegas incorporaram-se à linguagem dos trovadores portugueses, "porém não se encontram nos nossos documentos em prosa, que representam o falar quotidiano" [10].

Os números que se seguem aos exemplos são os dos capítulos da Peregrinação: "Na dispidida do inverno..." (III); "... i lhi pidia que..." (IV); "...que os portugueses não tinham insinado..." (IV); "... como homem que se sintia favorecido..." (XVI); "... chapéu forrado de citim..." (IX); "... pérolas para o tisouro da casa..." (XLIV); "... sem embargo de lho eles terem mixiricado..." (CCX); "... havia muitos tigres, badas, liões..." (LXIII); "... a cidade de Odiaa, metropoli deste imperio..." (XXXVI); "...dignidades e graos como cardiais entre nós..." (CXI); "... pindurados por ua cadea de prata..." (LXXXIII); "... e por que a mãi ali falecera..." (LXXXIX); "... casados com mulheres portuguesas e mistiças..." (CCXXI); "... aqueles mininos filhos de portugueses..." (XLVI) [11]. E assim dezenas de outros exemplos, repetidos dezenas de vezes e com número mínimo de variantes em uma ou outra palavra.

De Fernão Mendes Pinto existem algumas cartas (na verdade apenas três, uma das quais de duvidosa autenticidade), dirigidas duas "aos Padres e Irmãos da Companhia de Portugal" e outra ao Reitor do Colégio de Goa [12], podendo-se presumir que tais escritos merecessem redação cuidadosa. Pois neles, entre outros, há: sintir, mintiras, mininos, irmida, pidi, vistidos, despididos, cirimónias, misquitas, miricimento.

É de boa tradição o - o - átono transformar-se em - u - (u homem, us casus, bunitu, usadu), como é usado hoje em todo o Brasil em todos os níveis sociais e de instrução.

Um testamento de 1193, um dos dois mais antigos documentos portugueses que têm data, oferece num só parágrafo vários exemplos: "Eu, Eluira Sanchiz offeyro (...) todo u (o) herdamento de Crexemil, assi us (os) das sestas como todo u (o) outro herdamento: que u (o) aia (tenha) u (o) moensteyro de Vayram..." [13].

Do século XII, vamos para o XIII. Em título de compra de 1262, a abadessa de Tarouquela esclarece a "tudos" a quem interessar que "... compareij (comprei) a Gumet Sanchit u (o) casal (a propriedade) du (do) Catariu (...) conve a saber pur (por) quantu (quanto)..." E depois de dizer quanto dinheiro deu pela compra, esclarece que não fica nada "pur dar" [14].

Um poeta apaixonado do século XIII assim implorava à amada:

Senhor fremosa, quero vus rogar
por aquel Deus que vus feze nacer
.........
que vus non pes (pese) de vos eu muit'amar [15].

Na introdução a um texto biográfico do século XIV, o autor propõe-se a contar o que fez "a muy nobre senhor dona Isabel per graça de deos Raynha de purtugall" [16].

O testamento de Dom Afonso II, que começou a reinar em 1211, deixa um legado ao "bispo do Portu." [17].

Na história de um "crerigo que era muy negro de sua collor", que o Rei Dom Afonso Henriques fez ficar bispo sob ameaça de cortar-lhe a cabeça "co esta espada", "disserom a elrey que era escumügado". Trata-se da lenda do Bispo Negro, escrita no século XV [18], mais conhecida (ou menos desconhecida) pela versão de Alexandre Herculano, na qual o verbo escumungar aparece seis vezes com - u -. E com - s - [19].

Ainda no século XV, o Rei Dom Duarte, no Leal Conselheiro, oferece nem sempre lembrados conselhos sobre como deve ser feita uma boa tradução para o português. O quarto conselho é "que nom ponha pallavras que, segundo o nosso custume de fallar, sejam avydas por desonestas". Exemplifica o sábio Rei traduzindo um velho hino medieval sobre o Juízo Final, que termina com uma invocação ao "Spritu Sancto" [20].

Nos Lusíadas há um exemplo perfeito, no mesmo verso, da manutenção do - o - tônico acompanhado de sua intencional transformação em - u - quando átono:

Descobre o fundo nunca descuberto (VI-IX)

Descuberto é forma usada 16 vezes nos Lusíadas e descoberto nem uma. Idem com cuberto, nas seis vezes:

Mas debaxo o veneno vem cuberto (I-105)

O emprego de cobiça é hesitante, mas aparece também com - u -:

O gloria de mandar, o vaã cubiça (IV-95)

Por roubar-lhe as fazendas cubiçadas (II-80)

Costume e seus derivados também recebem as duas formas, sendo o - u - convenientemente representado:

Em ritos & custumes differentes (IV-93)

Sem o despedimento custumado (X-139)

Em Fernão Mendes Pinto, dada a verbosidade inestancável da Peregrinação, os exemplos contam-se às centenas. Alguns: "Cubiçando Pero de Faria o muito proveito..." (XIV); "... e que puntualmente assim passou..." (XXXII); "... no mais çujo munturo..." (LXXVII); "... trinta palmos de cumprido'..." (LXXXIX); "... dezassete braças de cumprido..." (idem); "... ficava todo o cumprimento da corda..." (CLX); "...dois ginetes muito fremosos, com cubertas e armas..." (CCXXIV).

É sabido que o - s -, consoante, inicial, chamado impuro, das palavras latinas, ao passar para as palavras portuguesas exigiu a prótese do - e -  quando precisasse ser pronunciado. Se soasse. De spica veio espiga, Spania deu Espanha e assim por diante. Se o - s - não é pronunciado, desaparece. Assim, scientia deu ciência, sceptrum é cetro, sceleratus ficou celerado. Até aqui, tudo bem.

Bem diferente, porém, foi o destino do grupo consonantal - sc - quando medial. Os carcereiros da língua portuguesa deixaram escapar o - s -  inicial, mas foram mais vigilantes com o medial, que continua entre os presos ociosos dentro do dicionário, à espera de libertação. Ou melhor, da relibertação, porque antes da restauração erudita providenciada pelos renascentistas (aqui está sendo exibido o prisioneiro pela primeira vez), o - s - era livre. Os pragmáticos cronistas e trovadores da Idade Média dispensavam-no porque não o pronunciavam, como não o pronunciamos ainda hoje e, provavelmente, nunca ninguém pronunciou.

Nuno Fernandez Torneol, trovador do século XIII, assim começa uma cantiga:

Pois naci, nunca vi amor [21]

Vaasco Gil, no mesmo verso objeto da nota 15 deste trabalho:

Por aquel Deus que vus feze nacer

No século XIV, na tradução portuguesa da Segunda Cronica General de España (o original é de 1344), consta: "... e despoys que o ryo dece fazem suas sementeyras..." [22].

O livro religioso Corte Imperial, do século XIV ou XV, não se sabe ao certo, tem logo no começo: "...claras fontes que em aquelle campo naçiam..." [23].

No século XV, em trovas dedicadas ao Rei Dom Fernando pelo poeta Álvaro de Brito Pestana, encontram-se estas três palavras: floreçente, florece, naçydo [24].

Mantendo ainda a tradição medieval, Camões usa a forma florecer as quatro vezes que dela precisou:

Este quis o Ceo justo que floreça (III-20)

Mondarse o nouo trigo florecente (IX-27)

O verbo decer dispensou o - s - todas as 24 vezes:

Decendo pellos asperos outeiros (V-30)

Olha hum Mestre que deça de Castella (VIII-25)

Recrecer, também nesta forma sem variante, as duas vezes:

Recreçem os immigos sobre a pouca (IV-31)

Terminando com a Peregrinação: "... ribeiros de água doce que deciam..." (XL); "... águas que deciam com muito impeto..." (XLI); "... foi necessario para a convalecencia..." (LV); "... Bareja triste, nacida de mosca..." (LXIV); "... e crecendo com isso a colera..." (LXIV); "...foram causa de condecender a seus rogos..." (CLXXVI); "... se vingava em soltar palavras necias..." (CXCVIII) e mais centenas de uso igual.

Comentando o problema do grupo consonantal - sc - medial, Silveira Bueno [25] observa que "a restauração, parece-nos foi mais para os olhos do que para os ouvidos". E ainda: "Deverá dar-se com este grupo medial o que já se deu com o inicial que está reduzido, ainda graficamente, a - c -: ciência, cintila etc.".

Voltando ao começo: o revisionismo proposto só se refere a formas consagradas ininterruptamente no falar do povo brasileiro. Não se trata de rejuvenescer formas anacrônicas nem de criar novidades inúteis. Nem tão novidades nem tão inúteis, pois pertencem ao uso comum. Como são de uso comum vários outros casos não citados e que deveriam ser vistos com atenção. Por exemplo, a transformação do - l - em - u - no final das sílabas (baude, Brasiu, perniu). Esta vocalização não existe nem no português medieval nem nos clássicos, embora eu tenha encontrado um solitário exemplo (vergéu) em Dom Denis (século XIV), mas existe hoje. Também não se trata de expulsar de casa as formas aceitas pela norma culta, mas sim de dar direito de ingresso às formas paralelas. Que hoje, nos casos analisados e sugeridos, são a maioria.

Deixar o problema em mãos de gramáticos e dicionaristas é inútil. Na dos escritores, pior ainda, porque para ser pioneiro em dar uns bons pontapés na gramática e no dicionário é preciso nascer outro Mário de Andrade. Assim a tarefa, a meu ver, deveria ser assumida pelos grandes núcleos de estudos da língua portuguesa existentes no Brasil, com destaque para a Universidade Federal do Rio de Janeiro.


Notas

[1] Heinrich Lausberg, Lingüística Românica (Romanische Sprachwissenschaft). Tradução de Marion Ehrhardt e Maria Luísa Shcemann. Edição da Fundação Calouste Gulbenkian. 2ª edição, Lisboa, 1981, página 45.

[2] Estas e as demais citações de Camões são extraídas do Índice Analítico do Vocabulário de Os Lusíadas, de Antônio Geraldo da Cunha. Presença Edições/INL, 2ª edição, Rio de Janeiro, 1980. Além do exaustivo censo vocabular, que a torna única no gênero, esta obra reproduz em fac-símile a edição de 1572, poupando os que precisam utilizar-se dos textos camonianos das imperfeições das edições críticas e, principalmente, das edições modernizadas através de atualização ortográfica, que impedem qualquer pesquisa fonética.

[3] Como em latim, no português arcaico não existia a letra - v -. Em seu lugar usava-se a semivogal - u -, cujo som consonantal só começa a ser grafado como - v - no século XVI, época de Camões, portanto, quando a nova prática ainda não estava consolidada. Uma história pormenorizada das vogais e consoantes da língua portuguesa consta da obra citada na Nota 6 deste trabalho. Trata-se das letras, do alfabeto propriamente dito, não da fonética, cujos problemas fazem parte de outros capítulos.

[4] Peregrinações e outras obras, texto crítico, prefácio, notas e estudo elaborados pelo medievalista português Antônio José Saraiva. Livraria Sá da Costa, 2ª edição em 4 volumes, Lisboa, 1981. A primeira edição é de 1614, mas a obra foi escrita muito antes, porque o autor faleceu em Lisboa, em 1584, depois de ter passado 21 anos no Oriente, onde fez e desfez várias fortunas, tendo sido soldado, comerciante, milionário, pobre, dono de navio, marinheiro, mulherengo incorrigível, médico, pirata, escravo, embaixador, ladrão. A Peregrinação, da qual ainda faremos muitas citações, são memórias dessas venturas e desventuras, um dos textos mais fascinantes da língua portuguesa. Quanto ao valor literário e lingüístico, observa o citado Antonio José Saraiva: "Ele é tão indispensável pelo menos como Camões para compreensão da literatura portuguesa e em especial a do século XVI."

[5] Sigismundo Spina, História da Língua Portuguesa, Volume III (segunda metade do século XVI e século XVII), páginas 13 e 16. Editora Ática, São Paulo, 1987.

[6] Este e vários exemplos a seguir, e que serão devidamente identificados, foi tirado do Novo Manual da Língua Portugueza - Grammatica Historica, F.T.D. e Livraria Francisco Alves, sem data mas provavelmente de 1926, data do "nihil obstat" e do "imprimatur" das autoridades eclesiásticas de São Paulo.Também não consta o nome do autor, ou autores, conforme praxe então observada pelos Irmãos Maristas em suas obras didáticas, assinadas apenas F.T.D. Trata-se de notável e extenso (670 páginas) estudo de gramática histórica da língua portuguesa acompanhado, capítulo por capítulo, de longos textos dos séculos XII ao XX, todos respeitando rigorosamente os originais, às vezes transcrevendo-os na íntegra (é o caso do citado nesta Nota, página 530). Esta obra merece reedição, apenas atualizando-se a ortografia das lições. As demais citações neste artigo virão acompanhadas apenas da palavra Grammatica.

[7] Grammatica citada, página 530.

[8] Grammatica citada, páginas 300 e seguintes.

[9] A forma quase não tem razão de ser nem com base na restauração erudita. Em latim clássico também é quasi. Quase só existiu em latim arcaico e certamente não foi este que quiseram repescar no Renascimento. Assim, vem a palavra falada e escrita desde Cícero até a parlapatice divertida de Macunaíma. As informações sobre esta e demais palavras latinas citadas neste trabalho são extraídas do Dictionnaire Illustré Latin-Français, de Félix Gaffiot (Editora Hachette, Paris, várias edições a partir de 1934), com 1.700 páginas de citações de autores que escreveram em latim.

[10] José Leite de Vasconcelos, Textos Arcaicos, Porto, 1970, 4ª edição, página 124. Esta pequena obra, que reúne as lições de Filologia Portuguesa dadas entre 1903 e 1919, na Biblioteca Nacional e, depois, na Faculdade de Letras de Lisboa, apresenta dois glossários, um de nomes próprios e outro de vocábulos comuns, além de 113 preciosas notas enriquecidas com extensa bibliografia. É importante nela a preocupação com a exatidão das datas. Completam a obra 15 "Breves anotações", infelizmente muito breves, do grande filólogo carioca Serafim da Silva Neto.

[11] A propósito desta palavra, cuja etimologia já provocou tanta controvérsia, vale lembrar que foi usada sete vezes nos Lusíadas, cinco no masculino e duas no feminino. Sempre assim: "Como minino da ama castigado" (II, 43); "Da minina que a trouxe da capella" (III-134).

[12] Quem leu a folha corrida de Fernão Mendes Pinto na Nota 4, acima, pode estranhar suas cartas "aos Irmãos e Padres da Companhia" e supor que fosse padre jesuíta. Na verdade, foi muito amigo e admirador do "padre-mestre Francisco", hoje nos altares como São Francisco Xavier, superior da Companhia de Jesus no Oriente, e a quem acompanhou como primeiros visitantes ocidentais do Japão. Teve uma nebulosa e até hoje mal explicada convivência com os jesuítas, como irmão leigo, na Índia, sendo desconhecidos os atos de sua admissão e demissão. Pela vida que levou, não era certamente com este tipo de pessoa que a Companhia contava para a "expansão da Fé".

[13] José Leite de Vasconcelos, op. cit., página 130, anotando este texto, observa: "Decerto houve uma época em que o artigo definido soava - ó - ou - ô -; mas por causa do seu emprego proclítico, essa pronúncia deve ter-se obscurecido cedo e tornado - u -." Como o emprego proclítico do artigo definido é inevitável, a pronúncia continua "obscurecida" até hoje, na maioria dos casos.

[14] José Leite de Vasconcelos, op. cit., página 16.

[15] O trovador é Vaasco Gil. Leite de Vasconcelos, op. cit., página 22. O uso da letra - v -  em várias palavras destes versos não está em desacordo com a observação da Nota 3, acima. Trata-se de texto crítico. Neste trabalho, estamos citando textos críticos e textos originais. Para o fim a que se destinam, não precisam ser assinalados.

[16] Grammatica citada, página 31. Por uma falha incomum nesta obra, o autor da biografia não é mencionado. Quanto ao uso indeciso de maiúsculas e minúsculas para nomes próprios, estava-se ainda muito longe das formas posteriormente adotadas.

[17] Grammatica citada, página 299, transcreve longo trecho do testamento.

[18] José Joaquim Nunes, Crestomatia Arcaica, Livraria Clássica Editora, Lisboa, 1981, página 103 (1ª edição, 1906). Além de 406 páginas de textos medievais em prosa e verso, das notas, de um glossário comentado e da biografia de todos os autores citados, o autor acrescentou uma preciosa introdução de 77 páginas sobre a formação da língua portuguesa no período arcaico.

[19] Esta palavra contém dois exemplos tanto da incongruência de algumas restaurações eruditas como da teimosia em mantê-las ou, pelo menos, de não se aceitarem variantes. No século XV pronunciava-se escumungar, e, portanto, assim se escrevia. Hoje, continua-se falando escumungar mas se deve escrever excomungar, sem se pronunciar nem o - x - nem o - u - imposto pelos "restauradores", que privilegiaram a forma latina cuja fonética exige a pronúncia de - x - como - x - mesmo, e não como - s -, e impede o - o - átono de transformar-se em - u -. Acrescente-se ainda que o verbo latino que deu origem ao nosso excomungar nem é do período clássico. É tardio, do século V da nossa era.

[20] José Joaquim Nunes, op. cit., página 117, transcreve na íntegra este capítulo do Leal Conselheiro, com a tradução também na íntegra do majestoso hino fúnebre Dies Irae.

[21] José Leite de Vasconcelos, op. cit., página 21.

[22] Idem, página 60.

[23] Idem, página 60.

[24] A Grammatica citada, página 428, traz na íntegra essas curiosas trovas que, aliás, constituem um portentoso monumento à bajulação. São oito estrofes de oito versos heptassílabos. Cada estrofe tem todas as palavras iniciadas pelas letras do nome Fernando, nessa seqüência. Os 64 versos podem ser lidos em qualquer ordem (ou desordem), em todas as combinações possíveis, inclusive, portanto, do fim para o começo, que sempre fazem sentido.

[25] Silveira Bueno, Estudos de Filologia Portuguesa, Editora Saraiva, São Paulo, 1963, 4ª edição, página 89 (1ª edição, 1959).

(*) Wladimir Araujo é editor do D.O. Leitura. Texto publicado no suplemento D.O. Leitura, de 10 de março de 1992, editado pela Imprensa Oficial do Estado de São Paulo.