A maratona de quadrados e cruzinhas
no vestibular: o vernáculo sofre
Novilíngua brasileira
Nem modismos, nem neologismos: tem muita gente falando mal
Salvyano Cavalcanti de Paiva
Nos anos 60 e 70, era a juventude -
principalmente a de classe média - que falava e escrevia mal e pobremente. Agora, é a nação em peso, exceto uns poucos maiores
de 50 anos. Acabaram com a Língua Portuguesa no Brasil. Muitas são as causas, mas aos meios de comunicação de massa cabe parcela
ponderável de culpa na tragédia. A imprensa diária, o rádio e, acima de tudo, a televisão, desmantelaram a estrutura formal e
subverteram as normas do idioma pátrio. Hoje, 136 milhões de pessoas passivamente reproduzem o dialeto dos que utilizam esses
veículos de transmissão de idéias: é a catastrófica geração vidiota.
A crise atingiu tal ponto que o presidente José Sarney, impaciente com a
precariedade gramatical dos textos oficiais, recentemente recusou-se a sancionar um deles: designou um grupo de redatores para
reescrever o decreto complementar ao do pacote econômico. E foi criada uma Comissão Nacional para o Estabelecimento de
Diretrizes Relativas ao Ensino e Aprendizagem da Língua Portuguesa, a fim de salvar o que resta do idioma.
Vai ser uma batalha cruenta. Os meios audiovisuais e impressos se
anunciam como meios de cultura. Mas F. Nietzsche já escrevia, lucidamente: "São os meios de cultura que atualmente põem em
perigo a cultura". Tomava a cultura no sentido de desenvolvimento intelectual, e parecia antever o caos instaurado neste século
[N.E.: século XX] pela massagem cerebral tão louvada pelo profeta
contratipográfico Marshall McLuhan. A cultura de massa corrói e recalca as demais, e liquida de vez a cultura humanista.
Um advogado de Nova Iguaçu, formado em faculdade de fim de semana, disse
no Foro de Teresópolis que não fazia citações em Latim, em suas defesas, por se tratar de idioma "estrangeiro". Nada a
estranhar: advogados não sabem mais redigir petições, médicos escrevem com-pre-mi-dus nas receitas. E professores
universitários se especializam em anestesiar os alunos com as teorias de Lacan, Barthers e Chomsky mas não conhecem, empregam ou
ensinam o bê-a-bá gramatical de Mário Barreto, Said Ali ou Celso Cunha. Por isso, inventaram que falar e escrever certo ou
errado é conceito reacionário embutido na luta de classe, falácia tão burra que até o filólogo J.V. Stálin a
desmascarou num tratado de lingüística publicado nos anos 50.
É claro que, ao lado dos meios de comunicação social, outras causas
contam na degenerescência da linguagem. Pela enésima vez, vozes autorizadas se ergueram para denunciar os motivos: o descaso
familiar, o ensino mal emitido pelo professorado moderninho, vanguardista e alienado dos cursos superiores; a falência
gritante do ensino básico, abandonado pelos poderes públicos; o ensino médio explorado pela mesquinhez, a ganância e a
incompetência dos educandários particulares, sempre defendidos com arrogância e cinismo pelos mercadores do laicato e da
religião.
Contudo, reside nos meios de comunicação de massa o maior número de
desusos, maus usos e abusos da língua portuguesa face à tradição escrita e falada da elite cultural e em face da norma escrita.
Tudo começou com o advento dos meios audiovisuais em 1930, cresceu velozmente após a Segunda Guerra Mundial com o domínio da
televisão e se intensificou com a massificação do ensino após 1960. Os professores improvisam, não ensinam as normas - que
desconhecem ou subestimam - e, em conseqüência, amplia-se o número de analfabetos funcionais.
A língua é um instrumento de intercomunicação humana; mas quando o falar
errado substitui o falar certo, quando a leitura de clássicos é relegada ao baú da obsolescência e a antropologia da pândega
estimula a subversão lexical, sintática e semântica, é hora de agir, ou a atitude irresponsável de supostos educadores poderá
conduzir a sociedade a um modelo espartano, totalitário, no qual os poucos que sabem irão dominar os muitos que ignoram ou
vice-versa.
Como escreveu o filólogo e enciclopedista Antônio Houaiss, não se poderá
transmitir cultura com provas escolares de múltipla escolha, preenchimento de quadrículas com cruzinhas. Houaiss, que participa
da comissão oficial que criará as novas diretrizes do ensino do idioma, acha que "o pensamento está sendo interditado pela
massificação. Só escreve e fala correntemente aquele que tem opinião, que possui uma visão crítica, que pensa a realidade que o
cerca".
Tanto como a minoria sensata, Houaiss deve ficar perplexo com a
algaravia enunciada por uma gama de cidadãos que abrange desde locutores de telejornal, atores de telenovelas e animadores de
programas de auditório até figurantes de comerciais e membros da alta hierarquia do governo federal.
O vício mais recente é a intercalação imediata do pronome pessoal da
terceira pessoa entre o sujeito da oração e o predicado quando o substantivo já está bem determinado, um pronome absolutamente
desnecessário. Parece até que todos colocam reticências após o sujeito... Nas entrevistas, via TV, virou moda. O empresário
Jorge Chama, após ser recebido por Sarney, disse: "O presidente ele ficou entusiasmado" (sic). O ministro Almir
Pazzianotto, respondendo com lentidão às perguntas, discutindo o pacotão, falou: "O... gatilho... ele... é...". Telê
Santana, diretamente da Toca da Raposa, explicou as derrotas dizendo: "A Seleção ela está..." (sic).
Nos pronomes oblíquos, a bagunça é com os pessoais não reflexivos
tônicos, do singular ou do plural, principalmente mim, nós e vós, porque abandonaram o conosco e o
convosco a título de serem vocábulos eruditos. E lá vem besteira: em uma entrevista de fim de noite, um político soltou
tremenda "haja visto" quando a expressão é "haja vista". Quando Escadinha fugiu da Ilha Grande, o telerrepórter disse que
"a polícia o teria preso, se chegasse a tempo" em vez de "o teria prendido". Na novela das sete, vivem dando "uma
telefonema" e bebendo "a champanhe", efeminando o macho... Certa noite, um telecanastrão falou: "Chegou uma ordem para
mim fazer não sei o quê", jogando o próprio eu para escanteio. Também vivem todos direcionando esforços em vez
de os dirigir para o aprendizado do falar correto, enquanto os burocratas se esfalfam em agilizar (com z)
em lugar de agilitar (com t) para maior proveito.
Chico Anísio: "Essa é uma boa"
Foto: Sérgio de Souza
Outro erro irritante atual é do emprego de pronome demonstrativo esse quando a
vez é do este. Chico Anísio segura a garrafa de cerveja e diz: "Essa é uma boa!" O humorista não sabe que este
(com t) é que designa pessoa ou coisa presente e próxima de quem fala, e também o lugar onde se está, onde se mora, onde
se nasce. O esse (com s) fica mais distante no espaço e no tempo. E o esquecido aquele fica na lua. Mas os
ministros Marco Maciel e Dílson Funaro, os mais atuantes frente às câmaras (e não câmeras com e) de
televisão, vivem a falar desse país (sic), que a gente se pergunta se eles fazem referência ao Brasil ou à Cochinchina.
É um verdadeiro recorde (a tônica na segunda sílaba) de solecismo igual
àquele rrécorde (com acento na primeira sílaba) vigoroso dos locutores de telejornal. Não adianta chiar, pois a atriz de
novela dirá desculpa (com a final) substantivando o verbo, porque dizer desculpe (com e final) no
tempo e modo certos, é algo que jamais ocorre.
A coisa se complica quando os redatores de telejornais ou das
telenovelas trocam dique por eclusa, ramalhete por buquê e matiz por nuance. Aqui
entre nós, eclusa é quase um palavrão. E o ouvido arrebenta quando a heroína informa, ingênua: "Eu fui na cidade" (sic).
Será cidade um novo veículo automotriz? Outra declara que anda "meia triste" sem qualificar que espécie de meia. E o galã
garante querer "namorar com ela". Ou afirma: "Eu amo ela" Moela de pata ou de franga? Os locutores esportivos
mandam brasa nos topônimos: dizem Anvers, Bâle, Torino, Genéva e Mainz até que o
telespectador descobre que se referem a Antuérpia, Basiléia, Turim, Genebra e Mogúncia.
A escritora Helena Silveira observou, risonha: "A máquina desalfabetiza
o povo". Uma reportagem publicada em um grande jornal sobre os anos 50 estampa, como se fossem termos de gíria da época,
palavras do vernáculo como estróina e transviados e a expressão inglesa café society. Alguns redatores
desconhecem a regência verbal, e certos editores exigem que o copidesque enxugue o texto de tal modo que este acaba ressecado
como fundo de açude em tempo de seca.
Um professor da UFRJ (N.E.: Universidade
Federal do Rio de Janeiro) recomenda aos alunos a leitura cotidiana de jornais sensacionalistas
como a ideal por ser "a mais ligada aos interesses do povo". E para os jovens lingüistas da Faculdade Hélio Alonso, "o discurso
popular, com todos os erros, é que representa o verdadeiro idioma". Por isto, alunos do oitavo semestre não hesitam em escrever
exitar e excessão (sic). E acham cômico o emprego do pronome enclítico. Jamais empregam fê-lo andar,
vimo-lo de longe ou ei-lo que chega. E há barbaridades desta espécie: saudarei-o em vez de sauda-lo-ei
e fixariam-se em vez de fixar-se-iam.
Além disto, ainda temos de suportar a oratória dos líderes da classe
dirigente pejada de economês, pedagogês, medicinês, militarês e tecnocracês. E ao
publicitarês se atribui a invenção da abominável mercadologia, quando desde o século 18 existe, com o mesmo sentido,
merceologia (tradução de marketing), embora lexicógrafos sem memória entrem naquela de fazer uma diferenciação
inexistente. E ainda há quem diga que esse falar e escrever de bárbaros é metacomunicação.
Antônio Houaiss: "Massificação interdita pensamento"
Foto: Rauf Tauile
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