Napoleão Mendes de Almeida (*)
1 - É de todo falso pensar que a primeira finalidade do
estudo do Latim está no benefício que traz no aprendizado do Português. Vejamos, através de fatos e de pessoas, onde reside a
primeira importância do estudo desse idioma.
Chegados ao Brasil, três eminentes matemáticos, de renome internacional - Gleb Wataghin,
professor de Mecânica Racional e de Mecânica Celeste; Giácomo Albanese, professor de Matemática; e Luigi Fontapie, professor
de Análise Matemática -, que vieram contratados para lecionar na Faculdade de Filosofia de S. Paulo (o professor
Wataghin é considerado, no mundo inteiro, um dos maiores pesquisadores de raios cósmicos), cuidaram, logo após os primeiros
meses de aula, de enviar um ofício ao então ministro da Educação, que na época cogitava de reformar o ensino secundário.
Vejamos o que, mais de esperança que de desânimo, continha esse oficio.
"Chegados ao Brasil, ficamos admirados com o cabedal de fórmulas decoradas de Matemática com
que os estudantes brasileiros deixam o curso secundário, fórmulas que na Itália (os três professores eram catedráticos de
diferentes faculdades italianas) são ensinadas só no segundo ano de faculdade: ficamos, porém, chocados com a pobreza de
raciocínio, com a falta de ilação dos estudantes brasileiros; pedimos a V. Excelência que, na reforma que se projeta, se dê
menos Matemática e MAIS LATIM no curso secundário, para que possamos ensinar Matemática no curso superior."
2 - O professor Albanese costumava dizer - e muitas
pessoas são disto prova - "Dêem-me um bom aluno de Latim, que farei dele um grande matemático".
3 - Outra prova de que é falso pensar que a primeira
finalidade do Latim está no proveito que traz ao conhecimento do Português, posso aduzir com este fato comigo ocorrido.
Indo a visitar um amigo, encontrei-o a conversar com um senhor, de forte sotaque
estrangeiro, que explicava as razões de certa modificação na planta de um prédio por construir; como, no decorrer da troca de
idéias, tivesse por duas vezes proferido sentenças latinas, perguntei-lhe se havia feito algum curso especial de Latim.
- Curso especial de Latim? Não fiz, senhor.
- Mas o senhor esteve em algum seminário?
- Não, senhor; sou engenheiro.
- Percebo que o senhor é engenheiro; mas onde estudou Latim?
- Na Áustria.
- Quantos anos?
- Sete anos.
- Sete anos?! Todo o engenheiro austríaco tem sete anos de Latim?
- Sim, senhor; quem se destina a estudos superiores na Áustria estuda sete anos o Latim.
4 - É também inteiramente falso educadores, assim
chamados porque dentro das lutas e ambições políticas ocuparam pastas de Educação ou, quando muito, escreveram livros de
Psicologia Infantil - dizerem que - estas palavras foram proferidas numa sessão da Comissão de "Diretrizes e Bases do Ensino",
comissão nomeada para cumprimento do artigo 5º, inciso XV, d, da Constituição Federal - "nos Estados Unidos da América do
Norte, país que ninguém nega estar na vanguarda do progresso, não se estuda Latim".
Felizmente, nessa mesma reunião, a desastrada afirmação não ficou sem resposta; um dos
membros da comissão não se fez esperar: "Como não se estuda? É fácil provar; peçamos de diversos estabelecimentos
norte-americanos - de diversos, porque a programação do ensino secundário aí não é a única como no Brasil - o programa, que
veremos a verdade". Dias e dias decorreram, e nada de programas; interrogado, o "educador" respondeu que não tinham chegado;
um dia, porém - não sei de quem foi maior a distração - o defensor do Latim examina uma gaveta, esquecida aberta, e aí vê,
guardados ou escondidos, os programas solicitados, e em todos eles o Latim rigorosamente exigido.
Esse "educador" é... presidente de uma seção estadual de partido político.
5 - Não encontra o pobre ginasiano brasileiro quem lhe
prove ser o Latim, dentre todas as disciplinas, a que mais favorece o desenvolvimento da inteligência. Talvez nem mesmo
compreenda o significado de "desenvolver a inteligência", tal a rudeza de sua mente, preocupada com outras coisas que não o
estudo.
O hábito da análise, o espírito de observação, a educação do raciocínio dificilmente
podemos, pobres professores, ou melhor, ditadores de pontos de exame, conseguir de um menino preocupado tão só com médias, com
férias, com bolas, com revistas.
Muita gente há, alheia a assuntos de Educação, que se admira ver o Latim adotado em todas as
séries ginasiais, mal sabendo que ensinar não é ditar e que educar não é ensinar. É ensinar dar independência de pensamento ao
aluno, fazendo com que de per si progrida: o professor é guia. É educar incutir no menino o espírito de análise, de
observação, de raciocínio, capacitando-o a ir além da simples letra do texto, de simples conteúdo de um livro, incentivando-o,
animando-o. No fazer do menino de hoje o homem de amanhã está o trabalho educacional do professor.
6 - Quando o aluno compreender quanta atenção exige o
Latim, quanto lhe prendem o intelecto e lhe deleitam o espírito as várias formas flexionais latinas, a diversidade de ordem
dos termos, a variedade de construções de um período, terá de sobejo visto a excelente cooperação, a real e insubstituível
utilidade do Latim na formação do seu espírito e a razão de ser o Latim obrigatório nos países civilizados.
Ser culto não é conhecer idiomas diversos. Não é o conhecimento do Inglês nem do Francês que
vem comprovar cultura no individuo. Tanto marinheiro, tanto mascate, tanto cigano há a quem meia dúzia de idiomas são
familiares sem que, no entanto, possuam cultura.
Não é para falar o Latim que o ginasiano estuda esse idioma. Para aguçar seu intelecto, para
tornar-se mais observador, para aperfeiçoar-se no poder de concentração de espírito, para obrigar-se à atenção, para
desenvolver o espírito de análise, para acostumar-se à calma e à ponderação, qualidades imprescindíveis ao homem de ciência, é
que o ginasiano estuda esse idioma.
7 - Muita gente indaga a razão da fatuidade, da
leviandade, da aridez intelectual da geração moça de hoje. É que, tendo aprendido a ler pelo método analítico, tão prático e
fácil, julga o menino que a disciplina que prática e facilidade no aprendizado não contiver não lhe trará proveito, senão
tédio e perda de tempo. Acostumado a tudo assimilar com facilidade no curso primário, esbarra o aluno no ginásio com a
obrigação de pensar, e ele estranha, e ele se abate, e ele se rebela.
O menino que no curso primário era o primeiro da classe passa para lugar inferior no
ginásio; perda de inteligência, diferença de idade? Não: falta de hábito de pensar. O que no curso primário estava em quinto,
em décimo lugar, passa no ginásio às primeiras colocações; aquisição de inteligência? Também não: pensamento mais demorado,
mais firme por isso mesmo, sobrepuja agora os colegas de intelecto mais vivo, vivo porém tão só para as coisas objetivas e de
evidência.
Raciocinar é, partindo de idéias conhecidas, diferentes, chegar a uma terceira,
desconhecida, e é o Latim, quando estudado com método, calma e ponderação, o maior fator para aguçar o poder de raciocínio do
estudante, tornando-lhe mais claras e mais firmes as conclusões.
8 - O que é certo, inteiramente certo, é não conhecerem
os homens que nos representam no Congresso o que é educação, o que é cultura. Fato ocorrido muito recentemente vem prová-lo:
Discorrendo sobre a necessidade de nova reforma de ensino, um deputado citava as disciplinas
inúteis nos diversos anos do curso secundário, quando é apoiado por um colega, que acrescenta: "O Latim para as meninas".
Para este herói, o Latim é inútil para as meninas, porque elas não vão rezar missa: é a
única justificação que até agora pude entrever nesse tão infeliz aparte. Às meninas, pobrezinhas, porque ensinar-lhes Latim se
não vão ler breviários?
Por quê esse "para as meninas"? E porquê, pergunto, não é também inútil para os meninos? Que
distinção cultural faz esse deputado entre menino e menina? Que quer ele para elas? Aulas de arte culinária? Aulas de corte e
costura? Pretende dizer que as suas meninas não devem cursar o ginásio ou quer com isso afirmar que o Latim só interessa a
padres?
Por que é o Latim repudiado
9 - A quem conhece o regime de estudos de um seminário
torna-se dispensável toda e qualquer crítica ao atual programa de Latim. A quem não conhece não será demais dizer que nos
seminários não existe programa de Latim... Existe é estudo de Latim, com seis horas semanais, existe é consciência do que se
faz. Em que seminário já se ouviu falar em "sintaxe do verbo?" Pois assim está no atual programa, no último ano clássico.
Procure-se, agora, em todo o programa, verba timendi, verba declarandi, verba voluntatis, verba
impediendi, orações infinitivas, orações condicionais etc.; nada disso se encontra. Porquê então programa?
Ou se divide a matéria, ou seja, ou ela é realmente programada pelas séries ou então
programa não se faz. Se o programa na lexicologia pede qui, quae, quod, descendo a uma discriminação quase cômica,
partilhando dessa forma a matéria, como falar depois, retumbantemente, em "período composto", em "discurso indireto", em
"emprego dos modos e dos tempos nas orações subordinadas"?
10 - Com todos os erros de que está eivado o programa de
Latim, o descalabro se torna ainda maior quando se considera que uma portaria, faz isso alguns anos, reduziu o número de aulas
semanais de três para duas; modificaram o programa? Não: continua o mesmo, com todas as incongruências, deficiências e
disparates.
É de tal forma pedida a parte gramatical e tão poucas as horas de aula exigidas que não vejo
possibilidade de traduzirem nossos alunos os autores exigidos nas diversas séries, a menos deseje o professor provar ao seus
discípulos que o Latim é intraduzível.
Considere-se ainda que pessoas existem a lecionar Latim mais acanhadas de equilíbrio mental
do que de capacidade didática, pessoas que, na primeira aula, isto dizem: "Eu sei que vocês não vão aprender Latim" - "Eu sou
contra o Latim na primeira série". "Eu sou cego", "Eu não sei porque os meus alunos não aprendem", "Eu não sei ensinar
Latim" - é que deveriam confessar aos alunos esses truões.
11 - Preocupação nefasta para o ensino do Latim é a da
tradução de autores latinos. Dar a alunos sem conhecimento de princípios essenciais do Latim trechos para traduzir é dar-lhes
pedradas, é dar-lhes cacetadas. Nem Eutrópio, Nem Fedro, nem César previram portarias ministeriais; nem Ovídio, nem Vigílio,
nem Horácio escreveram em Latim para ginasianos brasileiros que nem sequer sabem o que é complemento agente, o que é ablativo
absoluto, o que é sujeito acusativo; nem Publílio Siro, nem Valério Máximo escreveram em Latim para estudantes brasileiros,
quer meninos quer meninas, que nem do idioma pátrio têm aulas diárias, para meninos ou para meninas que nem sabem o que é
objeto direto, o que é complemento circunstancial, o que é predicado nominal, o que é aposto.
Conseqüência dessa impossibilidade é darem certos professores irresponsáveis a tradução já
pronta para que os alunos a decorem, fato por si bastante para provar ou a incompetência do professor, ou o erro do
programador, ou a convivência de ambos no desbarato do ensino em nossa terra.
Como dar autores se nem o essencial de gramática é possível ministrar? Desafiando qualquer
colega a dar toda a matéria, que se exige no atual programa, em quatro anos de duas minguadas aulas semanais, penso apoiá-lo
no seu desânimo com o deprimente espetáculo de decadência e de despautério educacionais a que em nossa pátria vimos
assistindo.
12 - Com lacunas de toda a sorte, o Latim tornou-se
ainda mais antipatizado, seu ensino passou a ser ainda mais dificultado com a introdução, mormente em estados do Sul, e de
maneira especial em S. Paulo, da pronúncia restabelecida, galicamente chamada pronúncia restaurada. Apedrejados e vergastados
como se já não bastasse, nossos pirralhos ginasianos passaram a ser torturados por ex-alunos universitários que de faculdades
de Filosofia saem cientes de Latim mas inscientes de didática, rapazes e moças que, tão preocupados em mostrar sabença, passam
os quatro anos de ginásio a ensinar a tal pronúncia e se esquecem de ensinar Latim.
"Para nós - são palavras de eminente educador, padre Augusto Magne - o que interessa no
Latim é sua literatura, sua virtude formadora do espírito. Desviar o estudo do Latim, para a especialização em questiúnculas
de pronúncia reconstituída é desvirtuar aquela disciplina e tirar-lhe seu poder formador para recair no eruditismo balofo,
pretensioso e estéril."
Por que não ensinam na faculdade de Filosofia de S. Paulo a pronunciar o português à
lusitana, se a pronúncia de um idioma deve ser a dos seus clássicos? Precisamente aí está a explicação da pronúncia
novidadeira do Latim; quem a introduziu em S. Paulo foi um professor lusitano que, achando mais fácil ensinar o Latim pela
pronúncia da Alemanha que pela de Portugal, impingiu-a aos alunos da faculdade, que agora teimam em pretender passá-la às
nossas crianças.
Se não é para falar Latim que um ginasiano vai aprendê-lo, muito menos deve estudá-lo para
pronunciar mais à alemã que à portuguesa, tirando do Latim até a própria utilidade para o vernáculo.
Método
13 - Se não há ginasiano que estude com gosto o Latim,
professor de Latim tampouco há que deixe de lastimar a pobreza de conhecimentos do vernáculo em seus discípulos. Vendo na
deficiência de conhecimento dos princípios fundamentais de análise lógica do período português a causa principal desse
desajustamento é que me pus a redigir este curso, mostrando ao aluno o que realmente dificulta o aprendizado do Latim e
fazendo com que, através de questionários e de exercícios muito graduados, demonstre conhecimento do essencial e
suficientemente necessário ao estudo desse idioma.
Como obrigar um aluno a decorar a conjugação total de um verbo se ele não sabe o que é
particípio presente, o que é gerúndio, o que é supino? Como dar-lhe a voz passiva se ele não sabe o que é complemento agente?
De que lhe adianta saber muito bem de cor o qui, quae, quod se não sabe analisar um relativo em frase portuguesa?
Asas de um pássaro, o Latim e o Português devem voar juntos: tal é a minha convicção, tal a
minha preocupação em todas as lições.
(*) O gramático Napoleão Mendes de Almeida assinou
este texto como prefácio do livro Noções Fundamentais da Língua Latina - Curso
completo de Latim para as 4 séries ginasiais (edição Saraiva, São Paulo/SP, 1959 - 9ª edição). O texto foi transposto para
a forma digital pela internauta Loire Rodrigues de Lima, que o apresentou na lista de debates do MNDLP. |