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HUMOR
Memórias do Século XXI

Esta mensagem foi enviada à lista de debates Novo Milênio pelo internauta Sérgio (Sean) Muniz em 18/3/2001, que a recebeu do advogado Jayr Sá.

Também foi enviada em 10/1/2001 à lista de debates Idioma pelo Alfredo Spinola, com o adendo de que se trata de uma adaptação do livro "Admirável Mundo Novo" (e teve uma resposta no dia 16/1/2001, do jornalista Odir Cunha, que reproduzimos no final desta página, com o complemento enviado no mesmo dia à lista Idioma pelo internauta santista Albano Fonseca):

Assunto: MEMÓRIAS DO SÉCULO XXI

"Hoje é 20 de agosto de 2124, quarta-feira, que no Brasil agora chama-se wednesday, já que o português foi oficialmente banido quando nos tornamos o 67° Estado dos United States of Wide America, em 2095.

Teve quem não gostasse, claro. Principalmente depois que a Floresta Amazônica virou a Tropical Disney World, mas a maioria apoiou porque finalmente pode tirar passaporte americano sem aporrinhação e passou a receber salário em dólar.

É verdade que muitos brasileiros ainda conservam um ranço xenófobo, o que é meu caso, por isso este relatório está sendo escrito em nossa antiga língua-mãe, que eu só domino porque nasci lá no distante 1980.

Fiz 144 anos, trabalho há 126, estou forte e saudável, mas já ouço insinuações de que minha carreira entrou no plano vegetativo. A vida corporativa do século XXII não é justa com o pessoal da sexta idade, como eu: basta a gente chegar aos 140, e começa a ser discriminado no trabalho...

Os velhos tempos me dão saudade (uma de nossas poucas palavras que entraram no Mega Dicionário Americano, como sinônimo para "senseless feeling"), apesar de quase mais nada ser como era.

Por exemplo, eu nasci com unha, cabelo e dente, últimos resquícios de nossa ascendência selvagem. E na juventude pratiquei zelosamente um ato denominado "sexual" para a reprodução da espécie, coisa que, hoje, a ciência simplificou muito: basta ir a qualquer McDonald's, comprar um kit de óvulo e espermatozóide (o número 3 tem sido o preferido pelos consumidores, porque acompanha uma Coca-Cola grátis) e inseri-lo num tubo plugado a um sistema embrionário - cujo nome técnico é "tamagoshi". Depois, e só redigitar a configuração desejada do genoma e depois ir clicando os comandos para as cargas vitais de proteínas.

Simples. Em seis semanas, aparece a ficha fitoergométrica da criança, os custos de alimentação e educação e a mensagem "Are you sure you want to give birth?" Meu filho mais novo, o 365A27W648, vulgo "8", agora deu de ser curioso e me perguntar porque no meu tempo as coisas eram tão complicadas.

Eu tentei explicar para ele que o tal ato ia além da simples reprodução, que a gente sentia prazer em copular, e ele fez aquela cara de nojo, típica de adolescente recém-saído da universidade. Mas, tudo bem, ele tem só 4 anos, um dia talvez entenda melhor.

Eu sei, estou divagando, desculpem. Não é das reviravoltas da natureza que este relatório trata, e sim das relações no trabalho. Meu hiperboss vai fazer uma apresentação no mês que vem, em Urano - com o criativo titulo de "Como enfrentar os Desafios do Século XXII" - e pediu minha colaboração.

Ele quer mostrar às novas gerações a evolução da interação entre empresas e funcionários ao longo dos últimos 150 anos, desde a chamada "Era Jurássica Trabalhista" (1980-2020) até o aparecimento do "Homo Pizza", no final do século XXI. E me escolheu porque eu vivi todas as etapas do processo, além de ser o único por aqui que ainda sabe usar algarismos romanos.

Então, vamos lá:

TRANSPORTE

Os empregados acordavam de manhã e iam para seu local de trabalho dirigindo um veículo pesadão e lerdo, que funcionava queimando derivados do extinto petróleo, chamado "automóvel" - não sei bem por que esse nome, que significa "move-se por si mesmo", já que o tal veículo só se movia sob comando humano e, algumas vezes, nem assim.

Mas a maior dificuldade era enfrentar o "trânsito", do latim transire, "ir para a frente", e esse era exatamente o problema, já que o trânsito quase nunca ia em frente, e daí originou-se a frase de uso muito comum, "Atrasei por causa do trânsito", que literalmente significa "Fiquei para trás porque fui para a frente". Ou seja, aquele povo era duro de entender.

O mais incrível é que, apesar de tanta confusão e contrariando a lógica, as pessoas ainda conseguiam chegar ao que chamavam "local de trabalho".

LOCAL

O sistema jurássico de trabalho era coletivo, e as empresas até usavam jargões como "teamwork" para incentivar essas aglomerações, sem atentar para o fato de que elas eram uma fonte de proliferação de micróbios.

O ponto de encontro era o escritório, um lugar onde os funcionários escreviam, daí a origem da palavra. Eram áreas enormes, onde pessoas se amontoavam em cubículos e passavam a maior parte do tempo produzindo "documentos", cuja principal finalidade era a de servir como evidência física de que as pessoas estavam ocupadas. Após produzidos, os documentos eram "imediatamente arquivados" de preferência em lugares onde nunca mais pudessem ser localizados. Isso na época tinha o mesmo nome de hoje, "burocracia". A diferença é que os atrasados do século XX faziam tudo com oito cópias, e nós, 50 anos depois, conseguimos reduzir para sete.

INDIVIDUALIDADE

O primeiro passo para erradicar o coletivismo inútil foi o "SoHo" (Small Office, Home Office), uma sigla surgida aí por 2000 que permitia aos funcionários trabalhar, confortável e produtivamente, em suas próprias casas.

No Brasil, uma das conseqüências imediatas do SoHo foi o aparecimento de uma variante esperta, o "SoNo". O que obviamente implicou num aumento brutal da quantidade de documentos produzidos, porque só assim os chefes acreditariam que seus funcionários estavam acordados em suas casas.

Depois do SoHo veio o "SoCo", aí por 2050. O "Co", todo mundo sabe, significa Chip Office.

Foi quando as corporações conseguiram implantar um microchip em cada funcionário para controlá-lo 24 horas por dia, desde o batimento cardíaco até o nível de atividade dos neurônios. Uma das características do SoCo que mais agradou as chefias - além do comando de "wake up call" - foi a possibilidade de emitir um choque elétrico remoto quando o funcionário atrasasse a remessa de um documento.

JORNADA

Trabalha-se oficialmente 2 horas por semana, mas já há rumores de que a jornada será reduzida para 100 minutos semanais. O que, tirando o tempo necessário para o sono e as inconveniências fisiológicas - que não sofreram alterações nos últimos 100.000 anos -, dá umas 120 horas ociosas por semana.

O professor Domenico De Masi, que vive em estado de hibernação metafísica na Itália, afirma que isso é um absurdo, e defende a tese de que no futuro trabalharemos 100 minutos por ano.

Mas o problema, mesmo, é que nunca conseguimos nos acostumar com o ócio. Por isso, nossa maior fonte de renda atual é a hora extra - fazemos, em média, 14 delas por dia, inclusive aos sábados.

EFEITOS COLATERAIS

Hoje, as mega-corporações vêm se questionando se essa troca do trabalho grupal pelo individual foi realmente um progresso. Primeiro, porque ninguém mais conhece ninguém, já que os "colegas" viraram imagens digitalizadas.

Segundo, porque todo mundo ficou sedentário e engordou uma barbaridade.

E terceiro porque os antigos executivos eram estressados, e os novos sucumbem à depressão, o que acarreta muitos suicídios (ou, em linguagem ciberneticamente correta, Self Alt+Ctrl+Del).

O maior guru de administração do século XXII, Tom Peters, vivendo confortavelmente em estado gasoso, num tubo de ensaio - publicou recentemente um artigo que está causando uma comoção corporativa. Ele defende a tese de que "nada substitui o contato humano". Incrível, dizem seus fiéis admiradores, que ninguém tivesse pensado nisso ainda.

EMPREGO

Conseguir um bom emprego hoje em dia não é difícil. O duro é se manter nele, porque as exigências para resultados de curtíssimo prazo aumentam cada vez mais. O tempo médio de permanência num emprego é de 28 horas.

Dai o conceito em moda ser o da habilidade para saltar de galho em galho,ou "businessbilidade", que se resume a três fatores: experiência cósmica, formação galáctica e ser bem relacionado com quem manda.

SEXO

As diferenças entre sexos não são mais limitantes para o preenchimento de um cargo. Não porque tenha acabado a discriminação, mas porque acabaram os sexos. A antiga classificação "masculino/feminino/outros" caiu em desuso a partir do momento em que os assim chamados "homens" e "mulheres" equilibraram seus níveis de testosteronas e estrogênio. A ambivalência chegou a tal ponto que hoje os dicionários só registram a palavra "testículo" como sinônimo de "pequeno teste aplicado a estagiários".

HIERARQUIA

Nos tempos primitivos, as posições hierárquicas eram decididas ou por competência ou por protecionismo. Mas levava vantagem quem acumulava mais diplomas. Tudo mudou a partir do momento em que foi implantado o sistema de "Transferência Integral de Informações", pelo qual qualquer ser humano, quando completa 2 anos de idade, é acoplado a um megacomputador Deep Blue e absorve, em 15 minutos, o conhecimento acumulado pela espécie nos últimos dez milênios.

Tem aí uma novíssima teoria dizendo que isso nos transformou numa raça de esponjas, e que o grande diferencial atual é saber pensar por conta própria, em vez de enfiar o dedo no nariz e dar um "retrieve".

Segundo a teoria, há uma minoria de pensantes que consegue se perpetuar nas chefias porque tem "Inteligência Psicoemocional", ou seja, uma combinação balanceada de "instinto", "conhecimento" e "autocontrole".

Eu acho que já ouvi isso antes, só que não me lembro bem quando foi.

RELACIONAMENTO

Os funcionários tem abertura para se comunicar fora do trabalho, desde que respeitem o conceito-chave do século XXII: Lógica Absoluta, ou seja, os assuntos devem ficar restritos aos negócios. Sentimentos e emoções, manifestações consideradas contraproducentes, estão proibidas desde 2104. Mas sempre tem quem não sabe aproveitar a liberdade: nosso maior problema social são os subversivos que se reúnem escondidos para praticar o maior delito da atualidade: rir e contar piadas. Não é por acaso que o maior best-seller desta semana e o cibertexto de auto-ajuda "Você Pode Ser Feliz, Desde Que Ninguém Saiba".

INTERNET

A arcaica Internet, uma rede de comunicação que causou furor no fim do século XX, e que hoje é citada como exemplo de paranóia coletiva, foi substituída pela Infernet, à qual todos somos plugados logo ao nascermos.

A palavra veio do latim infernus, "subterrâneo", uma analogia a seu formato de raízes que alimentam o caule central. O caule, de onde saem e para onde convergem todas as informações, e a Suprema Inquisição, cuja regra é: "Todos somos iguais perante Deus". Sendo que Deus, como todos sabem, é Bill Gates.

Embora corra por ai o boato de que quem manda, mesmo, é um tal de ACM.

CONCLUSÃO

Em meus 144 anos vi o futuro ir acontecendo, e aprendi pelo menos uma coisa: as previsões estavam sempre erradas. Acho que descobri o porquê.

Outro dia achei um livro antigo, que já caiu em desuso por ser a negação da lógica. mas de qualquer forma, lá foi escrito, há milhares de anos, que cada dia é diferente do outro, exatamente "para que o homem nunca possa descobrir nada sobre seu próprio futuro" (Eclesiastes, 7, 14)."

Este é o comentário feito pelo jornalista Odir Cunha, em 16/1/2001:

Alfredo:

Achei muito criativo. Só tenho uma dúvida: os Estados Unidos existirão até 2095? Guardadas as devidas proporções, ao compararmos o recente domínio norte-americano no mundo com o romano (que perdurou por mais de mil anos), veremos que o fim de Roma aconteceu devido à invasão pacífica dos bárbaros, cooptados para trabalhar e guerrear por Roma - ou seja, eram a mão-de-obra barata que fez o império girar no seu último período. O que são, hoje, os Estados Unidos? Uma imensa salada, onde os latinos já representam parte significativa da população.

Vendo-se bem, nenhum outro país foi tantas vezes "invadido" como os Estados Unidos. Primeiro os espanhóis, logo suplantados pelos ingleses, logo seguidos pelos seus irmãos irlandeses. Depois, a multidão de negros escravos, os italianos e suas "famílias"; após a guerra os judeus, os ex-habitantes de países comunistas em geral, os expatriados de regimes ditatoriais, os perseguidos políticos e agora, de uns 40 anos para cá, latinos aos borbotões. Calcula-se que há cerca de 30 milhões de cucarachas nos States.

Assim, em 2095 talvez os Estados Unidos continuem como a nação mais poderosa, mas sua língua será outra, assim como seus costumes. E quem sabe o sobrenome de seus presidente seja Silva? Conjecturas, apenas.

Um abraço,
Odir

Complemento enviado à lista Idioma em 16/1/2001 por Albano Fonseca:

Amigo Odir,
apenas em nome da precisão, é necessário dizer que os judeus alemães já estavam nos EUA no século XVIII e vieram a constituir um extrato importante no grande comércio, indústria e finanças, os judeus de origem russa, báltica e ucraniana para lá também foram no fim do século XIX e começo do XX, fugindo da fome e dos pogroms, dando orígem, praticamente, à indústria do cinema (Goldwin, Mayer etc), às confecções (Calvin Klein...),  à fabricação de cosméticos e outras...

Abraço, do

Albano Fonseca/Santos