O Rio Santo Amaro, sufocado pelo crescimento urbano de Guarujá,
sofre com o seu estreitamento
Foto: Araquém Alcântara, publicada com a matéria
A lenta agonia de um rio
Em meados do século XVI, o explorador Pero Lopes de
Souza, irmão de Martim Afonso, o percorreu pela primeira vez. Hoje, quatro séculos depois, o Santo Amaro é um rio agonizante, sufocado pelo
crescimento urbano de Guarujá. Nos últimos anos esse curso d'água sofreu estreitamento de seu leito, bifurcação, descaracterização ecológica e
poluição química que, apesar de existir em menor intensidade do que no Rio Cubatão, conseguiu destruir praticamente toda a fauna nos dois primeiros
quilômetros, partindo-se do estuário.
Devido às freqüentes agressões, torna-se difícil percorrê-lo numa mesma embarcação,
pois tanto o calado como a largura de seu leito mudam constantemente, variando conforme um maior ou menor grau de expansão urbana.
O Santo Amaro, na verdade, é um rio bastante peculiar, podendo-se dizer que possui
duas nascentes: uma de água doce e outra de água salgada. A primeira está localizada na serra que lhe dá o nome e, sozinha, não seria suficiente
para manter seu volume, que é complementado pelo estuário de Santos, razão de ser constantemente confundido com um braço de mar.
Quando a maré sobe, a água salgada avança alguns quilômetros pelo Santo Amaro.
Quando a maré baixa ocorre o inverso. Esse mecanismo tornou o rio um criadouro natural de várias espécies marinhas que, hoje, são dificilmente
encontradas.
Embarcações de médio porte, atualmente, só podem navegar
nos dois primeiros dos nove quilômetros do rio
Foto publicada com a matéria
SANTO AMARO,
Um rio que está morrendo
Texto: Paulo Mota
Fotos: Araquém Alcântara
GUARUJÁ - Já foi um rio importante, por onde entravam as expedições dos
colonizadores para conhecerem o interior da ilha. Foi um dos pontos-bases de abastecimento da área e o remanso formado por sua embocadura, no
estuário, servia para guardar, com segurança, embarcações de médio porte.
Nada disso, entretanto, garantiu ao velho Rio Santo Amaro, o mais característico curso
de água de Guarujá, a respeitabilidade exigida. E hoje, cinco séculos após o início da colonização, ainda tendo importância econômica para a área, o
Santo Amaro é um rio agonizante.
Se Pero Lopes de Souza, irmão de Martim Afonso e primeiro explorador português do rio,
pudesse voltar a percorrê-lo, hoje, sem dúvida encontraria muitas dificuldades. Os seus pouco mais de nove quilômetros de extensão sofreram
alterações inimagináveis, desde o século XVI. Houve estreitamento de leito, bifurcação, invasão urbana, descaracterização ecológica, sem se falar,
naturalmente, na poluição química, de menor intensidade que a verificada no Rio Cubatão, por exemplo, mas que destruiu praticamente toda a fauna nos
dois primeiros quilômetros do curso de água.
A viagem difícil - Percorrer o Rio Santo Amaro até suas nascentes, no sopé da
serra de mesmo nome, tornou-se, nas últimas décadas, uma viagem difícil. Corredeiras? Vendavais? Não, é um rio tranqüilo. Ocorre que as modificações
no leito, por força da expansão urbana e desenvolvimento de atividades econômicas nas margens, foram tão intensas que permitiram altas variações de
largura e calado.
Nos dois primeiros quilômetros, após a embocadura no estuário, podem entrar
embarcações de até 26 metros de extensão. A partir do terceiro quilômetro viaja-se a muito custo com chatas, dessas utilizadas para transporte de
areia. No trecho após a Via Santos Dumont, o tráfego é possível apenas para pequenas canoas. A partir da Estrada Cubatão-Guarujá, o que era um leito
único virou um estranho delta, com ramificações várias pela região da Cachoeira.
E as causas disso tudo são fáceis de se verificar. Na embocadura do Santo Amaro,
centralizam-se as principais atividades econômicas em função do rio. Ali está a maior fábrica de gelo da região e um conjunto de estaleiros, cujo
número aumentou com a transferência das unidades existentes no Distrito de Vicente de Carvalho e cujas áreas foram expropriadas para permitir a
construção do ramal ferroviário Conceiçãozinha-Piaçagüera.
Naquele ponto, há interesse permanente quanto à conservação da largura e calado - de
cerca de três metros - do curso de água. Mesmo assim, a grande concentração de atividades em um mesmo local causa alguns problemas. Na sexta-feira,
por exemplo, Ramon Pastoriza Cores, proprietário do estaleiro Santo Amaro, o primeiro da embocadura, não sabia como fazer para retirar uma
embarcação que acabara de ser reformada. Um barco de pesca havia encalhado perto da fábrica de gelo, em frente da carreira, congestionando toda a
área.
Além da fábrica e dos estaleiros, ali estão o Iate Clube de Santos, um dos maiores e
mais sofisticados do País, e a Garagem Náutica do Corpo de Bombeiros, onde são centralizadas as operações de salvamento na região. Some-se a isso a
presença, a pouco mais de 200 metros, de uma das unidades da Dow Química, e tem-se uma idéia de como o velho Santo Amaro é afetado no pequeno espaço
da sua embocadura.
Destroços de barcos dificultam a navegação no rio
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Danos - Tal concentração, naturalmente, não se faria sem sérios problemas para
a sobrevivência do rio. Na área, a pesca deixou de ser, há muito tempo, a atividade freqüente de há 50 anos. Os poucos peixes e crustáceos que
sobrevivem não servem para o consumo, tal o grau de contaminação por produtos químicos diversos, desde óleos combustíveis, até metais líquidos
pesados, que, segundo dizem, provêm da Dow Química ou do porto.
A Garagem Náutica dos Bombeiros existe há 30 anos no local, mas há cerca de 10 os
salva-vidas deixaram de fazer treinamentos na área. "Quem mergulhar, aí, arrisca-se a ter sérios problemas de pele. E, se engolir um pouco de água,
sabe-se lá o que pode contrair", afirmou um veterano policial militar. Lembrou que, até há poucos anos, um professor da Universidade de São Paulo,
que pesquisava a qualidade da água ao longo do rio, deixou de coletar amostras naquele trecho. "Ele disse que não havia necessidade de se fazer
análises químicas para se atestar o grau de contaminação do rio por aqui".
Esgoto e lixo - No segundo quilômetro, a contaminação deixa de ser química para
ser de origem humana. Surge a favela do Jardim Primavera, um dos maiores, mais densamente povoados e mais miseráveis núcleos de Guarujá, onde
residem cerca de oito mil pessoas, em palafitas construídas às margens do rio. O destino natural de todo o esgoto e lixo é, sem dúvida, o velho
Santo Amaro, sofrendo a fauna local todas as danosas conseqüências de um processo de redução do nível de oxigênio das águas.
A 100 metros dali, a Vila Santo Antônio ainda guarda as marcas de mais uma sobrecarga
de detritos legados ao rio. Um trecho de mangue próximo àquele bairro foi utilizado durante cerca de um ano como depósito de lixo da Prefeitura,
tendo uma área de 70 mil metros quadrados sido recuperada pelo sistema de aterro sanitário, ou seja, superposição alternada de detritos e areia.
A municipalidade ganhou extensa gleba, onde foi construída uma escola, uma garagem de
ônibus intermunicipais e projetado um centro cultural e de lazer (não construído, mas que poderá dar lugar a um conjunto habitacional com 740
moradias, idealizado pela atual administração). Em contrapartida, o velho rio perdeu seus amborés (peixes de toca), caranguejos, siris e
marias-mulatas, sem falar nas gaivotas e socós, que deram lugar a urubus, que até hoje sobrevoam a região, um ano após a extinção do depósito.
O lixão contribuiu, ainda, para estreitar o leito do rio e eliminar os pequenos
córregos que formavam seu sistema de drenagem natural. Isso ocorreu, ainda na margem próxima à atual estação rodoviária, onde também foi adotado o
aterro sanitário e onde o mangue perdeu parte de sua extensão. E o problema se estende para as imediações da Estrada
Cubatão-Piaçagüera, onde estão sendo aterradas áreas próximas ao curso de água, visando à implantação de pátios de contêineres. Violentam,
também, o sistema natural de drenagem, os cerca de dois quilômetros de favelas implantadas às suas margens, desde aquela rodovia, até a chamada
região da Cachoeira.
Somente a partir dali, já distante da área urbana de Guarujá, é que o velho Santo
Amaro pode sentir-se pouco incomodado. Os pouco mais de três quilômetros que separam aquele trecho das nascentes da Serra de Santo Amaro ainda
abrigam aves, crustáceos e peixes e a vegetação mantém a maior parte de suas características. Mas, até quando?
O tráfego de chatas carregadas de areia é constante, principalmente no último trecho
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Não deixa de ser curioso
este rio que morre para que os outros possam viver. Paradoxalmente, pode-se dizer que ele tem duas nascentes: além de água doce, água salgada.
Explicar como acontece tudo isso não é difícil. O Santo Amaro, em seus
primeiros quatro quilômetros, é, basicamente, um braço de mar. Recebe forte influência do canal do Porto de Santos e, por isso, na maré cheia, a
correnteza é em direção ao interior da Ilha de Santo Amaro, predominando a água salgada.
Entretanto, na maré vazante ou estável, o curso se inverte, ou por força do retorno da água
do estuário, ou por predominância do líquido proveniente da Serra de Santo Amaro, onde há inúmeros mananciais, responsáveis pela alimentação de
diversos cursos e leitos de água, entre eles o lago denominado Saco do Funil, na região da Cachoeira. Ali, então, passa a predominar a água doce e a
fauna e flora são diversificadas.
A presença humana nesse trecho, contudo, é pequena. O rio apresenta inúmeras bifurcações,
leito estreito e muita vegetação superior que, em alguns casos, cobre todo o leito, tornando problemática a navegação, que é feita, a muito custo,
com pequenas canoas.
A alimentação das nascentes da serra constitui pouca garantia da sobrevivência do rio, já
que seu maior volume de água provém, mesmo, do mar. E o mar não está encontrando tantas facilidades para escoar pelo velho leito, reduzido e
assoreado por aterros e lixos.
Há quatro anos, o Departamento de Águas e Energia Elétrica do Estado (DAEE), em um projeto
visando a evitar enchentes na Vila Santo Antônio - que ocorrem não tanto pela força de vazão do rio, mas em função do baixo nível do núcleo -,
cogitou de promover obras de retificação e dragagem do Santo Amaro, visando a torná-lo plenamente navegável, a partir da Via Santos Dumont. Isso
possibilitaria a criação de uma hidrovia, a partir da estação rodoviária até o estuário.
O projeto, de alto custo, não foi executado, a Vila Santo Antônio ainda é inundada e o velho
Santo Amaro continuou tendo suas margens e leito violentados.
Em sua embocadura, a presença de estaleiros
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O facão bate na raiz
da árvore, corta os galhos-obstáculos, o braço desaparece inteiro no buraco e a mão volta com o crustáceo negro de lama. Mais um caranguejo para o
embornal de José dos Santos, sergipano desempregado há vários meses e que sustenta a família pegando crustáceos no Rio Santo Amaro, vendendo-os para
turistas nos acostamentos da Estrada Cubatão-Piaçagüera. De calças compridas,
sapato e camisa, ele está dentro da água desde as 10 horas e já são 16 horas desta sexta-feira fria em que o repórter lhe pergunta quantos
caranguejos já pegou. "Uma dúzia e meia, e dos grandes. Agora vou para casa que tou
danado de fome e frio".
José dos Santos é pescador de um dos poucos trechos do Rio Santo Amaro onde ainda é possível
fazer isso. "Aqui, perto da ponte da Piaçagüera (Estrada SP-55) e até lá na serra, tem muito peixe, caranguejo e siri. E não tem problema de
contaminação".
Ele era vigia em uma empreiteira, que, depois de atrasar alguns meses o pagamento, mandou
vários empregados embora, sem indenização alguma. "Enquanto espero resolver a situação e não arranjo outro emprego, vou vivendo desse jeito,
vendendo cada dúzia de caranguejo por cinco mil. E os paulistas caem matando".
José não gosta muito dessa vida. E não é para menos. Enquanto treme de frio e tira a lama negra
do corpo, mostra as cicatrizes nos braços. "A gente usa o facão para tirar as raízes de perto do buraco. Mas, mesmo assim, sempre sobra alguma,
subterrânea, que arranha pra diabo. Depois, é difícil escapar da patola do
caranguejo, que quando pega na pele, arranca o tampo".
Mas, conforme José, nem sempre se faz o que se gosta e se aquele é o único jeito de viver com
sua mulher e seu filho, vai se agarrando nele. Os antigos diziam que o Egito é uma dádiva do Nilo. Eis José, uma dádiva do Rio Santo Amaro.
José dos Santos vive dos caranguejos que ele vende
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