A Véspera de Reis
(Bahia)
Há dias no ano em que o povo precisa
fazer-se criança. Contrariar esta lei, é torná-lo triste, desgraçado.
Essa bem-aventurança popular, esse esquecimento momentâneo das lutas
pela vida, só a religião largamente proporciona, visto como exclusivamente ela algema as dores que as sociedades desencadeiam
nas contingências imediatas, nos acontecimentos decisivos.
A política que, não sendo exercida por individualidades culminantes, é
ofício de vadios, não absorve esse gigante de cem faces, que vive porque combate, que não morre porque é de uma complexidade que
se regenera no tempo, no clima e na ação.
Em qualquer dos estados, a crença tem para o povo estrelas que o
iluminam, horizontes que abrem-se em alas, grinaldas de primavera que lhe perfumam e ensombram a fronte nas calmarias da
existência.
Dos dias de que falamos são sucedâneos aqueles em que a pátria comemora
os seus feitos, relembra as suas glórias.
Viajamos sete anos e fomos hóspedes da Inglaterra, da França e da
Bélgica: nesses países, quanto amor à obra do passado, quanta fidelidade às tradições seculares!
E serão estas, porventura, mais belas ou menos ridículas do que as que
recebemos de Portugal, que associou-se com desgarre à evolução produzida pelo cristianismo, na poesia, na ciência e nas artes,
desde os primeiros vagidos da Idade Média, influindo-lhe no progresso, fecundando-lhe as legendas, nobilitando-se na antigüidade
de seus costumes?
Entretanto, a Europa conserva e afaga o que possui, e nós nos
envergonhamos do que nos honra e define!
Dos acontecimentos ensangüentados de nossa história política e dos
períodos brilhantes de nossa literatura, nem mais nos lembramos; perdemos as nossas tradições e as nossas festas, e ficamos sem
elas e sem outras que as supram!
É que vamos sendo pacificamente reconquistados... E a árvore das nossas
tradições, cuja sombra alongava-se por todo o País, sopro de inverno prematuro despe-lhe as folhas e a impele para o
aniquilamento...
Ainda um instante amparando-a na sua queda, assistamos a uma véspera de
Reis em nossa província.
A véspera de Reis na Bahia é um corolário da noite de Natal. São irmãs
quanto à origem, diferindo na vida de relação.
Para os homens que estudam, o interesse de diferenciação entre as festas
do Natal no Brasil e suas congêneres no estrangeiro é enorme. Na Europa há um único fator, que é o elemento nacional. Entre nós
há três: o elemento branco ou português, o africano, e a resultante de ambos - o mestiço.
De modo por que eles contribuíram e se consubstanciam; do caldeamento
estético que dá o colorido local a costumes que se foram modificando desde a colônia, ressalta o encantamento etnológico, a
feição nacional.
Da noite de Natal, que se passa nos templos e nos domicílios; dos bailes
pastoris - a poesia popular erudita - e dos salões soberbos, desçamos às praças e ruas, e observemos o povo que se diverte em
ranchos nômades, presenciemos as cheganças ao ar livre, e o singular espetáculo do Bumba-meu-Boi, auto inculto,
que se representa mais vulgarmente nas humildes e francas habitações dos arrabaldes.
Na Bahia os presepes, os bailes de pastoras e os descantes de Reis,
prolongam-se até o carnaval. - É o tempo das mangas, das músicas e das mulatas!
Dessa noite em diante, os cantadores de Reis percorrem a cidade cantando
versos de memória e de longa data.
Esses grupos compõem-se de moças e rapazes de distinção; de negros e
pardos que se extremam, às vezes, e se confundem comumente.
Os trajes são simples e iguais: calça, paletó e colete branco, chapéu de
palha ornado de fitas estreitas e compridas, muitas flores em torno etc.; as moças, de vestidos bem-feitos e alvos, de chapéus
de pastoras; precedendo-os na excursão habilíssimos tocadores de serenatas.
Levando-lhes talvez vantagem pelas ondulações do andar, pelo arredondado
das formas lascivas, pelos dentes de pérolas em bocas de ônix, ou orvalhos matinais nas rosas do amanhecer, as crioulas e
mulatas acompanham os seus pares, tremendo-lhes o seio por baixo de um nevoeiro de rendas finíssimas, estalando a chinelinha
preta e lustrosa, atirando com negligência o pano da Costa, matizado e caríssimo.
Mulheres e homens, meninos e meninas, batem, ao compasso da música,
leves pandeiros, ou tocam, nas mãos entreabertas e suspensas, castanholas que atroam.
Destoando do concerto magnífico, lá cresce o rancho dos
Cucumbis (1), que são negros e negras vestidos de penas, rosnando toadas africanas, e fazendo bárbaro rumor
com seus instrumentos rudes.
Dos Cucumbis não sabemos o rumo.
Os ranchos, ao fogo dos archotes, ao som das flautas e violões, dos
cavaquinhos e pandeiros, das cantorias e castanholas, dirigem-se ao presepe da Lapinha, às casas conhecidas em que se festeja o
Natal, ou tiram Reis à aventura do acaso.
A partir das oito horas começam a desfilar os primeiros bandos. Embora
prevenidas, as casas que os têm de receber conservam a porta fechada, não obstante os dramas pastoris e as danças estarem em
atividade.
Chegando um deles ao ponto convencionado, à casa em que deve entrar, a
música preludia o canto, que rompe, seguido de coros:
Ó de casa, nobre gente,
Escutai e ouvireis,
Que das bandas do Oriente
São chegados os três Reis.
Do letargo em que caíste
Acordai, nobres senhores,
Vinde ouvir notícias belas
Que vos trazem os pastores.
Nesta noite tão ditosa
É bom que vós não durmais,
Porque tão alta ventura
Não é justo que percais.
Vinde ouvir simples cantigas
De grosseiros camponeses,
Das aldeias conduzindo
Cordeiros e mansas reses.
As serranas enfeitadas,
De prazeres vêm saltando;
Os mancebos e os velhinhos
Todos, todos vêm chegando.
Ó senhor dono da casa,
Mande entrar, faça favor,
Que dos céus estão caindo
Pinguinhos d'água de flor.
Inda bem,
Há de vir!
Que somos de longe
Queremos nos ir...
Depois destas e de muitas outras novas trovas clássicas, a porta
abre-se, o rancho entra, e, chegando ao presepe, entoa novas canções a novos acompanhamentos:
Bravo, bravo, bravo!
Hoje é quem brilha,
O Verbo Humanado,
Deus de maravilha.
E ficam ou seguem, depois de comer e beber do que se lhes oferece.
Enquanto na cidade baila-se e tira-se Reis, em remoto povoado executa-se
uma chegança...
É um largo espaçoso. Junto à matriz há um palanque, uma espécie de
coreto sanefado e agaloado, com muitas arandelas, de dimensões desafrontadas, realmente elegante.
À luz das cabeças de alcatrão, que fumam fincadas aqui e ali, os
espectadores, em bancos e cadeiras; em esteiras, no chão, algumas famílias mais modestas, com suas escravas e crias.
A música entretém o povo em multidão, tocando peças fáceis, chulas,
fandangos. O vigário, o juiz de paz, o mestre-escola e as altas influências do lugar conversam sobre eleições, discutem política
geral e local.
Nesse ínterim, o palanque adquire um aspecto atraente e encantador: da
caixa desse teatro de improviso vêm ao proscênio Cristãos e Mouros, que começam a chegança.
As cheganças, no Norte, são autos de número restrito, em que toma
parte certa classe popular de pequena elevação.
Os Marujos e os Mouros intitulam-se os que temos notícias,
constantemente reproduzidos por ocasião das festas de Reis, na Bahia, Pernambuco e Alagoas.
Na dos Mouros os interlocutores são muitos, as músicas
distintamente variadas, sendo o entrecho da composição um combate de abordagem entre cristãos e turcos. Depois que termina a
ouverture e serenam as palmas com que o auditório acolhe os artistas, o espetáculo principia, acompanhado de gestos, de
lutas, de versos cantados, de danças bamboleadas.
Destaquemos dos Mouros um trecho:
Piloto:
Entrega-te, rei mouro
A essa nossa religião
Aqui dentro desta nau
Há um padre capelão.
Rei Mouro:
Entregar-me não pretendo
Em meio de tanta gente;
Eu sou filho da Turquia
Tenho fama de valente.
Brigam os dois, e o Rei Mouro, vencido, cai aos pés do Piloto e canta:
Rei Mouro:
Mande-me chamar um padre
Que quero me confessar;
Esta ferida é mortal,
Dela não posso escapar.
O Piloto dá neste sentido as suas ordens, e o Padre se aproxima. O Rei
Mouro, vendo-o, põe-se de joelhos, e entoa com graça e malícia:
Rei Mouro:
Senhor padre, me confesse
Que sou filho do pecado;
Eu sou como chamechuga,
Quando pego estou pegado.
E logo, fingindo desmaio, dá um tombo, correndo em seu auxílio o
Contramestre.
Contramestre:
Vinde cá, Laurindo,
Vai depressa na botica,
Traga lá a medicina
E vê bem como se aplica.
As cenas sucedem-se interessantes e instrumentadas, concluindo-se o auto
com esta quadra do Piloto:
Piloto:
Ó nau-fragata, ó nau-fragata,
Eu vou te perguntar
Se este brejeirinho
Sabe comandar...
a que todos respondem em coro, retirando-se:
Gentes, que terra é aquela,
Terra de tanta alegria?
É o largo do Bonfim,
Vamos adorar Maria.
Enquanto os atores e o povo dispersam-se em lufa-lufa, ao clarão dos
fogaréus, em Itapagipe, Rio Vermelho, Nazaré etc., o Bumba-meu-Boi e a Burrinha constituem as delícias de núcleos
festivos.
O Bumba-meu-Boi (2) é o divertimento
da canzoada, da gente de pé-rapado.
Tirai da véspera de Reis o bumba-meu-boi, e ficai certos de que
roubareis à noite da festa o que ela tem de mais popular em todo o Norte do Brasil, e de mais nosso, como assimilação de produto
elaborado.
Este auto de caráter grotesco, em duas cenas, entremeado de chulas, de
diálogos patuscos, e desempenhado por personagens extravagantes, é tudo quanto há de mais curioso no tempo do Natal.
Contaram-nos que no Ceará e Piauí, terras de gado e vaqueiros, a
originalidade desse drama, que tem por protagonista um boi, é extraordinária.
No geral, as peripécias são animadas, o cortejo do Boi é apropriado, e
em quase todas as localidades esses espetáculos são dados em casa. Excepcionalmente o Boi dança nas praças públicas.
A distribuição da peça é a seguinte: o Boi, o Tio Mateus, a Tia
Catarina, o Surjão, o Doutor, o Padre, o Vaqueiro e o Amo; na Bahia e Alagoas acrescem - o Secretário de Sala, o Rei, e Figuras
que dançam, jogam espada e fazem de Coro.
Cada interlocutor tem o vestuário mais esquipático: é uma mascarada.
O Rei, o Secretário de Sala e as Figuras envergam capa e calção, trazem
à cabeça coroa e capacetes prateados, meneiam espadas de pau, tocando, três ou quatro, violas e raramente outros instrumentos.
O Boi é um arcabouço feito de lâminas de pinho, coberto com uma colcha
de chita, implantada no pescoço curto e um tanto triangular a cabeça pintada, com os competentes chifres.
Essa armação é levada às costas de um indivíduo que, deixando-a cair,
esconde-se debaixo, durante a representação.
É para as bandas da Boa Viagem... Os lampiões refletem luzes vivas nas
ruas extensas, e as casas de humilde aparência conservam a porta escancarada até tarde, até muito tarde.
Na sala, ao balanço da rede, o pai de família julga-se feliz, acercado
da mulher e da prole que, à flama do candeeiro, escuta de uma velha escrava os contos da Madrasta, do Pedro
Malas-Artes, da Moura Torata etc.
Moradas há em que o Menino Deus, já de pé no presepe, mostra-se com sua
camisinha de cambraia e cajadinho de ouro. Nestas, as cantigas de Reis correm à porfia e sempre sonoras.
De súbito, interrompendo as histórias do tempo antigo, quebrando os
descantes dos alegres pastores, um grito estrídulo, como o da locomotiva em distância, prolonga-se nos ares, parando com
estrondo:
- Eh! Boi!
E todos chegam às janelas e às portas, dando com os olhos em
um vulto que ergue um archote (3) e descansa ao ombro uma vara de aguilhão. E, ao granizo das chamas, segundo
grito fende o espaço, partindo da boca pintada de vermelho de um cabra, tatuado de preto, de carapuça encarnada:
- Eh!... Airoso!
É o Tio Mateus que, adiante do Bumba-meu-Boi, previne à redondeza
da aproximação do rancho.
De feito, minutos depois pára ele com a sua música tradicional, seu Boi
galhardamente arranjado, e seu pessoal escolhido e completo.
No fim da rua param a uma porta, afinam as violas e cantam:
Aqui estou em vossa porta
Com figura de raposa,
Eu não venho pedir nada,
Mas o dar é grande coisa.
Senhora dona da casa,
Bote azeite na candeia:
Me perdoe a confiança
De mandar na casa aeia.
Abri a porta,
Se quereis abrir,
Que somos de longe,
Queremos nos ir.
A porta abre-se, e a casa é invadida pelos foliões, à exceção do Mateus,
o Boi e o Vaqueiro, que aguardam ordens.
A família e os vizinhos, que acodem pressurosos, fazem roda; acendem-se
mais velas, as violas tinem e o negócio principia:
O Secretário de Sala
(dançado e cantando)
Oi! da prata e do ouro
Se faz o metal!
Oi! a sala dos Reis
É pra nós festejar!
Coro:
Oi! a sala dos Reis
É pra nós festejar.
O Rei:
(sentando-se em uma cadeira)
- O meu secretário de sala!
Secretário:
- Sou humilde para atender ao vosso chamado.
Rei:
- É preciso ver se não se acha aqui no nosso reinado uma peça para
alegrar o coração desta gente, que está piau-piau, como a mandioca lavada em nossas águas.
Secretário:
- Vossa... vola!...
E o Secretário canta e dança, ao coro das Figuras:
Secretário:
Moça que está na janela...
Coro:
Olha bamba, bambirá!
Secretário:
Namorando o que não viu...
Coro:
Olha bamba, bambirá!
Secretário:
Olha a querem maltratar...
Coro:
Olha bamba, bambirá!
Secretário:
Olha o filho que não parece...
Coro:
Olha bamba, bambirá!
Secretário:
Oh! meu S. Benedito,
Que do mar vieste...
Coro:
Lê, lê, Lê!...
Secretário:
A canoa virou
Lá no fundo do mar,
Coro:
O diabo da negra
Não soube remar.
Aí, em tons acelerados e fortes, cantam e esgrimem espadas, o Rei com o
Secretário, e as Figuras entre si, vindo sorrateiramente o Tio Mateus ocupar a cadeira do Rei.
Secretário:
Olha fogo, olha guerra...
Coro:
Fogos em terra...
Secretário:
Olha fogo no mar...
Coro:
É pra nós guerrear...
Secretário:
Fogo faz o Secretário...
Coro:
Fogos em terra...
Secretário:
Olha fogo em nosso Rei...
Coro:
Fotos em terra...
Secretário:
Olha fogo nas Figuras...
Coro:
Fogos em terra...
Finda esta cena, o Secretário de Sala manda Mateus buscar o Boi; Mateus
dá um pinote, gritando:
- Eh!... vem cá, Estrela!
Secretário:
- Está aí o Boi, Mateus?
Mateus:
- Sim, meu sinhô.
Secretário:
Quem me empresta um vintém
Que amanhã dou dois
Pra comprar um fita
E laçar o meu boi?
Guiando o Bumba-meu-Boi, que faz as evoluções mais gaiatas, entra
o Vaqueiro, à cuja voz obedece o Boi, servindo-lhe de guarda de honra as Figuras, que, ao compasso da música, marcham, erguem e
abaixam as espadas, continuando no seu papel de coro.
Vaqueiro:
Ora, entra, Airoso,
Ora, faz cortesia!
Coro:
Eh! Bumba!
Vaqueiro:
Ora, ao dono da casa...
E à senhora também...
Coro:
Eh! Bumba!
Vaqueiro:
Ora, estrova bonito,
Ora, dá uma pontada...
Coro:
Eh! Bumba!
Vaqueiro:
Ora, aqui no Mateus,
Ora, brinca bonito!
Coro:
Eh! Bumba!
Nisso que o Boi dança, à gargalhadas e palmas dos circunstantes, Mateus
dá-lhe uma pancada, e ele revira, esperneando.
O Vaqueiro assusta-se, encoleriza-se, e recomeçam:
Vaqueiro:
O meu Boi morreu,
Quem matou foi Mateus.
Coro:
Eh! Bumba!
Mateus:
Não, senhor, quem matou foi o dono da casa.
Vaqueiro:
Senhor dono da casa,
Me pague o meu Boi.
Coro:
Eh! Bumba!
Vaqueiro:
Vá chamar o doutor.
Coro:
Eh! Bumba!
O Doutor chega, conduzido por Mateus, examina o Boi, prognostica
moléstia grave, receita e pede a Mateus uma viola.
O Doutor toca e Mateus dança, dando tempo a que, em um lenço que atiram,
as Figuras recolham o dinheiro.
Depois de muito toque e de muito fado, o Mateus agarra em um menino para
com ele dar uma ajuda no Boi, que levanta-se, terminando o auto pela cantiga de retirada:
Oi! da prata e do ouro
Se faz o metal!
Oi! a vesp'ra de Reis
É pra nós festejar!
NOTAS (de Luís da Câmara Cascudo):
(1) O autor escreve, duas vezes, bucambis,
mas creio tratar-se de cucumbis, grupos festeiros que Manuel Querino descreveu no Costumes Africanos no Brasil, 266.
Provirá cucumbi de cucumbe, segundo informação de Melo
Moraes Filho estudando os Cucumbis: ... depois da refeição lauta do cucumbe, comida que usavam os congos e Munhambanas nos
dias da circuncisão de seus filhos etc.
Guilherme Melo chama-os Quicumbre, que foram dançados nas festas
comemorativas do casamento da rainha D. Maria I com seu tio, D. Pedro, tendo lugar nos Paços do Conselho na Cidade do Salvador,
a 6 de junho de 1760.
Sílvio Romero, Cantos Populares do Brasil, 187, citando os versos
das Taieras
Meu Sam Benedito
Venho lhe pedir
Pelo amor de Deus
P'ra tocar cucumbi
anota: instrumento africano, incluído posteriormente na relação
de Luciano Gallet.
(2) Bumba-meu-Boi, Boi-Kalemba, Bumba, Boi,
Reis, é um auto brasileiro, único em sua espécie, criação mestiça, sem igualdade e semelhança em Portugal e África,
representação satírica onde convergem influências européias e negras, fundindo cantos de Pastoris, toadas populares, louvações,
loas dos presépios. Aparece no ciclo do Natal até Dia de Reis.
O número de figuras varia entre os Estados, assim como a denominação das
mesmas. É uma série de sketches, cantados, dançados, declamados, numa revivescência de auto seiscentista, pela
apresentação dos personagens, vis cômica, intenção social de ridicularizar determinadas expressões poderosas e um rico
elemento de informação etnográfica pela multidão de dados psicológicos e materiais sobreviventes ao próprio ambiente.
O Bumba-meu-Boi registrado por Melo Moraes Filho, como alguns
existentes noutras paragens, está confundido com os Congos ou Congada, tendo rei, príncipe, secretário de sala
etc. inteiramente deslocados no Boi-Kalemba típico. Há bibliografia erudita, Padre Lopes Gama, Sílvio Romero, Pereira da Costa,
Gustavo Barroso, Artur Ramos, Amadeu Amaral Júnior.
Renato Almeida, que também o estuda com aguda percepção folclórica,
escreveu: Sob todos os aspectos, o Bumba-meu-Boi é o bailado mais notável do Brasil - História da Música Brasileira,
253. Sobre o Bumba-meu-Boi, como sobre os demais autos ou bailados dramáticos tradicionais, reservo-me para maior exame
no meu Literatura Oral do Brasil. Em julho de 1941 conheci no Rio de Janeiro o sr. Alexandre Gonçalves Pinto, que
representara o Boi num rancho promovido por Melo Moraes Filho. O sr. Pinto registrou suas reminiscências num volume, O Choro,
Rio, 1936, 13, lembrando-se ter espatifado a carapaça do Boi dando marradas nos assistentes.
(3) Esse homem do archote, o mesmo que
atualmente conduz o lampião ou uma candeia de querosene no topo duma vara, é o Siri, o Siri-candeia, o mais
humilde posto no Bumba-meu-Boi, constituindo, entretanto, a inicial para o acesso aos lugares altos no elenco do grupo.
Nas proximidades do Natal, meses antes, ensaiam o Bumba-meu-Boi para representá-lo nas cidades, vilas, povoados, engenhos e
fazendas vizinhas, ganhando algum dinheiro e muito mais pela alegria da jornada e vadiação coletiva. Quando alguém se candidata
a galante ou a outra figura do Boi, é fatal a pergunta do "mestre", proprietário do folguedo: - Já trabalhou no "Boi"? - Já,
sim sinhor! - Qu'é que foi? - Fui Siri! E basta. Entra fazendo um papelzinho tolo, mas entra.
Os papéis de maior importância, Mateus, Catarina, Fidélis, Birico, são
confiados aos negros, mulatos de inteligência ágil porque terão de improvisar, durante horas e horas, contando anedotas,
ridicularizando uns aos outros, caindo, empurrando-se, gritando, enchendo tempo, e distraindo o auditório, paupérrimo mas
exigente crítico pelo conhecimento secular do "brinquedo". |