Há na história da conspiração de Minas Gerais um episódio interessante,
e que dá a medida da influência exercida em nosso meio - o meio social onde as idéias de liberdade fermentavam - pela
organização autônoma dos Estados Unidos. Um estudante brasileiro da Universidade de Montpellier, de nome Maia, ligado de alma e
de corpo aos revolucionários em embrião seus conterrâneos, procurou interessar no grande plano que eles ruminavam o ilustre
democrata Thomas Jefferson e obter por seu intermédio o apoio da República recentemente nascida na América do Norte.
Maia dirigiu, neste sentido, a carta que a correspondência de Jefferson,
repetidamente editada nos Estados Unidos, reproduz na íntegra numa comunicação de Marselha, datada de 4 de maio de 1787 e
enviada por ele ao secretário de Estado John Jay.
Vou lê-la, não porque seja seu estilo impecável, nem a eloqüência de
seus acentos digna de um Mirabeau, mas porque em sua incorreção, quero dizer, no seu desajeitamento e na sua ênfase, aliás bem
no século, contém anotações que traduzem bem o estado de alma da colônia, de seu elemento cultivado, pelo menos:
"Sou brasileiro, e vós sabeis que minha desgraçada pátria sofre uma
terrível escravidão que se torna cada dia mais insuportável, desde a época de vossa gloriosa independência, pois que os bárbaros
portugueses não poupam nada para nos fazer infelizes, com receio de que sigamos os vossos passos.
E como sabemos que esses usurpadores, contra a lei da natureza e da
humanidade, não pensam senão em nos abater, decidimo-nos a seguir o admirável exemplo que acabais de nos dar, e por conseqüência
a quebrar nossas cadeias e fazer reviver nossa liberdade que está inteiramente morta e abatida pela força que é o único direito
que têm os europeus sobre a América.
Trata-se, porém, de ter uma potência que dê a mão aos brasileiros, na
certeza de que a Espanha não deixará de juntar-se a Portugal, e, não obstante as vantagens de que dispomos para defendermo-nos,
não poderemos fazê-lo, ou, pelo menos, não será prudente arriscarmo-nos, sem estarmos certos de vencer.
Isto posto, Senhor, é vossa nação que consideramos mais própria para nos
prestar socorro, não só por ter sido ela que nos deu o exemplo, mas também porque a natureza nos fez habitantes do mesmo
continente e, por conseqüência, de alguma maneira, compatriotas. De nossa parte, estamos prontos a dar todo o dinheiro que for
necessário, e a provar em todo tempo o nosso reconhecimento para com os nossos benfeitores (sic).
Senhor, eis aí, pouco mais ou menos, o resumo de minhas intenções, e foi
para desobrigar-me desse encargo que vim à França, pois não poderia ir à América sem fazer nascer suspeitas da parte daqueles
que disso soubessem. Cabe a vós agora julgar dessas minhas intenções, se são admissíveis, e caso quiserdes consultar a este
respeito a vossa nação, estou em condições de vos dar todas as informações que achardes necessárias.
Montpellier, 21 de novembro".
O encontro solicitado por Maia teve lugar no anfiteatro romano em Nimes,
e a linguagem despretensiosa das cartas daquele que ocupava então o posto de ministro dos Estados Unidos em Paris não pode nos
dar senão uma idéia bem pálida da conversação. Precisaria todo o colorido da prosa magnífica de Chateaubriand, as tonalidades de
Atala ou do Itinerário, para dar a impressão da conversa, que teve lugar numa tépida noite da primavera da
Provença, iluminada de luar e perfumada de rosmaninho, entre o ardente cidadão da Virgínia, obedecendo a uma serenidade
voluntária, e o brasileiro ingênuo e cheio de ardor patriótico.
Jefferson era certamente um idealista, mas seu idealismo religioso tinha
por expressão a moral e por contrapeso o utilitarismo: não revelava, como o de Chateaubriand, a preocupação da beleza.
Maia confessou a Jefferson que a revolução era principalmente desejada
pelos homens de letras, porém que a oposição seria mais ou menos nula, pois o grosso das tropas era composto de brasileiros,
somente metade dos oficiais eram portugueses, bem poucos entre eles fortes em ciência militar, e quase todos bastante
indiferentes à forma de governo.
Disse que os nobres eram despidos de senso aristocrático, os padres não
tinham autoridade sobre as classes populares, os escravos estavam dispostos a acompanhar seus senhores. O hábito de caçar
parecia garantir que a gente do povo saberia servir-se das armas de fogo que possuía.
O que faltava sobretudo era um chefe, alguém que se pusesse à frente do
movimento, e para fazê-lo aparecer era necessário contar com o apoio de uma grande nação como os Estados Unidos, que pudesse
fornecer armas aos revolucionários, munições, soldados e comandantes, assim como as provisões que faltavam aos brasileiros:
trigo e bacalhau, tudo pago a dinheiro ou, mais precisamente, pago em ouro à vista, ouro que as minas bastavam para garantir.
A resistência de Portugal não era de temer; aquele país não possuía
marinha nem exército dignos desses nomes, e o ódio que os brasileiros lhes votavam permitia esperar-se que estes fizessem
prodígios.
A resposta de Jefferson faz honra à sua discrição diplomática. Tem a
secura de um comunicado oficioso. Vou traduzi-la textualmente de sua carta, com receio de tirar às suas palavras a forte
dose de bom senso, ao mesmo tempo que sua correção de chancelaria:
"Tive cuidado de fazer-lhe bem compreender, durante todo o tempo da
conversação, que eu não tinha nem instruções nem autoridade para tratar desse assunto com quem quer que fosse, e que eu não
podia portanto senão dar-lhe parte de minhas idéias pessoais.
"Estas eram de que nossa situação não nos permitia tomar parte como
nação em nenhuma guerra, e que nosso desejo mesmo era muito particularmente cultivar a amizade de Portugal, com o qual tínhamos
um comércio próspero. Uma revolução vitoriosa no Brasil não poderia, entretanto, deixar de interessar-nos.
"Era bem possível que a perspectiva de lucros pudesse eventualmente
atrair para o partido dos revolucionários numerosas pessoas, e que os motivos mais puros pudessem granjear a adesão de alguns de
nossos oficiais, cujo corpo contava muitas unidades excelentes. Gozando da liberdade de deixar o país individualmente, sem o
consentimento dos governos da Federação, nossos concidadãos podiam, do mesmo modo, dirigir-se livremente para outro país".
A conversação não podia terminar por outro resultado, entre dois
interlocutores animados de espíritos tão dessemelhantes, e cada qual deles considerando o assunto de pontos de vista tão
opostos.
Ambos eram representantes das melhores classes de seu país: um da classe
dos gentlemen-farmers, preparados pela independência da vida social inglesa e pela liberdade de sua existência política
colonial no governo da Federação estabelecida entre as possessões; outro, um jovem estudioso, de família abastada, pois que
podia vir para a Europa seguir um curso, preocupado com os projetos de libertação política que borbotavam em alguns espíritos
longínquos, os quais, na capitania, votada ao culto do ouro, sofriam mais que em nenhuma outra, nos seus atos e mesmo em seus
pensamentos, do constrangimento e da desconfiança diária das autoridades propostas a exercer vigilância sobre suas pessoas.
Maia não estava, senão indiretamente, ligado aos conspiradores de Minas
Gerais. Pelo resultado das declarações feitas no decorrer do processo, instaurado contra eles, Maia havia sido encarregado de
entendimentos no estrangeiro, por negociantes do Rio de Janeiro, o que mostra que devastações a aspiração de liberdade houvera
feito, e como o desejo de um levante era geral, principalmente depois do que sucedera nos Estados Unidos.
Numa conferência sobre Tiradentes, o mártir da conspiração, ao elogio do
qual o Sr. José Feliciano de Oliveira se dedicou com todo o fervor de sua alma de apóstolo e todo o rigor de sua educação
filosófica, foi lembrado que aquele que se tornou no Brasil um herói legendário chorara de entusiasmo, ao saber por um amigo,
que regressava da Inglaterra, a história minuciosa da Revolução da América, e que desde então não cessava de rogar aos amigos
lhe traduzissem as obras, escritas em língua inglesa, que tratavam de um assunto que tanto lhe apaixonava o patriotismo. |