Boizinho de
Ubatuba, versão do folguedo do Boi, Boi-bumbá, Bumba-meu-boi, observado em quase todo o Brasil. Documento do Arquivo do Museu
de Artes e Técnicas Populares (Folclore), da Associação Brasileira de Folclore, 1968
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texto, na página 81
Origens do teatro popular brasileiro
Dr. Pedro de Oliveira Ribeiro Neto
Conferência realizada em 18/9/1963
Assim como os
franceses e ingleses do fim do século XV tiveram os seus Mistérios e Moralidades, herdados da Idade Média, cheios de
misticismo, em Portugal e na Espanha foram os Autos da mesma época os iniciadores das peças teatrais populares. Em geral de
assunto religioso, os Autos eram representados em teatros e palcos móveis, nas praças e nas ruas, mudando-os freqüentemente o
lugar da representação para atender às festividades nas quais o teatro era um dos pontos mais apreciados. No Natal, nas festas
de Reis, na Páscoa, nas Procissões de Corpus-Cristi, eram os Autos encenados, para alegria e contemplação do povo, com a sua
música e a sua dança integrados no entrecho.
Em Portugal, o primeiro escritor a fazer autor e que neles se celebrizou,
foi Gil Vicente, até então conhecido como professor de retórica do rei d. Manuel o Venturoso. Como Shakespeare e Molière, Gil
Vicente era autor e ator, e foi no quarto da rainha d. Maria, esposa do rei venturoso, na presença do rei, da rainha-mãe d.
Leonor, da infanta d. Beatriz e da duquesa de Bragança, que Gil Vicente demonstrou seu talento teatral pela vez primeira,
recitando o Monólogo da VIsitação ou do Vaqueiro, escrito em castelhano para melhor ser entendido pela rainha, de origem
espanhola, ou talvez por ser a língua castelhana de bom tom na Corte Portuguesa.
A rainha d. Leonor gostou tanto da recitação que empresou Gil Vicente a
novamente representar o Monólogo da Visitação pelas festas do Natal, e Gil Vicente, entusiasmado, compôs para a nova ocasião
um outro auto que se chamou Pastoril Castelhano.
Dados os primeiros passos, descoberto o seu gênio teatral, Gil Vicente
compôs daí em diante, durante mais de trinta anos, quarenta e cinco peças teatrais do mesmo gênero, compondo-as a maioria em
português e modificando-lhes cada vez mais o estilo, afastando os seus autos dos assuntos religiosos até então obrigatórios.
Criticando desabusadamente, porque gozava dos favores da família real, as mazelas e ridículos das classes mais elevadas,
egoístas e viciosas, e os costumes atrasados e livres também do povo, Gil Vicente criou um teatro português de gênero que
nunca seria igualado, constituindo-se um verdadeiro retratista da época, êmulo dos espanhóis Lope de Vega, Cervantes e
Calderon.
As quarenta e cinco peças de Gil Vicente, por ele coligidas com o auxílio de
sua filha Paula, só foram publicadas em 1562, sob os cuidados de seu filho Luiz Vicente, já revistas pela censura
eclesiástica, sendo dezesseis peças em português, onze em castelhano e dezoito bilíngües. Essas peças foram pelo próprio autor
classificadas em três grupos: hierático (obras de devoção), aristocrático (tragicomédias) e popular (comédias e farsas).
Deve causar estranheza a liberdade de linguagem de Gil Vicente, que não
tinha freios nos seus comentários e críticas, bem como que a censura eclesiástica tivesse deixado passar assuntos e palavras
um tanto ou quanto assustadoras para o nosso espírito crítico. Não nos esqueçamos, entretanto, da época em que as peças foram
escritas, primeira metade do século XVI, em que a educação e o senso de moral eram muito diferentes dos atuais, não podendo
ser bom termômetro para a moralidade de então o nosso próprio senso atual das conveniências. A Mandrágora, de Maquiavel, mais
ou menos da mesma época, com toda a sua audácia de enredo e de palavreado, foi representada e aplaudida no Vaticano pelo papa
e sua corte de cardeais.
Ao que se diz, Erasmo aprendeu português de propósito para ler a obra de Gil
Vicente. Disso não há prova, se bem que Erasmo fosse amigo de Damião de Góis e de mestre André de Rezende, por intermédio dos
quais poderia ter conhecido a fama e o valor do grande dramaturgo de Portugal. É certo, entretanto, que na mesma época em que
Gil Vicente era apresentado em livro no Reino, já no Brasil era conhecida a sua obra e o seu gênero teatral tinha adeptos e
seguidores.
Os autos de José de Anchieta, as primeiras peças de teatro representadas no
Brasil, na Capitania de São Vicente em 1565, para atrair os índios e facilitar-lhes a catequese, tinham muito da forma poética
de Gil Vicente, nos seus setissílabos correntes, e de gênero da sua crítica à sociedade portuguesa, aplicada aos costumes
desabridos da indiarada e dos primeiros colonizadores. Evidentemente, com a sua pureza de santo que também era poeta, Anchieta
em muita coisa se aproxima dos Autos e Mistérios religiosos de sua época, mas ninguém poderá negar a sublimidade de certos
trechos de Gil Vicente, que poderiam também ter inspirado o nosso primeiro dramaturgo, como a bela oração de Santo Agostinho e
a fala do Anjo do Auto da Alma.
Foi em 1575 que Pernambuco conheceu os autos teatrais dos jesuítas, quando
se representou o Rico Avarento e o Lázaro Pobre. Desconhecemos o enredo da peça, mas pelo título parece-nos que não era
obra de devoção, como os Mistérios da Idade Média, mas sim teatro para o povo, como o era o de Gil Vicente.
Teatro religioso popular brasileiro
Dos Autos de Natal legados às nossas gerações pelos primeiros colonizadores
jesuítas, restaram a tradição dos Reisados do Norte e do Bumba-meu-boi, este já mais generalizado e espalhado por todo o
Brasil, uns e outros ligados às festividades comemorativas do nascimento do Menino-Deus. Reisados e Bumba-meu-boi são puro
teatro popular, feito para o povo e por ele guardado e adulterado através dos anos, para ficar mais ao jeito de cada época,
apesar de conservar toda a ingenuidade primitiva.
Melo Morais Filho, em seu livro básico sobre Festas e Tradições do Brasil,
conta muita coisa sobre os Reisados do Nordeste Brasileiro e sabemos que até agora, em certas cidades nordestinas, são os
Reisados conservados e representados mais ou menos com as mesmas características fundamentais. É sempre a história do pastor
que recebeu o aviso do nascimento do Menino-Deus e vai a caminho da gruta de Belém para adorar Jesus, encontrando pela frente,
várias vezes, o Diabo, de rabo e chifres, com as suas tentações para tirá-lo do bom caminho, e o Anjo da Guarda,
resplandecente de luzes, para conduzi-lo a bom termo.
Com o Diabo, que surge em cena numa nuvem de fumaça e enxofre, aparecem
bailarinas, pastorinhas, roteiros de tesouros escondidos, bebidas e folganças sem conta; mas o Anjo, que surge num ambiente de
cânticos e luzes, vence o Tinhoso, e o pastor chega afinal ao presépio, onde se dá a adoração. Aí estão Nossa Senhora, o
Menino e São José. Assistimos a um reisado destes em Belém do Pará, num clube náutico dos arredores da cidade, levado com toda
devoção e ingenuidade, espetáculo evidentemente ensaiado meses a fio, pois nada saiu errado. Só que o caboclinho que fazia o
Menino Jesus estava muito resfriado e espirrava de causar dó.
Em Sergipe os espetáculos dos Reisados continuam a ser exibidos anualmente
nas cidades tradicionais, nas principais casas, onde durante as festas natalinas, todas as noites, cada vez em uma casa, a
gente melhor da cidade e os seus agregados se reúnem em torno de boa mesa e assistem às cenas do teatrinho de adoração dos
Pastores.
Pelo que vimos pessoalmente e em confronto com o que sabemos de estudo e
tradição oral, verificamos que, de meados do século XIX para cá, apesar das grandes mudanças da vida de todo mundo, essa
modalidade do teatro religioso popular brasileiro não mudou.
Autos brasileiros
Dos Autos introduzidos no Brasil por José de Anchieta e cultivados pelos
jesuítas na Bahia e em Pernambuco, para auxiliar a catequese dos índios nos primeiros anos da civilização e melhorar a moral e
os costumes dos brancos e mestiços que aqui viviam, quase só resta a tradição histórica e literária. Alguns, de forte teor
religioso, peças de devoção como as chamava Gil Vicente, o seu genial cultor em Portugal, outros de caráter educacional para
bom exemplo do povo, foram esses autos se extinguindo, ou talvez se fundindo, dando nascimento a outros enredos às vezes com
as mesmas figuras, reformando-se através dos séculos até os nossos dias, quando subsistem apenas na memória de alguns livros e
cultores do folclore.
Desses autos teatrais representados nas festividades de Natal, de Reis, da
Páscoa, de Corpus Christi e das várias devoções de Nossa Senhora, serão filhos, já cruzados com as influências dos negros que
os cultivaram e guardaram com amor desde o século XVII, as Cheganças e Fandangos, de Pernambuco, os Reisados do Pará e de
Sergipe, o Bumba-meu-boi, a que se acrescentaram, já de teor africano, mas com influência portuguesa e cabocla, o Maracatu, o
Congo e as Taieras de Pernambuco, a Congada, os Quicumbres e os Quilombos da Bahia, de Minas, do Rio e de São Paulo, o
Moçambique do nosso vale do Paraíba, todos com enredos simples e primitivos, como os Mistérios Medievais e os velhos Autos
religiosos.
Muitos portugueses de linguagem, em versos setissílabos: era a Nau
Catarineta, lenda de uma caravela perdida no alto mar, com a sua ordem rimada ao gajeiro real para subir ao mastro:
Vê se vês terra de Espanha,
Areias de Portugal.
Da mesma forma, pelo assunto, são européias as Cheganças e Fandangos de
Pernambuco, que se referem, as primeiras aos mouros da península ibérica, os outros aos marujos da época dos descobrimentos
portugueses, e os Reisados, tipicamente natalinos como era o Auto da Visitação ou do Vaqueiro, chave de ouro da celebridade de
Gil Vicente no século XVI.
Cena de uma Congada
de Atibaia, que compreende desfile de rua e embaixada, isto é, representação de uma guerra do grupo do General contra o Rei
cristão. 6/1/1961
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Bumba-meu-boi
Em estudo há trinta anos (N.E.: portanto, por volta de 1939) apresentado num
Congresso Afro-Brasileiro realizado em Recife, sobre o teatro popular negro no Brasil, examinou Samuel Campelo, com muito
conhecimento, certas figuras do Bumba-meu-Boi, tal como era apresentado no subúrbio recifense de Arruda, justamente na zona
dos terreiros de candomblé.
Pelas suas descrições verifica-se que o Bumba-meu-boi de Arruda é idêntico
ao que assistimos posteriormente em Recife e em São Paulo, com pequenas modificações de personagens e de textos, ditadas pelas
conveniências da representação e pela natural mudança que a tradição oral dos versos e palavras vai introduzindo.
O Boi, este sim, é sempre o mesmo, descrito por Melo Morais Filho e
Guilherme T. P. de Melo, e visto por nós em várias exibições desse auto festivo, como por exemplo nas do Teatro Popular de
Solano Trindade. O mesmo arcabouço de madeira coberto com chitas, a mesma cabeça pintada, com os devidos chifres, tudo
carregado às costas do ator que lhe faz o papel. Da mesma construção é o Cavalo Marinho que conduz o Capitão (e é por este
carregado). O Valentão, o Queixoso, a Ema, o Morto-carregando-o-vivo, Mateus, Bastião, Catarina, todos são os mesmos tipos, no
Norte como em São Paulo.
Interessante é a interpretação dessas figuras, feita por Samuel Campelo, que
se identifica com personagens dos engenhos nortistas. O Capitão é o Senhor do Engenho; Mateus e Bastião, moleques da Casa
Grande; as cantadeiras são as escravas dos eitos de cana. As loas de Mateus e Bastião são bem de moleques escravos. A loa do
Valentão é um canto de louvor a Deus-Menino e denuncia a festa religiosa.
As cantadeiras são o coro grego dessa peça mestiça; elas é que orientam o
movimento do cavalo marinho, ao som do ganzá e do zabumba, chamam os personagens para entrar e anunciam Mateus e Bastião,
dando a estes, depois de cada nome, o Engenho a que pertencem: - Lá vem
Mateus,/lá vem Bastião/vendendo as canadas a tostão./Mateus, Estrela d'Alva,/Bastião, Luz do Dia./
Curioso é o papel dos dois moleques, principalmente Mateus com a sua bexiga
de boi cheia de ar, batendo em todo o mundo como os palhaços das pantomimas de circo que acabam os atos com os seus bengalões
de papelão, ou certos criados da Commedia del'Arte e de Molière que, brandindo os bastões ocos, usam o mesmo processo bufo
para encerrar episódios difíceis de terminar.
Muito difícil será identificar-se a verdadeira origem do Bumba-meu-boi,
depois do número sem conta de anos de representação popular, num texto que, se conserva um certo fio único de história,
modifica-se em cada lugar que se representa, conforme o ambiente e as possibilidades do grupo que encena o festejo.
Não há dúvida que se trata de peça de teatro para ser representada em
festividade religiosa popular, pois em toda parte do Brasil em que o Bumba-meu-boi é levado, sempre se escolhem as festas da
Igreja para isso. Melo Morais Filho chega a dizer: Tirai de véspera de Reis o Bumba-meu-boi e estai certo de que roubareis à
noite da festa o que ela tem de mais popular em todo o Norte do Brasil e de mais nosso como assimilação de produto elaborado.
Esse auto de caráter grotesco em suas cenas, entremeado de chulas, de diálogos patuscos e desempenhado por personagens
extravagantes é tudo quanto há de mais curioso no tempo de Natal.
Artur Azevedo, maranhense aclimatado no Rio, escrevendo na velha revista
Kosmos, em princípios deste século (N.E.: século XX), sobre a origem do Bumba-meu-boi, depois de tecer comentários sobre as
reminiscências que ficaram neste auto dos velhos autos portugueses, como a figura do vaqueiro, e de achar mesmo provável que o
Bumba-meu-boi, na sua forma primitiva, fosse um auto composto com todas as regras do gênero por algum poeta do povo,
satirizando algum fato acontecido, tenta ligá-lo ao Boeuf-Gras de Paris, ressuscitado por Napoleão, boi que até o
século XVIII, num dia de cada ano, dava um passeio pela capital francesa, coroado de flores, seguido dum cortejo que dançava e
cantava à porta dos cidadãos mais importantes. Outros filiam o Bumba-meu-boi ao Auto da Visitação de Gil Vicente.
Mas contra isso Melo Morais protesta, dizendo que terras de gado e de
vaqueiros como o Ceará, o Piauí, Rio Grande do Norte, Paraíba, Pernambuco e Alagoas, não precisariam do Boeuf-Gras ou
do Auto de Gil Vicente para criarem o seu espetáculo popular, com figuras bem brasileiras e originais, como Mateus,
Catarina, Bastião, o Capitão, o Valentão, a Velha da Ema. E para dizer a verdade, concordando com Melo Morais, com todo o
respeito devido ao mestre Artur Azevedo, que têm essas figuras todas com o Boeuf-Gras ou com o vaqueiro da visitação
vicentina?
Qualquer que seja a origem do Bumba-meu-boi, trata-se de peça que foi
adaptada aos poucos e que, do provável auto português, vestiu-se com outras roupagens que lhe deram os nossos escravos negros,
conhecedores da vida das senzalas, dos costumes dos fazendeiros e senhores de engenho e das cantigas prenhes de nostalgia
africana.
No Bumba-meu-boi representado no primeiro quartel deste século
(N.E.: século XX) em
Arruda, subúrbio de Recife, conforme descrição feita por Samuel Campelo na tese que apresentou sobre o teatro popular negro no
Brasil, além do Boi, do Cavalo Marinho, do Capitão, do Mateus, Bastião Valentão, Queixoso, Caterina, personagens principais
desse precioso auto teatral popular brasileiro, desfilavam cerca de quarenta personagens e mais, engraçados, típicos,
caricaturais ou líricos, cada qual a seu modo. Essas figuras, enxertadas aos poucos no auto original, são uma prova da
influência local e de que, naturalmente, em Arruda houve algum poeta popular de prestígio, que contribuiu com seu engenho e
imaginação para o enriquecimento da peça em questão.
De velhas notas tiradas daquele trabalho de Samuel Campelo extraímos algumas
quadras que merecem ser reproduzidas para conhecimento mais geral dos interessados no nosso teatro folclórico. O Capitão, que
encarnava o Senhor de Engenho, cantava a sua loa, deliciosa:
Lá em cima daquela serra
canta duas patativa.
Quero ver elogiar
o dono da casa. Viva!
Se eu pegasse o dono da casa
fazia dele um diamante
trazia ele colocado
dentro de um carro triunfante.
E a loa do Valentão ao Menino-Jesus:
Naquela excelente noite
aquela noite resplandecente
nasceu Jesus na gloria
Jesus Cristo é um potente.
O canto do Padre para confessar o Morto era engraçadíssimo e nada de padre:
Olô, belas morenas
de Garjaú,
aguardente de cana
mel de uruçu
as velhas daqui
são pé de urubu,
Olô belas morenas
etc. e tá
acabou-se a aguardente
vim me acabá.
O lirismo do Perna-de-pau chega a ser lindo:
Cordão de ouro é bonito
no pescoço da donzela
mais bonito é o Capitão
deitado no colo dela.
Galo branco canta, canta
no terreiro do seu dono.
Moça quando quer fugir
cochila mas não tem sono.
Mestre Domingos, negro pachola e
metido a conquistador, era outra figura do Bumba-meu-boi pernambucano:
Mestre Domingos
você pra onde vem?
- Venho da rua
vou pra casa de meu bem.
Mestre Domingos,
cadê sua muié?
- Na beira do fogo
torrando café.
Pela cadência, estas quadras nos parecem enxerto de fins do século XIX,
semelhantes a outras quadras populares do Rio de Janeiro.
Quilombos e Taieras
Várias vezes nos referimos ao teatro popular trazido pelos portugueses, como
as Cheganças e Fandangos de Pernambuco, os Reisados e o Bumba-meu-boi, todos manifestações festivas de fundo religioso, com
acréscimos anônimos que surgiram não se sabe quando, como nos presépios e lapinhas que nascem com as figuras da Sagrada
Família, do boi e do burro, e aos poucos vão se enchendo de outras figuras e objetos, que em geral são até o que lhes dá o
pitoresco e a originalidade.
Além desses autos populares, mestiços mas de garantida origem portuguesa, há
no teatro popular brasileiro outras exibições tipicamente negras, reveladoras dos costumes dos escravos brasileiros e deles
herdadas por seus descendentes, que até agora, em certas ocasiões, ainda as apresentam como a mesma tradição.
Nunca as assistimos, e delas temos conhecimento pela leitura do trabalho de
Samuel Campelo que cita o livro Música no Brasil, de Guilherme T. P. de Melo, publicado na Bahia nos primeiros anos
deste século (N.E.: século XX), às danças baianas dos Quicumbres e Quilombos, executadas por negros que simulavam combates entre escravos
fugidos e capitães-do-mato. Afinal, vencidos, os negros são aprisionados e fazia-se um simulacro de leilão de escravos, em que
os assistentes eram os compradores e licitantes. O produto desse leilão era dado para cobrir as despesas com as festas da
Igreja.
Sabemos que o texto falava no Quilombo dos Palmares, o que, além da
participação da assistência na representação, dá muito interesse ao assunto, mas pensamos que deviam ser muito poucas as falas
desse primitivo teatro negro, como poucos são os versos das chulas de fundamento, também de origem africana, cantadas pelos
mestres nos jogos baianos de capoeira e de berimbau de barriga.
Já os Congos e Taieras de Pernambuco e as Congadas são autos mais
desenvolvidos, representados em geral nas festas dos santos de maior devoção dos negros, Nossa Senhora do Rosário e São
Benedito. Melo Morais Filho descreve as Taieras no seu livro Festas e Tradições Populares, as mulatas vestidas de
branco, com as suas batas transparentes, dançando e cantando em homenagem aos seus santos:
Virgem do Rosário
Senhora do Norte,
dá-me um coco d'água
senão vou ao pote.
O coro todo canta no compasso:
Indere, rê, rê
Ai Jesus de Nazaré.
E de novo as taieras:
Meu São Benedito
é santo de preto,
ele bebe garapa
ele ronca no peito...
Que pode haver de mais típico, como teatro popular negro brasileiro?
Pantomima dos Congos
Das peças de teatro popular negro que os escravos do Brasil transmitiram às
suas gerações e até agora se representam, até com a participação de brancos, talvez seja a Congada a mais generalizada e a que
mais se aproxima dos velhos autos portugueses, por ter texto falado e cantado e seguir um certo enredo teatral. Não
confundamos, como todo mundo faz, os Congos com as Congadas, aqueles de exibição nortista.
Silvio Romero, grande estudiosos do nosso folclore, descreve os Congos que
assistiu na cidadezinha de Lagarto, em Sergipe, provavelmente em fins do século passado (N.E.: século XIX), como uma pantomima em que os
figurantes, todos pretos, iam vestidos de reis e de príncipes, armados de espada, fazendo guarda de honra a três rainhas
pretas que acompanhavam a procissão de Nossa Senhora do Rosário e de São Benedito. No grupo iam alguns cavaleiros que tentavam
roubar a coroa das rainhas, no que eram impedidos pela guarda de honra. E os heróicos defensores cantavam em coro:
Fogo da terra
fogo do mar
que a nossa Rainha
nos há de ajudar.
Conta Melo Morais Filho que os Congos eram muito apreciados e todo mundo
participava dos folguedos: "Os senhores de engenho abalavam-se de
léguas, o povaréu formigava nas estradas, negros escravos, dispensados do trabalho, festejavam os seus santos, descuidosos,
contentes, felizes".
Segundo o mesmo mestre de Festas e Tradições Populares, entre as três
Rainhas "arrastando compridos mantos, com suas coroas douradas, ladeadas
de congos vestidos de branco, com enormes barretinas de linho enlaçadas de fitas e recamadas de miçangas" havia uma que se chamava a Rainha Perpétua, por cuja coroa se disputavam os
"príncipes negros".
Por estas descrições dos mestres Silvio Romero e Melo Morais Filho
verifica-se que os Congos do Norte não são bem semelhantes às Congadas de Minas, do Rio de Janeiro e de São Paulo, sendo
aqueles uma variante muito mais simplificada destas, que têm enredo e muito mais ação que a exibição nortista. De comum, ao
que nos parece, o que mais ressalta é o nome, oriundo da mesma nação negra dos criadores de ambas as representações. Falta ao
Congo do Norte o mistério, a alma do enredo da Congada, que faz desta um legítimo auto teatral.
Não sabemos que, até agora, alguém tenha feito essa distinção entre Congo e
Congada, que Samuel Campelo confunde como se fosse o mesmo espetáculo com nomes diferentes. Mas a distinção é essencial, pois
na Congada há enredo teatral mais desenvolvido e completamente diverso da pantomima dos Congos.
Auto das Congadas
Em seu já clássico livro O Rio de Janeiro ao Tempo dos Vice-Reis,
descreve Luiz Edmundo uma Congada realizada em 1811 na Corte, sendo "Rei" Caetano Lopes dos Santos e "Rainha" Maria Joaquina.
No trono armado na praça, em frente ao palácio do vice-rei, sacudindo os seus caracachás iniciava o rei preto a sua
representação:
Sou rei do Congo,
quero brincá.
Cheguei agora
de Portugá.
E o coro anunciava respeitoso:
- É Sambangalá!
chegado agora
de Portugá!
Ao lado do casal reinante no Congo, Mameto, o príncipe herdeiro, dança
contente e cantando, quando, como nos velhos autos clássicos, surge o Diabo, encarnado na figura dum chefe índio, e derruba
Mameto com um golpe de tacape. Vem aí o bailado mortuário do Rei, muito impressionante, e surge Quimboto, o feiticeiro,
dançando e cantando:
É Mamaô, é mamaô
Ganga rumbá
seisecê iscô.
O coro faz a invocação devota:
Quem pode mais?
É o só, é a lua,
Santa Maria
São Benedito.
Aí acontece o milagre da ressurreição e a peça termina com o casamento de
Quimboto, o feiticeiro, com a mais bela princesa do Congo.
Os trajes usados em 1811 pelos "nobres" congos do Rio de Janeiro, descritos
por Luiz Edmundo, não variavam muito nos espetáculos do mesmo gênero realizados em certas cidades paulistas até agora. Os
mantos de baeta dos congos mineiros, ou de sede e belbute, dos reis da Congada carioca, foram substituídos agora pelo cetim e
pelo veludo, mais vistosos, suntuosos e fáceis de encontrar no comércio atual. As coroas do Rei e da Rainha são, em alguns
casos, de rico trabalho, algumas até de prata, com feitio barroco.
O mesmo desenvolvimento descrito por Luiz Edmundo da Congada representada há
mais de cento e cinqüenta anos no Rio de Janeiro dos vice-reis, têm as que são representadas até agora em São Paulo e Minas,
nas velhas cidades em que houve lavouras tratadas pela escravatura.
A importância do Rei e da Rainha do Congo, que falta nos Congos nortistas, a
que antes nos referimos; a ação de tragédia da morte de Mameto, a sua ressurreição pela intervenção divina, embora suspeita da
bruxaria de Quimboto, fazem das nossas Congadas um verdadeiro auto teatral, ao passo que os Congos do Norte são mais uma
pantomima do que propriamente um drama do teatro popular. |