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Um baile sem fiscal, no fim da Monarquia

Existe muito de folclore, mas também muito de verdade, no último baile promovido pela Monarquia brasileira, na Ilha Fiscal, no Rio de Janeiro - onde na noite de 9 para 10 de novembro de 1889 mais de cinco mil pessoas dançaram polcas e valsas e beberam 12 mil garrafas de vinho e 200 caixas de champanhe francesa, em uma homenagem ao Chile por ocasião da passagem do couraçado Almirante Cochrane.

Em 28 de setembro de 1992, o jornal paulista O Estado de São Paulo publicou a matéria a seguir transcrita, relatando o preparo de um livro sobre esse evento que marcou a queda do Império no Brasil. Na época da publicação dessa reportagem, o Brasil havia derrubado o presidente Fernando Collor de Mello e investigava os ilícitos cometidos por seu tesoureiro de campanha, Paulo César Farias, que seria depois encontrado morto em sua casa) e se preparava para promover em 1993 o plebiscito previsto na Carta Magna de 1988, que determinaria a forma de governo no País, república ou monarquia:

Ilha Fiscal: o prédio em estilo mourisco teve quatro salões decorados como jardins para receber 5 mil convidados
Foto: Tatiana Constant/AE

HISTÓRIA

Livro sobre baile da Ilha Fiscal dirá que d. Pedro II gastou rios de dinheiro na festa que acabou ajudando na proclamação da República.

Luxo e ostentação antecederam fim do Império

Carlos Franco

RIO - Os pesquisadores do Arquivo Nacional, órgão do Ministério da Justiça, estão à procura de patrocínio no valor de US$ 20 mil (cerca de Cr$ 150 milhões) para concluir um livro sobre o baile da Ilha Fiscal, realizado no dia 9 de novembro de 1889 pelo imperador d. Pedro II e que marcou a transição do Império para a República. Eles acreditam que as investigações sobre a participação do presidente Collor nas atividades de Paulo César Farias e a votação de plebiscito sobre regime de governo, em abril do próximo ano, estão despertando curiosidade sobre os hábitos da corte de d. Pedro II.

O material iconográfico relativo ao baile da Ilha Fiscal, em homenagem à tripulação do couraçado chileno Almirante Cochrane, e a análise de especialistas sobre os trajes dos cerca de 5 mil convidados, a música, o cardápio e o comportamento dos participantes começou a ser estudado no início de 1989, quando foi comemorado o centenário da proclamação da República.

Seis dias depois do baile, no mesmo Cais Pharoux de onde partiam os ferry-boats para levar os 5 mil convidados do imperador para o baile, o Marechal Deodoro proclamava a República.

Escândalo - Segundo Maria do Carmo Rainho, pesquisadora responsável pela análise de moda do projeto, objetos, como por exemplo as peças íntimas que foram encontradas na ilha após a festa, foram motivo de escândalo quando noticiados pelos colunistas das revistas femininas do século passado [N.E.: século XIX]. Entre essas revistas, a Eu Sei Tudo revelava que "a Coroa não era tão casta como pressupunham os seus súditos".

Mas o escândalo começou com a transformação da Ilha Fiscal, um prédio de estilo mourisco a 200 metros do centro do Rio, em jardim das mil e uma noites. Esse prédio, hoje administrado pelo Ministério da Marinha e onde são permitidas visitas guiadas por militares, era, na realidade, o posto de vigilância aduaneira do Império, conhecido popularmente na época como Ilha dos Ratos, devido à quantidade desses animais ali existentes.

Rios de dinheiro - Para fazer da ilha um jardim de sonho dentro de quatro salões imperiais, foram gastos "rios de dinheiro", segundo o colunista Escragnolle Doria, da Eu Sei Tudo. De acordo com o Jornal do Commercio em sua edição de 11 de novembro de 1889, a Ilha Fiscal e o cais Pharoux foram transformados num cenário encantado, onde demoiselles vestidas de fadas e sereias recepcionavam os convivas.

O cais Pharoux, no centro do Rio, hoje é conhecido como Praça Quinze e apresenta, como resultado de escavações realizadas há cinco anos, as escadarias que foram utilizadas pela Corte para chegar aos ferry-boats.

Para o pesquisador do Arquivo Nacional, Sebastião Uchoa, que fez o levantamento dos artigos de jornais de época para o projeto do livro, o luxo e as extravagâncias que cercaram o desembarque do couraçado Almirante Cochrane, dando lugar a um período denominado "festas chilenas", incentivou a propagação dos ideais republicanos.

A proclamação da República, no entanto, não significou o fim das festividades em torno da tripulação do couraçado Almirante Cochrane. Os republicanos aproveitaram para brindar com os chilenos o fim do Império, chegando até a afirmar que o fato de o Chile ser uma República foi um estímulo à sua proclamação.

Sofisticação: capa do menu daquela festa

Republicanos criticaram extravagância

RIO - O luxo e a extravagância dos trajes e cabelos das convidadas do baile da Ilha Fiscal receberam alfinetadas de republicanos e aplausos de monarquistas. A imprensa dividiu-se em seus relatos. O jornal Tribuna Liberal, na sua edição de 10 de novembro de 1889, falou do "brilho e o ruge-ruge das sedas, os colos salpicados de brilhantes, safiras, esmeraldas e os diademas rutilantes dos penteados".

O colunista Desmoulins, do Correio do Povo, por sua vez, citou o mau gosto a que se entregaram muitos dos convidados. Criticou ainda os homens que, no salão, mantinham seus chapéus ingleses do Wellicamp e do Palais Royal enfiados na cabeça.

As roupas das mulheres eram adquiridas nas lojas sofisticadas da Rua do Ouvidor, no centro do Rio. Os cabelos, penteados por cabeleireiros franceses da Casa A Dama Elegante, no mesmo endereço. Já os homens abusavam das brilhantinas inglesas da Fritz Marck and Co. nos cabelos e nos bigodes.

Apenas os homens da Corte e os militares tinham acesso aos barbeiros especializados em cortar bigodes à titlé (garoto esperto), chicard (chique), grognards (soldados da Guarda Napoleônica) e rostillon (cocheiro de carruagens de gala). "Pelo bigode se podia conhecer a origem de um homem no Brasil Império", diz Maria do Carmo.  (C.F.)

Fartura: carta de vinhos servidos aos privilegiados participantes daquele baile

Festa consumiu 12 mil litros de vinho

RIO - A valsa e a polca foram as músicas predominantes no Baile da Ilha Fiscal, que reuniu 5 mil convidados, segundo o pesquisador Carlos Sandroni, que responde sobre música no livro do Arquivo Nacional. Na época, a execução dessas canções ficava por conta das bandas imperiais, em sua maioria militares. Ele relata que até mesmo o couraçado Almirante Cochrane tinha uma banda a bordo, para animar os convidados de suas festas.

As partituras eram editadas com requinte pela Casa Buschman e Guimarães, responsável pela publicação do Hino Chile-Brasil, composto por Francisco Braga, para saudar a tripulação do Almirante Cochrane e canção obrigatória nas festas chilenas, realizadas entre outubro e novembro de 1889.

Os cartões de dança das mulheres, que foram encontrados na Ilha Fiscal após o baile, junto com ligas e espartilhos, revelam que a piéce de resistance foi uma seqüência alternante em três tempos: fantasia, valsa, minuano, valsa, fantasia, valsa. O som de fundo era feito com trechos de óperas de Verdi, Boccherini, Waldteufel, Metra e Auber. Os cartões são uma das curiosidades guardadas no Arquivo Nacional. Neles, as damas anotavam os nomes dos cavalheiros com quem haviam se comprometido a dançar.

O cozinheiro francês de nouvelle cousine, Laurent Suadau, responde no livro pelo capítulo do cardápio servido nessa única noite, destacando a exuberância dos pratos, ornados com flores e frutas exótica, que em tudo combinavam com o estilo mourisco da Ilha Fiscal. Segundo Suadau e Sandroni, foram cometidos alguns excessos nas bebidas. As notícias dizem que foram consumidas 12 mil garrafas de vinhos de diversas procedências, prevalecendo os do Porto e Algarve. Isso significa de duas a três garrafas para cada convidado, sem contar as 200 caixas de champanhe francesa.

Seis dias depois, ainda se recuperando da ressaca, a Corte percebeu que o imperador tinha sido deposto e era hora de saudar a República com outras festas. Aliás, alguns dos destaques do novo regime estavam presentes ao baile, como Rui Barbosa, Campos Sales e Benjamin Constant. O que talvez tenha motivado as novas autoridades a realizar outra festa em homenagem à tripulação do Almirante Cochrane, desta vez para saudar a República. (C.F.)

Madrugada de 10 de novembro: os convidados deixam a Ilha Fiscal,
terminado o último baile do Império