Anchieta na paz de Iperoig
Luiz Tenório de Brito
Foi tudo no Brasil nascente.
Catequista e cronista abalizado com a publicação no futuro de suas
preciosas cartas e informações, onde se retrata com fidelidade a fisionomia da terra e da gente que a habitava, dramaturgo,
poeta e musicista, consagrou-se ainda o Padre José de Anchieta o taumaturgo da América.
Mas é através das longas e
penosíssimas negociações que culminaram no famoso Tratado de Paz de Iperoig que esplendem as mais puras virtudes que exornam
esta singular figura de apóstolo das selvas.
***
Anchieta escreve seu poema nas
areias de Iperoig
Imagem: História do Brasil, ed. Folha de São Paulo, 1997,
S.Paulo/SP
(reprodução de Vida Ilustrada do Padre Anchieta, padre Frota Gentil, Rio
de Janeiro/RJ)
Tornando-se conhecido o roteiro que conduziu Pedro Álvares Cabral
ao descobrimento do Brasil, alvoroço incontrolável passou a contagiar outras nações. Todas queriam conhecer a nova terra.
A França terá sido das primeiras a trilhar o caminho indicado. E o
fez resolutamente, Primeiro, comerciando com o índio. Tentando após fixar-se definitivamente em algum lugar da imensa costa
brasileira. A mais séria dessas tentativas foi a que resultou na experiência da Baía da Guanabara.
Aí desembarcando, na segunda metade do século XVI, com poderosos
recursos em homens e material de guerra, alimentavam os franceses o objetivo claro de uma instalação definitiva.
A conjuntura desenhou-se grave. País pequeno, população escassa,
em pleno apogeu dos descobrimentos marítimos - era ainda mister que Portugal mantivesse intactas as conquistas já levadas a
efeito noutras partes do mundo.
Quanto ao Brasil, que desde os primeiros tempos se destinou à
formação de vasto império - necessário se fazia defendê-lo contra investidas assim perigosas.
A presença do francês calvinista na Guanabara ameaçava, sob
tríplice aspecto, a unidade brasileira: geográfica, lingüística e religiosa.
Como fator agravante da situação já de si delicada, conseguiu o
intruso as boas graças da grande nação tamoia que dominava todo o litoral de Bertioga até Cabo Frio. Tornaram-se amigos e
aliados na guerra.
Povo belicoso por excelência, eram dez mil arcos com que passou o
francês a contar sobre os próprios recursos, que já seriam suficientes para enfrentar o lusitano em qualquer emergência.
Nunca haviam sido razoáveis sequer as relações entre portugueses e
tamoios.
A aliança agora estabelecida trouxe ao índio maior estímulo nas
hostilidades contra o lusitano. Resultado imediato da circunstância foi a tentativa de destruição levada a efeito contra o
Colégio que, de São Vicente, passara para o planalto piratiningano, por ordem do Padre Manoel da Nóbrega, primeiro provincial
dos jesuítas no Brasil.
Realmente. Vindo da Bahia, em visita às instalações do Sul, feitas
pelo Padre Leonardo Nunes, não gostou o provincial da escolha de São Vicente para sede do Colégio.
E não gostou porque, na época, todo o litoral santista era
constantemente flagelado pelo pirata e pelo índio adverso. Ocorria ainda que a maioria eventual de alunos viria do Planalto, de
onde igualmente desceriam os gêneros alimentícios necessários à manutenção do Colégio. Questão portanto de segurança e economia.
Assim, depois de longa peregrinação pelo altiplano, desde a Borda
do Campo até Maniçoba - a provável Itu dos nossos dias -, afigurou-se-lhe e com razão evidente que o local indicado seria aquele
onde a 25 de janeiro de 1554 foi rezada a missa simbólica da fundação do Colégio e conseqüentemente a fundação de São Paulo de
Piratininga.
A vocação de homem de Estado, que nos grandes momentos aflorava em
Nóbrega, apontou-lhe a colina predestinada como o lugar certo. Dominando vastas planícies que se desdobravam em derredor,
dispunha o ponto escolhido de excepcionais condições geográficas que lhe facilitariam o desenvolvimento futuro. Centro
convergente de caminhos indígenas, vindos de diferentes zonas, foram eles aproveitados pelo bandeirante ousado que demandou o
mundo de aquém dos Andes, até então desconhecido.
Serviram ainda tais veredas de
roteiro à transposição de insondáveis obstáculos que as serranias, que circundam São Paulo, ofereceram à instalação das
paralelas de aço na sua missão de levar o progresso a imensas regiões do hinterland brasileiro.
***
Fracassara o ataque ao Colégio.
Após dias sucessivos de assédio e gritaria, retornaram os índios às suas bases.
Aos dias que vieram após a vitória, sucederam-se medidas de segurança
tomadas pelo provincial Padre Manoel da Nóbrega. Desses momentos de apreensões e angústias vem o anel de postos avançados que em
torno se formou, constante dos aldeamentos dirigidos pelos padres, de São Miguel, Itaquaquecetuba, Guarulhos, Emboaçava,
Carapicuíba, Itapecerica e Ibirapuera - Santo Amaro de hoje.
Eram esses pontos passagem forçada dos peabirus que, de diferentes
regiões, demandavam os rios piscosos de Piratininga.
O índio que, isolado ou em bando, tentasse a travessia, seria
visto e denunciada a sua presença ao Colégio. Não haveria mais surpresas.
A confiança voltou à população e o trabalho readquiriu o seu ritmo
normal.
Um homem, no entanto, continuava intranqüilo: o provincial dos
jesuítas.
Era o Padre Manoel da Nóbrega dotado de extraordinária visão
política.
As oportunas e sábias sugestões levadas ao Rei - através de suas
cartas famosas hoje conhecidas, o documentário da época que nos dá conta dos seus atos em prol da consolidação administrativa do
País que surgia do nada - testemunham e justificam o alto conceito em que ora é visto esse vulto notável do Brasil quinhentista.
Sabia ele e com fundadas razões que o índio insistiria no ataque.
Refeito do malogro sofrido, reaparelhado nos seus petrechos de guerra - ele voltaria, para a desforra. E o faria sucessivamente,
até que levasse o desânimo ao bloco civilizado.
Era da natureza do índio. Sobre isso não mantinha ilusões o Padre
Manoel da Nóbrega. Que fazer, no entanto? Noites intermináveis de ansiedade e insônia povoavam de trágicas visões a mente
febricitante do genial jesuíta, responsável, perante Deus e perante o Rei, pela sorte do magno empreendimento. De repente,
fantástica resolução faiscou-lhe o cérebro. Pensou sobre ela a noite inteira. Pesou-lhe os prós e os contras. Amadurecida a
idéia, aos primeiros clarões da madrugada, despertou o irmão José de Anchieta, seu secretário (Anchieta, a esse tempo, ainda não
era padre).
Aprovado pelo discípulo o plano do mestre, puseram-se os dois a
caminho de São Vicente. Ouviu-lhes José Adorno o projeto fabuloso e nele se integrou resolutamente. Era José Adorno genovês de
origem e com os irmãos armador em São Vicente.
Tem sido a história parcimoniosa em louvores à ação benemérita
desse extraordinário vulto do Brasil dos primeiros tempos, empenhando que esteve sempre na luta em prol da preservação da
unidade da pátria em formação.
Numa de suas frágeis embarcações, por ele próprio guiada, conduziu
José Adorno os dois padres a Iperoig. Nenhum cronista refere a existência a bordo de roupas e outros objetos.
Pequeno surrão, contendo modestos paramentos e símbolos
litúrgicos, constituiria talvez toda a bagagem da fantástica viagem dos dois estóicos padres.
Iam silenciosos, olhar fixo no vácuo, à procura do desconhecido
que os fascinava; corações esperançosos, pensamento no alto, esperando a graça de uma inspiração.
Nem bem se aperceberam, e chegavam ao destino. Mal pisaram a
areia, se viram cercados. Homens e mulheres, perplexos, examinavam aquelas estranhas figuras humanas que uma canoa deixara na
praia, navegando a seguir em busca do mar alto.
Acompanhados pela turba aos chefes tamoios, disseram, rezando, dos
intentos que os moveram vindo à presença deles. Reações diversas ocorreram então. Havia os que pretendiam logo imolá-los. Venceu
a opinião de outros desejosos de ouvi-los. Entre estes encontravam-se Pindobuçu e Cunhambebe, chefes que conseguiram acalmar os
amigos mais exaltados.
Vencidas estas primeiras e sérias dificuldades, iniciaram-se as
conversações. Diária e interminavelmente repetiam-se as mesmas coisas.
Queixavam-se os índios dos portugueses que os maltratavam.
Procuravam os padres refutar-lhes as acusações, aduzindo argumentos com os quais tentavam convencê-los de que deveriam cancelar
a aliança feita com os franceses, voltando à amizade com o lusitano. Este o tema constante.
Variantes ocorriam, levantadas pelos padres, consistentes em
debates sobre religião, mais sensível à mentalidade do índio, e assuntos de interesses da comunidade luso-brasileira.
Era o Padre Manoel da Nóbrega indiscutivelmente um gênio político,
porém gago: expressava-se mal. Ao passo que Anchieta, artista - músico e poeta -, fazia-se compreender com facilidade na língua
geral. Os índios gostavam de ouvi-lo. Assim, recebia Anchieta, de Nóbrega, os temas em discussão, transmitindo-os ao índio em
modulações poéticas e musicais. Daí o encanto com que era ouvido. Havia, ademais, afinidades que aproximavam o índio de
Anchieta.
É Gonçalves Dias quem o afirma. Quando o poeta maranhense resolveu
dar forma ao indianismo brasileiro que criou, escolheu a raça tupi como capaz de fornecer ao cenário que iria pintar os heróis
do drama imaginado. Para tanto, confrontou os elementos conhecidos. Das leituras a que se entregara com afinco e dos
conhecimentos pessoais que tinha sobre os diferentes tipos raciais do índio brasileiro: o do Norte, o do Sul, o do Centro. Não
havia que vacilar. O tupi era o indicado. Seduziu-lhe a nobreza do guerreiro nos prélios sangrentos a que se entregava.
Fascinaram-no os códigos de honra que orientavam o complexo do viver da grande nação tamoia, cujos filhos nasciam, cresciam e
morriam tendo a guerra como lema e meta a atingir.
Admirou-lhe igualmente Gonçalves Dias os dons artísticos, aduzindo
em arroubos românticos: "Entre os tupis era tudo música e poesia: as festas, o amor e a religião, a
linguagem e a vida, tudo era poesia" (Brasil-Oceânia, página 237).
E continua: "Eram prezados por bons
cantores e as mulheres mesmo sabiam improvisar e as águas da Carioca passavam por ter o condão de maviosidade ao canto dos
tamoios. Enquanto os tapuios arrancavam sons duros da garganta, semelhantes ao regougar dos guaribas, ásperos como o roçar dos
leques pelos troncos escabrosos da palmeira - os tupis bebiam na solidão do mar e à entrada das florestas os sons mais doces da
natureza. Na sua linguagem harmoniosa e quase toda labial, travada e intercalada de vogais, imitavam o ciciar da brisa a correr
sobre as ondas espelhadas do oceano a agitar levemente a igara, derivando à tona d'água e a enredar-se pelas folhas dos bosques
que aromatizavam o litoral. Valiam-se de comparações para exprimir o pensamento e dos gestos para os rematar. Falavam cantando
por que a poesia e a música andavam intimamente ligadas na sua linguagem onomatopaica: o cair da fruta, o estalar dos ramos, o
correr das fontes, o peneirar da chuva, eram sons imitados da natureza; e elevando-se das regiões mais altas - no trovão, no
raio, no relâmpago - ouviam a voz, viam o olhar, sentiam os efeitos da ira de Tupã; expressões felizes que admiramos, imitadas
do hebraico em um poeta alemão cantando a grandeza de Deus. Para os homens, escolhiam nomes que exprimiam a força, a robustez e
a coragem: era a anta, o tigre, o ipê, a palmeira, a flecha e o arco; para as mulheres, os objetos mais brandos, mais doces,
mais delicados - das aves, dos frutos e das flores, era o romper d'alva, o cipó flexível, a junca do brejo, e com o sentimento
do belo que não era muito esperar neles tomando o nome da flor do manacá; designavam com ela a mais bela moça da tribo".
Aí o complexo perfil da gente que Nóbrega e Anchieta enfrentaram
nas praias de Iperoig, traçado pela incontestável autoridade de Gonçalves Dias.
Homens destemerosos, altaneiros, indomáveis na guerra, mas
sensíveis ao trato ameno que lhes dispensaram os padres. E compreensivos também.
Tanto assim que, após longos meses de repetidas discussões,
concordaram com as razões defendidas pelos embaixadores da Paz. Romperiam a aliança com os franceses. Não seria prudente no
entanto que se retirassem, juntos, de uma só vez, os dois abnegados servidores da unidade do Brasil. Era do conhecimento deles a
freqüente presença em Iperoig de elementos fiéis aos franceses, vindos da Guanabara com o objetivo de influir nas decisões a
serem adotadas entre os chefes tamoios e os padres.
Mister se fazia prevenir.
Em conseqüência dessas reflexões de Nóbrega, mais uma providência
heróica se impunha. Nóbrega iria a São Vicente levar a boa nova. E até que as autoridades competentes resolvessem sobre
pormenores, Anchieta continuaria em Iperoig. penhor de segurança na manutenção de combinações verbais levadas a efeito com
homens de resoluções instáveis quanto os índios. A experiência adquirida em meses consecutivos de dolorosas alternativas e de
altos e baixos nas soluções dos temas ventilados, aconselhava prudência. E o Padre Manoel da Nóbrega era um homem previdente.
Se, até o momento da separação, a fantástica aventura desses dois
homens predestinados assumia proporções do inacreditável, havia ao menos, para amenizar-lhes as agruras do viver cotidiano, o
conforto da convivência amiga, a troca de pensamentos em torno do ideal que os unia, o precioso auxílio mútuo nas horas de
desalento, que incertezas eventuais inevitavelmente traziam.
Agora não. Anchieta passou apenas a contar com o embevecimento
espiritual que lhe despertava a natureza exuberante que o cercava, convidando-o, com maior intensidade, à meditação e ao
misticismo. No enleio em que todo se envolvia, não contava o missionário com o recrudescimento do pecado que desde o começo o
perseguia. Grupos de tentadoras cunhãs surgiam em cada lugar onde se achava. Defendendo-se, empregava ele todos os recursos ao
alcance da ocasião.
Eis que, em dado momento, a inspiração lhe veio, impetuosa e
ardente. E os versos magnificentes do Poema da Virgem brotaram-lhe do coração lacerado, cantantes e formosos. Escrevia-os na
areia movediça da praia e antes que o vento os apagasse gravava-os indelevelmente na memória! A posteridade recolheu esse
tesouro da graça divina, transformado em bênçãos sobre a nacionalidade que nascia. Milagre quase inconcebível que se operou em
virtude do esforço dessas duas almas gêmeas no ideal e no sacrifício. A história os consagrou unidos. Capistrano de Abreu
costumava dizer que "quanto mais estudava Anchieta mais admirava Nóbrega". E Antônio de Alcântara Machado, em seu livro
Anchieta na Capitania de São Vicente, escreveu: "Tentar isolar Anchieta de Nóbrega é diminuí-lo na perspectiva da história".
São ambos de estatura imensurável nos benefícios que prestaram ao Brasil.
Na arrancada final contra o intruso, contou Estácio de Sá com a
colaboração de São Paulo. Uma expedição de 300 homens, organizada em São Vicente e transportada nos barcos de José Adorno, foi
de efeito decisivo na expulsão do invasor da Baía da Guanabara. Guiavam-na os inseparáveis paladinos da boa causa: Padres Manoel
da Nóbrega e José de Anchieta. E nela integrados, filhos e netos de João Ramalho.
Era São Paulo que se iniciava no
seu destino histórico: servir o Brasil.
***
Traduzindo a Paz de Iperoig o
primeiro acordo diplomático concluído em terras da América, significa ainda o marco inicial da generosa política do Brasil:
resolver pendências externas através de tratados, na mesa das conferências. |