Imagem: reprodução parcial da página do site Dissonância
Um mundo very Nice
Por Ricardo Alexandre G.
Imagens: Reprodução
O ano tinha começado, vários meses de 2009 haviam ficado para trás... Muitas aranhas, corvos, caveiras, morcegos e tantos outros
ornamentos pouco usuais para um calendário compunham os ambientes dos personagens de "O Mundo Ilustrado de Nice", ou em versão francesa, "Le Monde Illustré de Nice". Ao lado do computador, entre atividades de trabalho e diversão, eram
percebidos quase mês a mês, só que a relativa indiferença deu lugar à atenção plena: claro, quem são os pequenos mórbidos do mundo de uma tal Nice?
Sem oncinhas pintadas, zebrinhas listradas e coelhinhos peludos, mas com A Menina dos Olhos Grudados, As Irmãs Xifópagas, O Menino Retalhado e algumas outras criações saíram do anonimato, prevaleceram sobre perguntas como,
digamos, "23 de maio cairá em que dia?", ou "o feriadão (no Brasil são vários!) vai ser no segundo final de semana de abril?". Mais que isso, por causa dos ilustres desconhecidos, as indagações foram transformadas em "qual foi o mês daquele
garoto com a carinha cheia de ferimentos e um touro em segundo plano?", ou "aquela garotinha ruiva, com sangue a escorrer num canto da boca, está em agosto?".
Antes de terminar o primeiro semestre, o calendário foi folheado até o final e lá estavam as coordenadas para Nice Lopes, a dona do traço e criadora desta moçada diferente. O sítio, na verdade um blog (link ao final desta página), serve de
portfolio virtual para Lopes apresentar a sua face "illustrator". Antes de conhecer outros prováveis habitantes do seu mundo, no logotipo mais surpresa, uma garota tatuada, olhos verdes, até aí tudo normal, mas com a boca sangrando. E uma
bela folha de antúrio - redundância - lacrimejando sangue... Glóbulos vermelhos do lado de cá do monitor também!
Depois da turminha docemente macabra, nos primeiros e-mails trocados a história que temos em comum sobre o antúrio - nossas mães o cultivaram. Por que a planta estava em destaque? Segundo a autora, estas aráceas fizeram parte da sua
infância, porém, não sobreviveram ao falecimento da sua genitora, nada mais que quem as cultivava. Pronto, depois desta poética, tudo despertou curiosidade sobre os companheiros de Silvânia, A Menina Vampiro. Onde Nice busca estas
inspirações? Quais os outros trabalhos feitos por ela?
O jeito foi continuarmos a conversa, e não demorou para surgir a ideia de compormos algo que chegasse a novas pessoas. Neste papo, cada indagação feita e resposta devolvida expandiu tanto que livro surgiu como recomendação - eu não sabia do Tim
Burton escritor -, histórias de infância no interior do Brasil foram rememoradas, os trabalhos "comerciais" da desenhista entraram na prosa...
Através destes últimos, tornou-se possível saber que os traços de Ms. Lopes são tão bons que também não deformam, não têm cheiro e não soltam
as tiras! Em relação ao motivo que deu asas aos contatos, qual não fora a surpresa quando soube que as mesmas mãos escreveram contos para os habitantes do calendário? Na discrição que as inspira, eles estão num só link em .pdf, disperso
entre os zilhões publicados no ciberespaço, uma arca encontrável com boa vontade e o mapa do tesouro na ponta do mouse.
Aprendi a lição, que nem me era estranha, mas mesmo vacinado, o cotidiano às vezes nos embarca num túnel de vácuo que os 85% artísticos e autorais perdem a atenção para uma faixa de 10% da página que contém a inexorável - e por vezes pouco
ilustrada - soma dos dias.
Nice, cabe mais um personagem neste mundo aí?
Imagem: reprodução, no site Dissonância
O Dissonância falou com a Nice Lopes sobre o acervo que dá vida ao calendário de 2009, inicialmente. Repito, inicialmente, pois a conversa foi para lados envolventes no que se espera de um autor. No caso, uma autora...
Ao final, tanto o blog/portflolio quanto um especialíssimo e exclusivo material - os desenhos e os contos que compõem "O Mundo Ilustrado de Nice" - conduzirão o leitor a "materializar virtualmente" todas as anotações desta edição da
Casamata!
. . .
Imagem: reprodução, no site Dissonância
Dissonância - Conforme é possível ler no blog, em "O Mundo Ilustrado de Nice/Le Monde Illustré de Nice", você combinou um livro
do Tim Burton com as suas vivências e definiu este trabalho, sobre o qual até comentou "bem-vindo ao meu novo-velho mundo!". Por que foi preciso expandir os seus desenhos para este lado, digamos, mais intimista e ao mesmo tempo fantástico?
Nice Lopes - Na verdade, não sei se a palavra "combinar" seria o termo adequado. Acho que "inspirar" seria a palavra ideal, afinal,
foi uma das obras literárias de Tim Burton que serviu de estímulo para eu construir minhas próprias histórias ilustradas.
Edgar Allan Poe e o próprio Burton sempre foram influências marcantes em minha vida. Lembro-me que, aos 10 anos, tive a oportunidade de ler a biografia de Edgar Allan Poe, por culpa do meu pai, que havia recém-adquirido uma dessas enciclopédias
vendidas de porta em porta. Ao ler a história de vida de Poe, deparei-me com um homem melancólico, especial e incompreendido, como eu, naquela tenra idade, e me senti profundamente tocada. Mas, como dizer à minha mãe que havia me encantado por
um escritor alcoólatra, autor de contos de terror? Acredito que Poe tenha sido meu primeiro amor platônico (risos).
Mas, somente na adolescência, talvez por uma ironia do destino, eu tenha reencontrado esse meu "amor" de infância. Uma dedicada professora de inglês, na tentativa de enriquecer suas aulas, trazia um minigravador e algumas fitas cassetes para
nos brindar com contos de Poe, narrados por Vincent Price e majestosamente encenados como novelas de rádio. "The Black Cat", "The Cask of Amontillado", "The Mask of the Red Death", soava como música aos meus ouvidos. E foi, também, nesta época,
que conheci "Edward - Mãos de Tesoura", meu primeiro contato com a obra de Tim Burton. O filme fala sobre aceitação do outro e respeito. E o que nós, pobres mortais procuramos, além de sermos aceitos, não é?
Então, tudo isto sempre esteve aqui dentro de mim, meio que escondido, com vergonha de se mostrar, com receio de "chocar" as pessoas. Eu guardava tudo, todas as influências, o lado melancólico, o lirismo, a fantasia, acredito que ocultava até
de mim mesma. O termo "bem-vindo ao meu novo-velho mundo" é a tradução desta tentativa equivocada de esconder quem realmente eu sou. "Novo" para quem ainda não conhecia este meu dark side, e "velho" porque ele sempre esteve aqui.
"O Triste Fim do Pequeno Menino Ostra e Outras Histórias" ou "The Melancholy Death of Oyster Boy & Other Stories" (a versão em inglês é muito mais interessante, talvez por conta das "perdas" quando se faz a tradução para o português), foi o
livro de Tim Burton que me serviu de inspiração. O livro é formado de pequenas histórias em verso de personagens surreais, melancólicos e que mais uma vez buscam aceitação acima de tudo. Como diria Philipe Barcinski, no prefácio do livro:
"(...) Como seus personagens, este livro parece deslocado. Não se enquadra em nenhum nicho. É triste, mas engraçado. É infantil, mas adulto."
O meu "Le Monde Illustré de Nice" é uma visita à minha própria infância. É quase uma catarse. Burton foi responsável por isso e ele nem sabe (risos). Talvez todos os personagens que criei são meus alteregos, e as historietas, se não aconteceram
exatamente da forma como narrei (até para conter um lado ficcional), trazem, de algum modo, um tanto da "autora", como a rinite sempre presente, a fixação (quando criança) por insetos, os olhos grudados por causa da miopia, a perda da mãe, a
união de irmãs, enfim... de certo modo, quase tudo está ali. Pode parecer clichê e talvez o seja, mas precisei tomar este caminho para me encontrar, para reencontrar aquela menina tão inquieta e cheia de dúvidas, que muitas vezes, foi
sufocada... quem sabe "ela" poderia me ajudar... Por muitos anos vivi coisas que não queria, nem sabia ao certo quem era eu, talvez eu ainda não saiba direito, mas estou somente no início da procura. Eu acredito que revisitar a infância seja o
melhor caminho para se descobrir.
Dissonância - Então, de tudo o que você falou, o resultado são 7 personagens. Como foi tirá-los desta vivência e ofertá-los à
dose necessária de ficção? Existem outros, que ficaram engavetados? Dará continuidade neste tipo de criação, e quem sabe, sair do monitor para versões impressas em livros, como o do Burton?
Nice Lopes - Foi uma experiência muito enriquecedora. Como já disse, esses personagens já faziam parte da minha vida, o que fiz foi
dar a eles um ar estranho e esquisito, que me agradasse e me comovesse. Acho que consegui (risos). "O menino retalhado", por exemplo, surgiu depois que eu li uma matéria, em uma revista, sobre pessoas que não sentiam dor. Fiquei impressionada e
atordoada ao mesmo tempo e resolvi "dar vida" a essa inquietude. Acabo me inspirando em coisas simples, fatos cotidianos, o que procuro é colocar uma lente de aumento e procurar as minúcias e os pequenos detalhes envolvidos. Como diria Machado
de Assis: "Eu gosto de catar o mínimo e o escondido. Onde ninguém mete o nariz, aí entra o meu, com a curiosidade estreita e aguda que descobre o encoberto. (...) Cousas que entram pelos olhos, eu apertei os meus para ver cousas miúdas, cousas
que escapam ao maior número, cousas de míopes. A vantagem dos míopes é enxergar onde as grandes vistas não pegam".
Tenho sim outros personagens engavetados, loucos para ganhar o mundo (risos)... e quem sabe uma versão impressa! Não que eu tenha pretensões literárias, longe disso, até porque não sou escritora, mas seria muito divertido!
Dissonância - Depois de dar vazão por esta via autônoma e lírica, como fica, para a autora e para o público - leitores
"convencionais" e marcas -, a mescla de conteúdo assim com o, digamos, comercial?
Nice Lopes - Todos nós temos um trabalho, digamos "comercial", no qual exercemos a função de "operários", executando e tornando
real o sonho de alguém. Quer queiramos ou não, de uma forma ou de outra, temos sempre que agradar a alguém, seja o patrão, o namorado, a família, o cliente. Mas é preciso dar vazão aos nossos sonhos, àquilo que nos mantém vivos, ao que se passa
em nossos corações, sem compromisso de agradar ou não, a não ser nós mesmos. E, se de repente, esse trabalho contagiar outras pessoas, tanto melhor, significa que não estamos sós (risos)... Foi assim com a grife "Bicho Comeu" de Solange
Meneghel. Ela entrou em contato comigo fascinada pelo trabalho que viu no meu "mundo ilustrado". Adoro quando atendo a um cliente e descubro que consegui tornar real o que se passava na cabeça dele. É desafiador e muito gratificante! Assim como
é gratificante, também, ver meu trabalho "impresso" em suportes diferentes, como jóias, camisetas, revistas, sandálias e até tatuado pra sempre no corpo de alguém.
Me formei em Publicidade e Propaganda e ainda atuo na área. Mas sempre gostei de desenhar. Comecei na área de Moda, desenvolvendo estampas para algumas marcas como "Banca de Camisetas" (SP), "Q-Vizu" (RJ), "AllTracks" (SP), "Sims" (SP), "Hully
Gully" (SP), "1º Item" (SP), "5ª Geração" (SP), "Curta Metragem" (MG). Ministrei aulas de Desenho de Moda no Computador, no Senac São Paulo. Mas, bacana mesmo, foi conseguir diversificar meu trabalho e atender a uma variedade de clientes e de
marcas, como: "Ciclo das Vinhas" (Escola de Vinhos), da somélier Alexandra Corvo; Gustavo Mar (chef de cozinha); blog "Seja BemVinho", da jornalista de gastronomia Cristiana Couto; Melissa Thomé (produtora de moda e objetos); blog
"Sopa de Letrinhas", da jornalista de gastronomia Roberta Malta; site "It Girls", da jornalista de moda Alessandra Garattoni; site "Dona Fita", de Patrícia Süssekind; grife de roupas infanto-juvenis "Bicho Comeu", de Solange Meneghel;
Editora Livre; Havaianas (trabalho em conjunto com o estúdio Design Visions).
Meu trabalho autônomo e lírico, como você mesmo disse, ou o meu "lado B", estará sempre presente, porque não sou apenas uma, sou várias.
Dissonância - Os calendários anuais servem como os maiores condutores deste lado b? E por falar em emissão, você comentou sobre
algumas aproximações que surgiram pelo blog... No que as mídias virtuais são realmente interessantes e facilitam trabalhos como o seu?
Nice Lopes - Acredito que sim! Desde criança sempre fui fascinada por calendários. O fato de possuir um instrumento capaz de medir
o tempo me deixava eufórica. Quando ganhei meu primeiro relógio, então... Aí sim, podia fragmentar o dia em horas, as horas em minutos, os minutos em segundos. Uma especialização e tanto para os meus poucos nove anos de idade.
Mas era no interior das Minas Gerais, quando íamos, eu e minha família, de férias, que me deliciava com a contagem do tempo. Lá, sem energia elétrica, o tempo podia ser medido pelo raiar do sol e pela aparição da lua que iluminava meu avô e
suas sábias explicações. Meu avô, homem do campo, muito modesto em suas posses, mas rico em conhecimento, utilizava o calendário lunar em suas incursões pelo mundo dos legumes e das hortaliças. Preparava o solo, escolhia as sementes, plantava
conforme a lua e suas facetas. Eu ficava encantada com tanta precisão poética. Acredito que comecei a fazer os calendários como uma forma de homenagear o Seu Aleixo (meu avô)!
Os calendários surgiram em 2007, quando decidi buscar novos clientes e mostrar meu trabalho de forma tangível. Os dois primeiros calendários registraram meus trabalhos voltados quase que exclusivamente para a área de Moda. Para o calendário de
2009, decidi fazer algo mais autoral, brincar com o lado lúdico das minhas ilustrações e colocar à mostra os personagens que faziam parte da minha vida. A inspiração para essa história você já conhece. A história do calendário de 2010 foi um
resgate das antigas histórias infantis que nos embalavam em nossa fase mais feliz. Teve até promoção com a participação e sugestão dos internautas, fato que, particularmente, me deixou muito feliz, porque adoro o contato com o "público" que
aprecia o meu trabalho.
O projeto dos calendários tem tudo para continuar, e quem sabe, acompanhado de novas propostas e suportes.
A maioria dos meus contatos surgiu pela internet, através do blog. A internet tem me ajudado bastante na exposição do meu trabalho. Foi por intermédio "dela" que me "candidatei" a participar do livro "Illustration Now 2", da editora
Taschen. Entre muitos ilustradores de diversos países, fui uma das escolhidas pelo editor Julius Wiedemann, para fazer parte da edição 2 da "Bíblia dos Ilustradores". Nesse processo, até as redes sociais como o Twitter podem ajudar muito.
Dissonância - E para concluir...
Nice Lopes - Obrigada, Ricardo! Pela oportunidade de falar um pouco mais sobre o "meu mundo ilustrado" (risos)... Através das
respostas às suas perguntas, pude conhecer um pouco mais de mim!
Imagem: reprodução, no site Dissonância |