Foto: Leandro Amaral, publicada com a matéria
Roqueiro em pele de sambista
Entrevista a J. R. Fidalgo
Mais ou menos dois meses antes do carnaval, ele "escondia" de si mesmo os discos de rock, blues, jazz e soul, que ouvia todos os dias, e mergulhava de cabeça nos sambas-enredo das escolas.
"Aprendi que era preciso entrar no espírito da coisa, encarnar o personagem, caso contrário não dava certo", explica José Lobão Neto, ou apenas Lobão, vocalista do Blow Up, sobre a época
em que montava uma banda de 40 instrumentistas e oito passistas para animar os bailes dos clubes santistas.
Hoje os tempos são outros. O carnaval de salão, uma das opções de trabalho importantes para os músicos da região, foi desaparecendo, acompanhando a decadência dos próprios clubes. Alguns
sinais de recuperação, no entanto, vêm sendo detectados, como, por exemplo, a programação das tendas armadas nas praias e a revitalização do Centro Histórico. "Ainda não é o ideal, mas já é um começo", diz Lobão, que conta um pouco aqui da
sua longa carreira no cenário musical de Santos e da região.
De repente, você, além de vocalista do Blow Up, começou também a ser identificado como líder de bandas de carnaval. Como aconteceu isso?
Olha, na verdade, desde 1973 eu já participava de bandas de carnaval, que tocavam em diversos clubes, mas apenas como crooner. Agora, a primeira banda que eu mesmo montei foi a Lobão e Banda
Exaltação, com a qual fizemos vários carnavais na A. A. dos Portuários, até 1998. Era uma experiência totalmente nova para mim, porque, como músicos de banda de baile, éramos escravos da parada de sucessos, éramos
obrigados a tocar o que estava no topo da mídia. Com o carnaval era diferente, a gente tinha mais liberdade. No começo, a gente tocava os sambas-enredo das escolas e as novas marchinhas que todo o ano eram lançadas. Depois, ninguém mais lançou
marchinha. Acho que o Chacrinha e o Sílvio Santos (N.E.: apresentadores de programas de televisão. O primeiro deles, Abelardo Barbosa, já falecido) foram os últimos. Então a gente pegava músicas comuns, da Rita Lee e de outros artistas populares, mudava a batida e tocava nos bailes, era o maior sucesso. Outra coisa é que o músico ganhava durante o carnaval o suficiente para
dar uma equilibrada no orçamento por um período considerável.
E como foi essa transformação do roqueiro juramentado no carnavalesco?
Eu mesmo me surpreendi. No início, eu fazia a coisa meio maquinalmente, meio distante, fria. Depois comecei a perceber que tinha de me envolver mesmo. Passei a freqüentar o mundo do samba, os
barracões das escolas. Descobri que carnaval não era só zorra, zoação, era preciso sentir mesmo o couro do surdo batendo, e assim era possível interpretar um samba de verdade.
E o Blow Up nessa história toda?
Bom, nós resolvemos encerrar o Blow Up em 1988, já que não estava dando mais para arcar com as despesas de manutenção da estrutura da banda. Em 91, porém, decidimos reativar o grupo, mas a partir de
um novo direcionamento. Concluímos que devíamos concentrar nossas energias fazendo o que sempre fizemos de melhor, ou seja, tocar MPI (música popular inglesa) e MPA (música popular americana). Veja bem, não tenho nada contra a música popular
brasileira, tanto que mantenho um grupo paralelo, que às vezes é um trio, às vezes um quinteto - depende do número de integrantes na época - e que toca todos os tipos de música e de ritmos. Geralmente, me apresento com esse grupo em convenções e
casamentos. Mas, com o Blow Up, procuramos nos especializar, e tem dado certo.
E como é o público que hoje comparece às apresentações do Blow Up?
Eu costumo dizer que o Blow Up não tem público, tem família. Tem gente de 60, 50, 40 anos e também de 25, 20, 18, muitos desses, jovens filhos das pessoas que nos acompanharam desde o início. Isso é
maravilhoso, até porque acho que estamos fazendo um trabalho de certa forma didático, isto é, tocamos a raiz das coisas, Beatles, Stones, Led Zeppelin, Black Sabath, James Brown, Elvis. Quando a molecada ouve o Nirvana, por exemplo, aquilo lá
surgiu de uma outra coisa antes, e nós tocamos essa coisa, na raiz. E a molecada vai descobrindo, como nós também descobrimos que os Beatles, os Stones, tocavam coisas que tinham surgido antes deles, com os velhos bluesmen, Muddy Waters,
Robert Johnson, Chuck Berry... O retorno tem sido compensador!
Como você avalia o momento atual da Baixada Santista em relação ao mercado de trabalho dos músicos? Houve demanda por música ao vivo em bares, casas noturnas e, durante a temporada, nas tendas
das praias, ou isso não é suficiente para absorver o grande número de músicos e grupos?
Acho que as tendas, a revitalização do Centro Histórico, com a abertura de várias casas noturnas, em especial na Rua XV, tudo isso ajuda. Ainda não é o ideal, mas já é um começo, principalmente para
divulgar os artistas mais novos. Na verdade, estamos enfrentando aqui uma tendência que atingiu praticamente todas as estâncias balneárias, com o final dos clubes sociais, que eram o grande mercado para as bandas.
O que poderia ser feito para melhorar essa situação?
Acho que precisava uma maior união entre os músicos, porque parece que alguns ficam torcendo para o outro não dar certo, e essa atitude acaba sendo negativa para todo mundo. Ao mesmo tempo, acredito
que falta uma maior divulgação da mídia local para os artistas daqui. Não se trata de querer competir com nomes de destaque nacional, mas sim de se valorizar mais o pessoal daqui. Temos uma tradição musical muito rica. Veja, por exemplo, que quase
ninguém fala do verdadeiro celeiro de grandes músicas que era a chamada Boca do Lixo. Eu, inclusive, comecei a minha carreira lá Como era menor, meu pai teve de me dar uma autorização que eu vivia tendo que mostrar para o Juizado. Ali era um local
onde circulava muita informação musical de todos os lugares do mundo, por causa do pessoal que chegava nos navios. Era comum também gente da classe alta de São Paulo ir até a Boca para ouvir os músicos e grupos que tocavam nas casas de lá. Então,
se você não fala nessas coisas, elas se perdem para as novas gerações. Entendo que esse resgate da cena musical do passado, não só da Boca, mas da cidade como um todo, precisa ser feito, porque é importante para abrir novos caminhos no presente. |