Clique aqui para voltar à página inicialhttp://www.novomilenio.inf.br/cultura/cult063r.htm
Última modificação em (mês/dia/ano/horário): 03/30/20 08:36:25
Clique na imagem para voltar à página principal
CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - A.Schmidt
Uma resenha de Mocidade, em 1921

Leva para a página anterior

A revista paulistana A Garoa publicou este artigo assinado por Jackson de Figueiredo na seção Bibliographia, incluída nas páginas 28 e 29 de sua sexta edição, em dezembro de 1921 (disponível no Arquivo Público do Estado de São Paulo - acesso em 29/3/2020 - ortografia atualizada nesta transcrição):

Página 28 de A Garoa, de dezembro de 1921

Imagem: reprodução/Arquivo Público do Estado de São Paulo

Bibliografia

Jackson de Figueiredo

Este, sim, é verdadeiramente Poeta, um dos mais deliciosos que o Brasil tem tido, em todos os tempos, certamente o mais original dos nossos "novos". Realiza um milagre. Sendo também um poeda de pura sensibilidade e imaginação, pertencera, a nosso modo de ver, a uma espécie inferior, não fosse esse milagre, que só uma alma essencialmente poética é capaz de realizar.

Isto quer dizer que a absoluta sinceridade das suas desatinadas, inquietas atitudes, lhe dá, por fim, à sua poesia, um profundo sabor de verdade, o arrojo de um verdadeiro lirismo, que é sempre, traga as vestes que trouxer, onde houver movimento nascido mesmo do coração, expressão viva de uma alma.

E a prova de que se trata de um lídimo poeta está em que, atendendo-se bem nas páginas de Mocidade, não custará descobrir que, sob a fisionomia que têm todas elas de indisciplinadas, boêmias, revoltadas mesmo, está a disciplina de uma arte, nesse grau de perfeição que esconde os ferros, as correntes a que se sujeitou o próprio poeta para ser um verdadeiro artista.

Sim, como diz Maurras, "um poema não é liberdade, é servidão; sua beleza se avalia, precisamente, pela relação das suas energias naturais com a regra superior que as orienta". É o mesmo Maurras quem diz, dando mais força à sua afirmação anterior: "A reflexão, a regra, o cálculo vivem na natureza uma vida tão necessária como o prazer e o amor".

Affonso Schmidt tem, na sua própria natureza, não sei se conscientemente, o selo da regra divina, e por mais que aparentemente extravague, realiza sempre a harmonia, mantém sempre ordem e claridade quando nos pinta o tumulto das suas paixões, dos seus delírios ou os obscuros horizontes por onde vagam as suas cismas.

Se à poesia de puro sentimento ousasse impor um pensamento qualquer, que logicamente se desenvolvesse, e assim, de olhos fitos na Beleza, nela própria namorasse a Eterna Verdade - poderia vir a ser, como o poeta-santo da Noite Obscura, (N.E.: referência ao padre carmelita e poeta místico espanhol São João da Cruz ou San Juan de la Cruz - nascido em 1540 ou 1542 e falecido em 1591, declarado santo em 1726 e considerado o padroeiro dos místicos e poetas. O citado poema não teve nome, sendo seu título mais conhecido - La noche oscura (del alma) - tirado da interpretação do primeiro verso), a um tempo verdadeiro na dor confessada e verdadeiro no otimismo em face da vida.

Uma das forças com que joga Affonso Schmidt, para nos dar essa tão viva pintura das suas paisagens interiores, é justamente compreender que elas são como reflexos das paisagens reais - que estas últimas existem também, o que quase sempre esquecem os poetas em que, como nele, predominam a sensibilidade e a imaginação. Ora, ele pinta-nos as suas paisagens interiores com todas as cores, todas as coisas, as mais chãs, as mais humildes, ridículas, frívolas, quase sem significação, que surpreende nas do mundo real, exterior, em que vive.

Mas à sombra de sua alma todos os seus fieis desenhos, todas essas cores buscadas além, todas essas coisas vulgares, naturalmente se transformam, tomam naturalmente uma feição espiritual, a sua própria, de triste, de melancólico, de inquieto, que é como homem, assim como sofrem os retoques, a ordenação, a hierarquização que, ao mundo, todo legítimo artista imprime, sem nada deformar.

Dou aqui dois exemplos da sua poesia:

Ao balanço da rede

A rede vai, a rede vem... Ao fundo

Pernas em cruz e pensamento ao léu,

O caboclo se afasta deste mundo,

Na escada de Jacó que ascende ao céu.

A rede vai, a rede vem... E chora,

E canta... Cada gancho tem um ai...

Pedro diz: "De hora em hora Deus melhora".

Quietude. A rede vem, a rede vai...

Sobre o peito, a viola que ponteia;

Atrás da orelha a ponta do cigarro.

Ora, para embalar-se, ele se arqueia,

Ora, estatela como um deus de barro

E a rede vai e a rede vem... Quem dera

Que lhe fosse dizer alguma fada:

"Veio morar no sítio a Primavera;

Há de chover farinha peneirada!"

Pensando nisto, os olhos distraídos

Lança em redor, perscruta toda a casa;

Andam, no teto, uns pombos aos gemidos.

Morre na cinza a derradeira brasa.

E a rede vem e a rede vai. No canto

Não vê a fada e seu condão; porém,

"Elas são assim mesmo, tardam tanto!"

Concorda. E a rede vai e a rede vem...

E agora:

E a vida passa

No círculo de luz que o lampião descreve

Sobre a toalha de um candor de neve

Da nossa msa de jantar,

Fazíamos serão com rara compostura,

Porque da alcova a larga porta escura

Nos dava muito que pensar...

O bordado, a lição, as histórias e o gato,

Que fingia dormir muito pacato

Na tepidez do canapé...

A gente ali ficava, insone, até que vinha,

Cheiroso e fumegante, da cozinha,

O grande bule de café.

Ouvindo o tilintar da louça sobre a mesa,

O bichano fazia uma surpresa,

Saltando logo para o chão.

Que Deus nunca nos falte nesta vida

Com a fartura bem pouco merecida

Que ao gato dávamos de pão!

O tempo deslizou de um modo tão suave

Que neste Natal veio encontrar-me grave,

A recordar coisas d'além.

Olho a porta da alcova e tremo. Fantasias...

As cadeiras alinham-se vazias...

E no áureo círculo, ninguém.

O círculo de luz que o lampião descreve

Sobre a velha toalha cor de neve

Da nossa mesa de jantar,

Já nem parece mais o que se abriu conosco!

Ou este vidro está ficando fosco,

Ou tenho lágrimas no olhar...

Aí estão dois aspectos, bastante diversos entre si, da poesia da Mocidade. Entretanto, a unidade desta poesia ressalta logo aos olhos de quem busca ver, não a forma exterior, mas o espírito de singularidade que as anima. E neles são a harmonia entre uma observação vivaz, entre o amor da realidade externa e uma sensibilidade finíssima, rara, mais espírito que propriamente sensibilidade.

O poeta há de perdoar ao crente que escreve estas linhas, lastime que uma alma como a sua, tão altamente simpática, sempre de uma tão casta atitude em face da vida, por mais que se deixe levar por impulsos da imaginação - como se a seriedade lhe fosse essencial - o poeta há de perdoar lastime que uma alma como a sua não tenha, até hoje, aprofundado esse rico filão da poesia religiosa, não se tenha aproximado da Cruz redentora, que à própria poesia empresta a poesia sobrenatural, toda a que emana da certeza de uma finalidade divina a todo sofrimento bem sofrido.

O poeta que escreveu Senhora D. Sancha, As Pálidas, O Herói, mesmo aquela página a Gorki das Sombras, é bem capaz de se fazer o poeta do perdão e da humildade cristã, o pintor da desgraça e da pobreza, que rolam pelas nossas ruas, mas que, no coração do verdadeiro crente, sempre terão sombra a que se agasalhe e de onde possam ouvir os cantos da esperança.

Página 29 de A Garoa, de dezembro de 1921

Imagem: reprodução/Arquivo Público do Estado de São Paulo

Capa da edição 6/Ano 1 de A Garoa, de dezembro de 1921

Imagem: reprodução/Arquivo Público do Estado de São Paulo

Leva para a página seguinte da série