A matéria, no jornal A Tribuna de 22/7/1917
Imagem: reprodução
No carrossel
I
Na praça principal do nosso bairro existe
Um velho para-sol com pinturas vivazes,
Que gira sem parar, esmoendo uma ária triste
De encrespados bemóis e de fugas andazes.
É num terreno vago. O mastaréu em riste,
As flâmulas de cor, os berrantes cartazes
E o porteiro jovial que se apura no chiste,
Atraem a petizada, as moças e os rapazes.
Uma noite eu transpus o seu portão, solene
(Levava na algibeira um livro de Verlaine,
Na boca sem sorriso, um velho rítus mau),
E quedei a fitar essa ditosa gente
Que girava, girava, ininterruptamente,
Em gôndolas, dragões e cavalos de pau!
II
Borboletas de luz, terrivelmente brancas,
Estrebuchavam numa agonia perene,
Envenenando a flor das gargalhadas francas
Com a podre exalação do gás acetileno (N. E.: avcetylene, na grafia antiga).
Eis que apita o motor e as engrenagens mancas
Vão se desemperrando; o realejo, solene,
Ataca o "Trovador"; nota-se um quebrar de ancas
E tudo entra a girar, desengonçado, infrene...
- Bendita a multidão que dança e rodopia! -
Gosto dessa expansão, eu, que sou concentrado,
Que já nem sei sorrir como dantes sorria!
E para meu consolo o teto de encerado
Tinha bastos rasgões por entre os quais se via
Um retalho do céu amplamente estrelado!
III
Na dúbia confusão policroma daquela
Contradança brutal que meus olhos obumbra,
O quadro se dilui nos tons de uma aquarela
E cada luz veloz é um traço na penumbra.
Este vulto que passa, alívolo, ressumbra
Soberano esplendor; sua cabeça à vela,
De guedelhas ao léu, tem luz própria, deslumbra...
É um cavaleiro audaz retesado na sela!
Este garoto vil, esganifrado, insulso,
Que as duas rédeas puxa a rebentar o pulso
E que, de olhar em fogo, inimigos destrói,
Leva sob a camisa um coração guerreiro...
O cavalo é de pau, mas o seu cavaleiro
Ninguém pode negar: neste momento é herói!
IV
Ridículo? Talvez. Comovedor? Decerto...
Dom Quixote brandindo a exagerada lança
Tanto opõe ao moinho o peito descoberto
Como para o dragão, cavalheiroso, avança!
Quanto julgaste outrora a vida um céu aberto,
Alguém se riu de ti, porventura? Criança!
Que culpa tem a flor se nasceu no deserto?
Que culpa tem a mão se os astros não alcança?
Ah! Como eu compreendo o impávido garoto!
Ele me faz lembrar, com seu casaco roto,
Com toda a convicção do seu sorriso mau,
Um homem que tem sido (e nisto não me iludo),
Na conquista do amor, das glórias e de tudo,
Um herói de verdade em cavalo de pau!
Affonso Schmidt