Affonso Schmidt é o poeta dos humildes e dos sofredores
"Ninguém revela com palavras mais empolgantes as grandes dores da
humanidade", diz Orestes Giordano
Ontem à noite, Orestes Giordano, no "Circolo Unione Calabresa", tratou de Affonso Schmidt, nosso brilhante colega do Estado de S. Paulo. Eis um resumo dessa conferência, que foi muito aplaudida:
"O ideal de um artista exige que seja tudo o que pode ser e nada além do que deve ser. O artista não conduz sua arte e seu trabalho. Não se desdobra entre o seu amor e um amor estranho. Ignora o que procuram, o que gostam os outros homens. Despreza
tudo o que costuma estimular as paixões, exceto - fica bem entendido - o ideal seu próprio: quer dizer, realizar-se inteiramente. Mas, nisto, não se afasta da realidade. Uma característica - polo contrário - de um artista 'moderno' é ele ser, como
diria Eugene Carriére, 'um visionário da realidade'. Affonso Schmidt é um destes artistas. Seu gênio consiste numa imaginação que permite à inteligência penetrar a realidade e representá-la não somente nos aspectos exteriores. Toda a sua obra,
prosa ou poesia, de O Dragão e As Virgens, e de Negros a Janelas Verdes, Mocidade, Garoa, atesta essa peculiaridade do seu espírito.
"Recentemente, numa entrevista publicada pela conceituada revista Vanitas, revela a sua sagaz penetração de
observador das manifestações da vida moderna, quer sob o ponto de vista social, quer sob o estético. Tão lírico que seja, o poeta desce das regiões etéreas, participa da vida coletiva, contempla o espetáculo da vida. Sua Musa não roça somente os
viventes, une-se a eles numa comunhão profunda. Como Witmann, Affonso Schmidt pode dizer da sua obra: 'Esta não é um livro; é um homem'.
Se observarmos a poesia contemporânea, percebemos que ela chegou a um estado misto, de uma natureza complexa: o gênio plástico, o senso filosófico, o entusiasmo lírico, o espírito humorístico se juntam com variedade infinita. A poesia moderna
contém, no mesmo tempo, a pintura, a música, a estatuária, a filosofia, o espírito analítico; ela se apresenta com sutilidade que deve a diversas artes. Mas, em geral, predomina o fim de encantar o espírito humano ou com o prestígio rítmico ou
apresentando cenas de felicidade que contrastam com a horrível de resignação e de luta em que vivemos. Fica entendido que não falo dos poucos poetas nos quais a nota dolorosa prevalece, subjetiva ou menos. Acontece um fenômeno que repete o que foi
salientado, na arte, antes do romantismo. Também naquele tempo poesia e música cantavam as horas luminosas da vida. Depois Beethoven pelo primeiro sentiu a melancolia e o desespero incurável amontoado no céu interior do homem. No romance exprimiu-o
Maturin, Byron na poesia, com outros até nós que acabaram para perceber somente a parte infernal do espírito humano.
Com a renascença do classicismo, eis novamente um lirismo todo de jocundidade, de festa, de inocência ou de luxúria dionisíaca, até que os acontecimentos históricos e sociais, as teorias democráticas, influindo sobre a arte, não ofereceram à
poesia, aos românticos, outras fontes de inspiração. A arte tornou-se sempre mais humana. E chegamos até a João Rictus que, na França, cantou as dores de todos os pobres. Os homens simples e fortes, aqueles que trabalham, entraram na cidade e
constataram o seu direito à vida moral e intelectual.
Exceto algumas páginas de inspiração subjetiva, nas quais Affonso Schmidt revela seu mundo interior de sentimentos e sensações, a obra deste escritor é consagrada aos humildes. E todas as injustiças sociais o acham adversário tanto mais poderoso
por causa do instinto generoso que o leva a combatê-los. A pujança do caráter e do pensamento, em Schmidt, se une à espontaneidade e à perícia da sua arte. Ele possui o senso da Beleza; tem no seu espírito uma força que implica sempre a Beleza. Na
sua arte não predomina a faculdade fria do raciocínio. Na poesia não quer abstrações; tem o singular privilégio que todas as suas qualidades de artista derivam do sentimento.
Ninguém revela com palavras mais empolgantes as grandes dores da humanidade. Suas páginas são um pequeno universo onde o homem faz ouvir mais queixumes do que
gritos de alegria, onde a natureza - que Schmidt poeta sente admiravelmente - parece consolar, embalar a alma, sofredora do pobre e do abandonado. Tudo o que pertence à categoria dos sentimentos doces e tenros ele exprime com um acento penetrante.
Mas ao sentimento de ternura, de fraternidade universal, junta um gênero de talento analisador. Enquanto percebe a beleza das coisas, a esta une a tristeza que lhe inspiram as tragédias sociais. É como um turn of pensiveness que se nota em
alguns artistas ingleses.
Também a galanteria, o amor, têm nas suas obras um caráter pensativo e enternecido. Outro aspecto frequente em Affonso Schmidt: a mulher se adorna de todas as graças da paisagem, e a paisagem se aproveita das graças que a mulher enamorada derrama
no céu, sobre a terra, sobre as coisas. Poeta amante, amante poeta. É como tal que ele canta também a sua Terra natal. E por isso lhe bastam poucas palavras simples e sinceras para gravar dela um traço profundo. Arte de um escritor que não acha
senão pela espontaneidade de sua alma a expressão, o canto, destinados a ficar inesquecíveis na memória de quem lê.
Toda arte é um esforço heroico para raptar do perene fluxo heraclíteo um momento da vida e para espera-lo na eternidade. Se este caráter substancial parece desperdiçado numa época como a nossa, na qual não só critério estético, mas também aquele do
Bem, está sujeito ao arbítrio da contingência corporal; ele, porém, é imanente em toda a história da Poesia, e ressurge com a ressurreição da Poesia mesma. Em toda poesia, o motivo, a ânsia da eternidade, é implícita na natureza mesma da vontade
criadora; mas nas obras de Affonso Schmidt aquele motivo é revelado e torna-se não só caráter, mas também objeto da arte.
Já falei de uma entrevista publicada pela revista Vanitas. Naquela conversa, Affonso Schmidt dizia:
"Na segunda metade deste século, resolvido o caso econômico de todos os homens, quando se viver com a espontaneidade alegre de quem respira, a inquieta inteligência humana voltar-se-á para o mundo das coisas belas. E a poesia, misto de religião e
de arte, ordenará a vida e levantará o nível moral dos homens".
Nestas palavras está todo Affonso Schmidt, homem e artista.
A matéria, no jornal Folha da Manhã de 4 de junho de 1932
Imagem: reprodução/Acervo Folha de São Paulo