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Os bananais
De Afonso Schmidt (Especial para a "Folha da Manhã")
Nasci em Cubatão, passei a infância à beira do rio, entre bananais. Com o tempo, troquei o sítio primitivo com a casa de pau-a-pique, os doze mil
pés de bananeiras, as quatro laranjeiras amargas e uma canoa com dois varejões, pela cidade com suas praças, avenidas, palácios e uma população diligente que trabalha para viver e vive para trabalhar. Sinto que mudei. Por outro lado, os que chegam
de serra-abaixo contam-me que os bananais também mudaram.
O sítio do Salvador ficava entre a serra e o rio, mesmo diante de uma itupava que era para os olhos um tear de águas fiadas por entre pedras, tecendo guirlandas de espumas. De noite, quando o vento dormia, quando nem sequer se
escutava o palpitar da vegetação, a corredeira cantava. Cantava o que? Cantava o que a gente quisesse. Era só atentar o ouvido e, do queixume das águas, surgiam, desdobravam-se na noite quente, harmonias de órgão.
Os contrafortes da serra começavam no quinta. De certos pontos se via, ali mesmo, como a silhueta branca de uma noiva, o salto. O síto chamava-se do Salvador porque foi Pai Salvador o seu último caseiro. Havia também o de Pai
Benedito, pelo mesmo motivo. Para o lado de cima da Água Fria e de Pilões, os morros tinham nomes sugestivos: Mazagão, Pai Cará, Mãe Maria, Tomé de Pina. Eram nomes que cheiravam a África, a Portugal do Descobrimento.
Para lá dos picos da serra, ficavam as terras do Zanzalá, nome que lembra "zahr Allah", flor de Deus, ou "zanerelali", flor da altura. Francisco Martins dos Santos, historiador da minha terra, acha que esse nome é do primeiro
morador daquela região, mas eu acho a sua explicação terrivelmente certa. Prefiro a outra. Zanzalá deve ser a expressão com que o preto muçulmano designava a aleluia, árvore que viceja nos pontos altos da serra e que, no mês de março, floresce como
pinceladas de ouro.
Do lado de baixo do sítio ficava, para os que iam a pé, o Morro do Poço e, para os que iam de canoa, o Poço do Morro... Era um cotovelo do rio onde as águas remoinhavam, cavando profundamente o leito. Passava-se por cima dele
num caminho de cabras, entre o barranco a pique e o mistério das águas negras em que se espelhavam os ingazeiros. Quando o rio enchia, isto é, quando estava de "água do monte", como se dizia, o caminho ficava encoberto. E a gente do Salvador via-se
ilhada. Durante uma semana, ou mais, comia-se o que Deus dava. Moía-se a cana na engenhoca e com a garapa coava-se o café. Preto velho pitava folha de cambuci. As refeições eram constituídas de palmito inhame, taioba, mangarito, ou alguma caça que
os camaradas traziam dos mundéus, perdidos na mata encharcada.
O rio subia aos saltos, como se já pelas cabeceiras desmoronassem açudes; galgava os barrancos, espraiava-se pelo terreiro ameaçando a casa. E os moradores dormiam com a porta do quintal sem tramelas, apenas encostada,
esperando a hora, que felizmente não chegou, de correrem, trouxa à cabeça, para o morro mais próximo. Quando a cheia era bravia, grandes árvores arrancadas dos barrancos rolavam pelo rio, virando de ponta-cabeça, mostrando ora a copa escorrida, ora
as raízes esbranquiçadas, em cambalhotas, com vergastadas e estrondos que punham pequenino o coração da gente. Naquelas noites, a itupava (N.E.: pequena queda d'água) não tinha harmonias de órgão, mas os sapos dialogavam no quintal e as untanhas, "que tinham chifres", berravam lugubremente pelas várzeas alagadas.
Nos bananais do litoral, como em muitas propriedades agrícolas do interior, os trabalhadores são chamados de camaradas, como nos núcleos socialistas, ou nos quartéis. De onde virá esse costume? O camarada era, naquele tempo, um
caiçara que deixava a roça de mandioca, à beira-mar, para ir melhorar de sorte nos bananais de Cubatão ou do Jurubatuba. Entre eles, contavam-se também trabalhadores vindos de outros Estados. A procedência se lhes apegava ao nome. Benedito Baía,
Pedro Guasca, Mané Ubatubano, Chico Cananéia, que sei eu!
Muitos eram andantes. Nunca mais ouvi essa palavra... Andante era o marinheiro fugido de bordo, o desertor, o evadido que dava um nome qualquer e esquecia o passado. Ninguém lhe fazia perguntas. No sítio
[d]o Salvador trabalhou um austríaco que falava diversas línguas, deleitava-se com os gregos e lombava cachos de bananas do
carreador para a picada. Um dia foi ao povoado comprar tabaco e nunca mais voltou. Fez a viagem do corvo. Outro estrangeiro interessante... Mas para que contar estas coisas?
Não creio que o bananal melhorasse a sorte de ninguém, pelo menos naqueles dias. Os camaradas moravam em ranchos de palha, dormiam em tarimbas de varas com esteira por
cima, construídas ao longo das paredes esburacadas. No centro do rancho ardia, a noite inteira, um fogo de lenha verde, verdadeira fábrica de fumaça, para afugentar os pernilongos.
Guardavam a roupa - os que tinham roupa - em baús de folha feitos na Cadeia. Esses baús eram vistosos e tinham na tampa uma grande rosa pintada, certamente, com a ponta
do dedo, pelo recluso artífice. A alimentação era exclusivamente de feijão, nacos de carne seca e uma conchada de arroz.
Certa vez, houve no sítio um corre-corre porque, como abundasse a criação, os donos se lembraram de substituir a carne seca por galinhas e ovos. A comissão que foi
parlamentar com o patrão alegou "que galinha era imundície, deixava tísico". Ganhavam 2$000 por dia de trabalho. E o dia de trabalho nos bananais, há quarenta anos, era uma coisa espantosa.
Por hoje chega, mas ainda tenho um samburá de lembranças, muita coisa velha para contar.
Imagem: ilustração de Belmonte, publicada com o texto |