Mas não eram colonos comuns. Em razão dos seus princípios e intuitos, jamais poderiam invocar o apoio dos hospitaleiros
paranaenses ou mesmo dos europeus que ali trabalhavam, amoldados às praxes de uma sociedade velha, tida como errada pelo dr. Giovanni Rossi e seus
amigos.
Eles eram mais pobres do que os ermitões do deserto: pois a convicção mesma que os trouxera da Europa, nessa aventura por
longínquas terras do Brasil, os impedia de receberem auxílio fosse dos agricultores a que chamavam de capitalistas, ou dos governantes que
representavam a seus olhos uma organização inimiga.
Sobrava-lhes, no entanto, a possibilidade de recorrerem a companheiros e simpatizantes do mundo inteiro, mas essa gente nunca
passou de uma grande minoria, rica de sonhos e pobre de haveres.
Todas as manhãs olhavam com angústia as plantações, belas mas preguiçosas. A terra, por mais produtiva que seja, não restitui
da noite para o dia, generosamente multiplicada, a semente que se lhe confia. Era prciso tempo, muito tempo, para colher os primeiros frutos. E esta
espera foi terrível para os colonos. Escasseava-lhes tudo: pão, roupa, calçado, o mais comezinho conforto. Vivia-se descalço, esfarrapado, mal
nutrido.
Quando a vida se tornava de todo impossível, alguns homens se dirigiam às localidades próximas e trabalhavam de ganho. No fim
da semana, recebendo o salário, compravam sal, sabão, farinha de milho e de trigo e regressavam à Colonia. Mas essa atitude não era vista com bons
olhos. Piero, o ortodoxo do grupo, que ressumava amargura, erguia os olhos do braseiro em que vivia a aquecer-se e perguntava-lhes:
- Achastes, afinal, o vosso patrãozinho?
Mas os pobres estavam exaustos; não respondiam. E a terra a cainhar os frutos... As mãos do dr. Giovanni Rossi, agrônomo,
jornalista, músico e filósofo, não tinham sido feitas para aquilo; empolavam-se de calos, tornavam-se pesadas e inúteis. Dentro de pouco, era só
Ciccio a fazer essas escapadas pelas terras proibidas do "capitalismo e do patronato". O antigo malfeitor dos "bastioni" de Milão não se
cansava de tais sortidas. Levava-as a cabo, pondo na obra uma certa religiosidade de cristão primitivo. Sentia-se feliz em contribuir por essa forma
para a construção daquilo a que nos meios se chamava "a sociedade nova".
Apesar de tudo, a colônia progredia. Surgiram as primeiras casinhas de tábuas e pinho, de teto alcatroado, com seus móveis
rudimentares, algumas sementeiras novas, a horta, a fossa higiênica. Esse progresso poderia ser considerado notável se se levasse em conta que os
pioneiros da Colonia Cecilia eram leigos em tais serviços. Um deles era estropiado e os demais, como vimos, de quando em quando, tinham de ir ganhar
fora o pão comum.
Em fins de 1890, foi derrubada uma larga extensão de mata para a plantação do milharal, sendo ao mesmo tempo construída
comprida cerca para defendê-lo do gado dos proprietários vizinhos. Em janeiro do ano seguinte, chegaram à colônia mais algumas famílias de
camponeses. No entanto, logo no começo, viu-se com desgosto que essa gente não se harmonizava com os primeiros chegados. Homens e mulheres
manifestaram desde logo o seu desencanto por não encontrarem ali, à sua espera, o paraíso com que haviam sonhado lendo ou ouvindo ler os opúsculos
de propaganda da colônia.
Dias depois, diversos desses incrédulos se retiraram para Curitiba e aí se estabeleceram, tornando-se elementos negativos,
empenhados em "desencabeçar" os camponeses que, de passagem para a Cecilia, lhes pediam hospitalidade.
Os pioneiros da colônia eram da massa dos apóstolos. Tinham a tenacidade irritante dos convictos. E os trabalhos agrícolas,
lentos e dolorosos, prosseguiam. Foram chegando, com espaços de semanas e de meses, o Bottai, os Marinai, os Colli, os Cappellano... Iniciou-se a
construção de um edifício central, para as reuniões. Nos meses de março, abril e maio continuaram a chegar, em turmas numerosos camponeses,
elevando-se a população da colônia por essa altura a 150 pessoas.
Esse crescimento rápido, no entanto, confessa o dr. Rossi, foi prejudicial. Constituíram-se grupos por famílias e os mais
atilados se aproveitavam da escassa produção, em prejuízo do maior número. A política fervia. Num grotesco sistema de "referendum", a
população perdia o melhor de seu tempo em assembleias, das quais surgiam fementidas promessas e ambições mal dissimuladas. Elegiam-se comissões,
votavam-se regulamentos, gritava-se a ponto de ficar rouco. Mas - seja dito em seu abono - nunca, nem mesmo nas reuniões tumultuosas, se registrou o
mais ligeiro desrespeito à integridade física dos contrários.
Mais ainda: essa gente exasperada pela desilusão, enfraquecida pela escassez da alimentação, mas livre de tutores, trabalhava
sempre, fazendo o que sabia e como podia: reclamava, mas não descia à violência.
Muitas vezes aqueles jovens, de estômago vazio, se apoiavam no cabo da enxada e olhavam, desfraldado no alto de um coqueiro,o
pavilhão que sintetizava os seus anseios. E concordavam consigo mesmos:
- D'un pó di polenta e d'un pó d'ideale si vive...