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CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - A.Schmidt
O jornalista Affonso Schmidt, no Estadão - 25

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Durante muitos anos, o escritor Affonso Schmidt foi também jornalista no jornal paulistano O Estado de São Paulo, onde publicou reportagens, crônicas e até livros inteiros. Esta contribuição foi publicada na página 4 da edição de 27 de outubro de 1940 (material no Acervo Estadão - ortografia atualizada nesta transcrição):

Imagem: reprodução parcial da pagina com a matéria

Em Palmeira - há meio século

A vida dos pioneiros da Colonia Cecilia era a de homens abandonados a suas próprias forças, em plena natureza. Sentiam-se náufragos aportados a uma ilha deserta. É verdade que na orla do horizonte apareciam penachos de fumo subindo da cumeeira de outros ranchos e, quando o vento estava de feição, podia, ouvir, na distância, o bimbalhar dos sinos de Palmeira e de Santa Barbara.

Mas não eram colonos comuns. Em razão dos seus princípios e intuitos, jamais poderiam invocar o apoio dos hospitaleiros paranaenses ou mesmo dos europeus que ali trabalhavam, amoldados às praxes de uma sociedade velha, tida como errada pelo dr. Giovanni Rossi e seus amigos.

Eles eram mais pobres do que os ermitões do deserto: pois a convicção mesma que os trouxera da Europa, nessa aventura por longínquas terras do Brasil, os impedia de receberem auxílio fosse dos agricultores a que chamavam de capitalistas, ou dos governantes que representavam a seus olhos uma organização inimiga.

Sobrava-lhes, no entanto, a possibilidade de recorrerem a companheiros e simpatizantes do mundo inteiro, mas essa gente nunca passou de uma grande minoria, rica de sonhos e pobre de haveres.

Todas as manhãs olhavam com angústia as plantações, belas mas preguiçosas. A terra, por mais produtiva que seja, não restitui da noite para o dia, generosamente multiplicada, a semente que se lhe confia. Era prciso tempo, muito tempo, para colher os primeiros frutos. E esta espera foi terrível para os colonos. Escasseava-lhes tudo: pão, roupa, calçado, o mais comezinho conforto. Vivia-se descalço, esfarrapado, mal nutrido.

Quando a vida se tornava de todo impossível, alguns homens se dirigiam às localidades próximas e trabalhavam de ganho. No fim da semana, recebendo o salário, compravam sal, sabão, farinha de milho e de trigo e regressavam à Colonia. Mas essa atitude não era vista com bons olhos. Piero, o ortodoxo do grupo, que ressumava amargura, erguia os olhos do braseiro em que vivia a aquecer-se e perguntava-lhes:

- Achastes, afinal, o vosso patrãozinho?

Mas os pobres estavam exaustos; não respondiam. E a terra a cainhar os frutos... As mãos do dr. Giovanni Rossi, agrônomo, jornalista, músico e filósofo, não tinham sido feitas para aquilo; empolavam-se de calos, tornavam-se pesadas e inúteis. Dentro de pouco, era só Ciccio a fazer essas escapadas pelas terras proibidas do "capitalismo e do patronato". O antigo malfeitor dos "bastioni" de Milão não se cansava de tais sortidas. Levava-as a cabo, pondo na obra uma certa religiosidade de cristão primitivo. Sentia-se feliz em contribuir por essa forma para a construção daquilo a que nos meios se chamava "a sociedade nova".

Apesar de tudo, a colônia progredia. Surgiram as primeiras casinhas de tábuas e pinho, de teto alcatroado, com seus móveis rudimentares, algumas sementeiras novas, a horta, a fossa higiênica. Esse progresso poderia ser considerado notável se se levasse em conta que os pioneiros da Colonia Cecilia eram leigos em tais serviços. Um deles era estropiado e os demais, como vimos, de quando em quando, tinham de ir ganhar fora o pão comum.

Em fins de 1890, foi derrubada uma larga extensão de mata para a plantação do milharal, sendo ao mesmo tempo construída comprida cerca para defendê-lo do gado dos proprietários vizinhos. Em janeiro do ano seguinte, chegaram à colônia mais algumas famílias de camponeses. No entanto, logo no começo, viu-se com desgosto que essa gente não se harmonizava com os primeiros chegados. Homens e mulheres manifestaram desde logo o seu desencanto por não encontrarem ali, à sua espera, o paraíso com que haviam sonhado lendo ou ouvindo ler os opúsculos de propaganda da colônia.

Dias depois, diversos desses incrédulos se retiraram para Curitiba e aí se estabeleceram, tornando-se elementos negativos, empenhados em "desencabeçar" os camponeses que, de passagem para a Cecilia, lhes pediam hospitalidade.

Os pioneiros da colônia eram da massa dos apóstolos. Tinham a tenacidade irritante dos convictos. E os trabalhos agrícolas, lentos e dolorosos, prosseguiam. Foram chegando, com espaços de semanas e de meses, o Bottai, os Marinai, os Colli, os Cappellano... Iniciou-se a construção de um edifício central, para as reuniões. Nos meses de março, abril e maio continuaram a chegar, em turmas numerosos camponeses, elevando-se a população da colônia por essa altura a 150 pessoas.

Esse crescimento rápido, no entanto, confessa o dr. Rossi, foi prejudicial. Constituíram-se grupos por famílias e os mais atilados se aproveitavam da escassa produção, em prejuízo do maior número. A política fervia. Num grotesco sistema de "referendum", a população perdia o melhor de seu tempo em assembleias, das quais surgiam fementidas promessas e ambições mal dissimuladas. Elegiam-se comissões, votavam-se regulamentos, gritava-se a ponto de ficar rouco. Mas - seja dito em seu abono - nunca, nem mesmo nas reuniões tumultuosas, se registrou o mais ligeiro desrespeito à integridade física dos contrários.

Mais ainda: essa gente exasperada pela desilusão, enfraquecida pela escassez da alimentação, mas livre de tutores, trabalhava sempre, fazendo o que sabia e como podia: reclamava, mas não descia à violência.

Muitas vezes aqueles jovens, de estômago vazio, se apoiavam no cabo da enxada e olhavam, desfraldado no alto de um coqueiro,o pavilhão que sintetizava os seus anseios. E concordavam consigo mesmos:

- D'un pó di polenta e d'un pó d'ideale si vive...

(Inédito de "Colonia Cecilia")

Affonso Schmidt

Imagem: reprodução parcial da pagina com a matéria

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