Páginas de Navalha na Carne, na edição de Pedro Bandeira
Imagem: Daniel Guimarães/Folhapress, publicada com o texto
O fototeatro de Plínio Marcos
São Paulo, 1968
Pedro Bandeira
No final dos anos 50 e início dos 60, vivi o teatro amador em Santos, como companheiro e ator de Plínio Marcos e sob o
incentivo de Pagu, a Patrícia Galvão. No final de 61, eu e Plínio mudamos para São Paulo e continuamos metidos em teatro.
O Plínio escreveu uma peça para os dois atores famintos que éramos, com a intenção de sairmos de ônibus, eu e ele, mambembando pelo interior para ganhar alguns trocados. A coisa era
fácil, pois a peça dispensava cenários, e os figurinos eram as mesmas roupas que nos cobriam no dia a dia.
Mas eu já estava na USP e enveredava pelo jornalismo, onde o salário não era grande, mas chegava no final de cada mês, o que não ocorria no teatro. O Plínio então convidou outro amigo, e
os dois encenaram a genial Dois Perdidos numa Noite Suja.
Logo ele escreveria Navalha na Carne, e a peça foi ensaiada com Ruthinéia de Moraes no papel de Neusa Sueli, Paulo Villaça fazendo Vado e Edgard Gurgel Aranha como Veludo.
Mas eram os anos 1967/68, e a ditadura já endurecia, censurando a arte e impedindo os brasileiros de assistir a encenações de sua realidade para não corrermos o risco de encarar nossas
próprias mazelas. Eu trabalhava numa editora e não pude me conformar com a proibição da peça: como podia uma originalidade como aquela permanecer desconhecida dos brasileiros? AH, isso não!
Resolvi publicar a peça, mas, como quase todo o teatro do Plínio Marcos, o texto era curto demais e não daria um livro com a presença que seu conteúdo merecia. Além disso, eu já havia
assistido aos ensaios e me emocionado com a brutalidade do cafetão encarnado pelo Paulo Villaça, com a pobreza da prostituta de Ruthinéia e com a humanidade frágil do Veludo representado pelo Edgard.
O texto era brilhante, mas interpretações como aquelas não poderiam se perder. Tive então a ideia de "encenar" a peça em livro, fazer teatro no papel. A editora pagou cachês para os três
atores e eles iam sendo fotografados lentamente, cena a cena.
Produzi então um livro em que o tamanho do corpo das letras mostrava a intensidade das falas, "berrando" em 72 pontos, quando o Vado xingava a pobre Neusa Sueli, e caindo para corpo 6,
quando ela se lamentava e sussurrava para escapar da violência do cafetão. Ficou uma lindeza, e a tiragem esgotou-se em poucos dias.
No entanto, a maravilhosa Tônia Carrero, como era de família de generais, conseguiu que a peça fosse especialmente liberada (só para ela, pois em seguida voltou a ser proibida) e a
encenou no Rio, no Teatro Maison de France.
Peguei um ônibus e lá fui eu assistir à estreia. Que coisa inesquecível! O baixinho Nelson Xavier fez o Vado e parecia um gigante Adamastor em cena, apavorando toda a plateia lotada e
embasbacada. O Veludo era Emiliano Queiroz e nós tremíamos a cada fala de resistência dele à brutalidade do cafetão. Mas a Tônia Carrero... Hoje em dia ninguém acredita, mas eu garanto que ela, a mulher mais linda que o Sol já iluminou sobre a
Terra, conseguiu ficar... feia!
Pois é: Plínio Marcos conseguiu humanizar e por no palco personagens aos quais as pessoas viram o rosto quando, por acaso, passam por elas. Gente como as prostitutas de rua, seus pobres
cafetões, os empregadinhos das pensões fuleiras, os mendigos, os despossuídos, os excluídos.
Hoje talvez sua sensibilidade nos explicasse a humanidade que existe sob a pele desses miseráveis que perambulam sob os efeitos do crack. Mas ele já se foi, a encenar suas peças em
companhia da Ruthinéia, do Paulo Villaça, do Edgard, na memória de quem os viu. Como ele, quem outro haverá? |