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CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - S. FLOREAL
Sylvio Floreal (4)

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Texto do poeta Sylvio Floreal publicado nas páginas 107/108 (páginas 7/8 da edição) da revista mensal paulistana Panoplia número 10, de 1918, preservada no Arquivo do Estado de São Paulo (acesso em 7/10/2012 - ortografia atualizada nesta transcrição):

Imagem: reprodução parcial da página 101, capa da edição

 

Gestação das formas

(Estética obscura)

Sylvio Floreal

Tudo na natureza encerra um grito de amor, um ósculo ardente, enjaulado na essência amorfa das câmaras imperceptíveis dos elementos brutos. Um grânulo que se transmuta e congrega é uma poalha de harmonia que caminha para a formação gloriosa de outros corpos, insuflado por um sopro invisível.

A coalescência dos átomos no seio obscuro do Cosmos são bulícios ansiosos de júbilos, que prenunciam a existência de outras coisas novas que se estão elaborando no berço recôndito das energias anônimas. A natureza é um Gineceu eterno, onde palpitam em silêncio os germes de todas s coisas que aspiram a adquirir o máximo de estesia para a suprema perfeição...

O fenômeno da estenia é ali um estado latente: tudo tem uma psiquê que sonha em desdobrar-se, um coração que ama e pulsa, regulando o ritmo das coisas que fazem o seu ciclo evolutivo, para plasmarem sempre vidas e formas inéditas.

Em todos os lugares, por mais abscônditos que sejam, há um frêmito de volúpia, uma exaltação jovial, inflamando as seivas, propiciando as transfusões nos imos misteriosos das fibras mais humildes, despertando o princípio genésico, acordando dissimuladas vigílias de amor, que noivam às ocultas, nos ovários, nos polens e no hilos.

A ânsia da transfiguração, o egoísmo da glória, é uma febre magnética distribuída às coisas mais ínfimas, pelo destino que rege e equilibra a marcha da evolução.

Num fragmento de cristal se encarcera um raio fulgurante de sol. No pistilo seco de um lírio, que o vento ceifou, se o examinarmos atentamente encontraremos estiolados nas comissuras dos seus tecidos os últimos brilhos dos beijos das estrelas. Nas lombadas ásperas dos muros solitários a alegria se manifesta pela pelúcia cetínea dos musgos.

Nas penumbras das locas, surpreendemos o sorriso humilde de uma flor a destoar aquela monotonia, como uma esperança louçã a inebriar um organismo decrépito. No reino das coisas toscas há uma harmonia sutil, ressoando no fundo longínquo das estâncias, que servem de berço às futuras formas.

Das entranhas marmíferas dos montes se irrompe um grito árdego de desejo; são os alabastros que suspiram pela eternidade, clamando nesse verbo incomunicativo das coisas divinas, pelo beijo redentor que os cinzéis lhes hão de imprimir, que é a estrofe de uma linha, o poema dumas curvas, o cântico da vida resumido na carne das mulheres...

No silêncio místico dos alfobres onde na combustão do húmus as sementes germinam, há um trabalho incoercível, urdindo febrilhas secretas para a formação de variegadas estruturas. Existe em tudo uma vibração velada; o fogo sagrado do amor crepita perpetuamente na alma das coias, acirrando entusiasmos e exacerbando desejos.

Uma filosela de luz que se tamisa em curveteios macios, como um suave soprilho através das gelhas de um tronco senil, é um hálito mesto de epifania que, como mensageiro excelso, vai acordar para a aleluia da vida, forças que jazem sincopizadas na ternura virginal das seivas. os raios comburentes do sol são gotas afrodisíacas de um elixir imponderável e diáfano, que fecundam no tálamo da natureza as belezas eternas que bisbilham no sangue ubertoso da gleba.

Obedecendo à lei eviterna da transmutação é que as coisas mais incolores e insonoras se esposa, para doarem galhardamente ao grande museu da natureza a dádiva de uma beleza nova.

Jaz impresso em tudo o delírio da pompa e a embriaguez do fulgor!...

Dentro das células torvas de um punhado de lama se alberga a ilusão mirífica de uma esperança bramante - a lama sonha em ser asa... Os paúes, cansados dos reproches, e baldões do céu, numa emulação de suprema vaidade, estrelam-se de lírios.

Todas as belezas afloram e vicejam sobre o delubro do sacrifício e da dor. Quanto orgulho e quanto fastígio ostentam os roseirais afestoados de rosas e as árvores avergoadas de frutos!... E este relumbramento e esta opulência são filhos de uma renúncia; promanam de um gesto de abnegação. São as raízes que num estoicismo bendito aceitam para o fausto de alheios triunfos o holocausto rude das solidões inglórias.

E elas, como párias desprezíveis, condenadas ao divórcio perpétuo da luz, e à orfandade das carícias suavíssimas dos astros, medram, medram sempre à procura do seu ignorado destino, como mães que ofertaram os olhos aos filhos cegos e imploram para reavê-los! Assim elas, sem a esperança de uma recompensa, rezam eternamente lá do fundo da terra uma fervorosa oração pagã ao sol que nem sabe que existe cá em baixo alguém tão humilde que o adora tanto; ele é bem o príncipe encantado que perturba o sono das raízes...

A natureza, mesmo nos seus momentos de crise, quando tudo se envolve numa fosca penumbra de dor, ela tem um alvo sorriso de Samaritana, para oa flor que tomba, e para a semente que germina, para as árvores arrogantes que sob a doçura dos astros fazem a escalada do azul, e para o arbusto humilde esquecido no anonimato das alfombras!... Vem do silêncio dos túmulos o grito dos berços, parte do coração das rochas o eterno princípio do amor...

Imagem: reprodução da página 107

 

Imagem: reprodução da página 108

A revista quinzenal paulistana A Cigarra publicou, nas páginas 12 e 13 (não numeradas) da edição 91 (ano V), de quinta-feira, 16 de maio de 1918, preservada no Arquivo do Estado de São Paulo (acesso em 23/10/2011 - ortografia atualizada nesta transcrição):

Imagem: reprodução do cabeçalho da 11ª página

 

Estética do silêncio

 

Sylvio Floreal

Assim como uma árvore, que para garridecer a sua copa e revigorar os rebentos fústeis e os gômulos tenros, mergulha com sofreguidão as raízes nas solidões subterrâneas, para sugar do seio pletórico da natureza a seiva que a robustece, fazendo-a vicejar entre a dúlia ameníssima dos pássaros e a radiação apoteótica da luz: também deve o homem, para abastecer o celeiro dos seus conhecimentos e atletizar as fibras da sua energia, procurar um afago no silêncio, um repouso tranquilo e reparador que o reabilite à normalidade, que o soerga à plácida ascensão da vida...

O silêncio atua poderosamente sobre os nossos sentidos, dá-nos um batismo de alegria louçã, de alacridade fagueira, de entusiasmo rejubilante e jocundo que nos incute a força, a coragem, a confiança e o otimismo que nos faz amar a vida com mais ardor, com mais senso estético, com mais volúpia - amar, enfim, a vida pela vida, como um sacerdote ama a Deus para Deus.

No silêncio, o homem apela para as forças que estão em latente vigília no âmago de sua consciência, desce ao mundo interior, ao microcosmo, e põe-se em contato com o que há de mais divino e nobre nele, que é a alma.

O silêncio é uma beldade anódina, estanca todos os desfibramentos e aplaca todas as dores íntimas, porque com elas tem afinidades. Possui o hidromel para a alma sã e o antídoto para a alma doente, a convalescença para o combalido e o lenitivo para o vigoroso...

Condensa a melancolia e dissipa o tédio e acirra as ilusões: assiste à elaboração dos nossos fantásticos castelos e ao seu desmoronamento fragoroso. É testemunho único do baque das nossas esperanças, mas, sempre impassível e bom, a convidar-nos perenemente a fazermos e refazermos novos edifícios efêmeros, com as pedras da ilusão e a argamassa da esperança, no terreno impreciso e problemático da utopia...

No recesso das cavernas sombrias onde, em silêncio absoluto, o porejar perene das águas, arrastando, na faina do seu deslizar constante, resíduos calcários, forma, com paciência, esquisitas torres de estalactites e estalagmites, verdadeiras maravilhas da concreção pedregosa que a mão mágica da natureza habilmente executou nessas oficinas rudimentares - quem sabe não seja o atelier tosco donde o homem primitivo colheu as primeiras noções de arte: em igual aconchego, um arquiteto divorciado da rotina e do afã vertiginoso da vida, traça, alinha e conjunta no recesso de seus gabinetes, as torres e as catedrais que extasiam a nossa sensibilidade artística com esses poemas arquitetônicos, ornamentados de capitéis, florões e colunelos, que sobre o bojo dos torreões e das criptas cantam para a amplidão, para a vacuidade azul e silenciosa do espaço, a poesia fulgente da pedra, da cal, do gesso, que como estrofes alcandoradas, às reverberações do sol, brilham, faíscam na pulverização da luz, entoando hosanas ao gênio, ao esforço, ao trabalho, na mais augusta floração do belo, do grandioso, do esplendente, do magistral!

Se possuíssemos o dom de decifrar as dores, as mágoas, as misérias e as agonias que estão gravadas com a água forte das lágrimas nos evangelhos do silêncio, assombrar-nos-íamos seguramente: não pelo pavor que nos causariam as senas sanguinolentas ou as visagens funambulescas dos que tombaram nas guilhotinas, nos catafalcos e nos fossos das fortalezas: mas as trapaças de angústias, de desditas e de sofrimentos - é a miséria de Camões, é o pranto amargo de Dante, é o exílio doloroso de Tasso, é a surdez do taciturno Beethoven, é a dor pungente de Galileu, é o desespero místico de Beaudelaire, que dizia em silêncio: "tem juízo minha dor", é o furor desordenado daquele que, à força de estudar, excitou o cérebro até cavar a própria sepultura, o malogrado Frederico Nieztche, que fugia dos odientos rumores da sociedade, e na sua mesta solitude se confortava, dizendo "o mundo gira em silêncio".

***

Há momentos de silêncio na nossa vida que marcam etapas de triunfos, assim como há silêncios que cavam sulcos profundos de derrota!

Ele é o confidente de todas as ações da nossa vida, precede as mínimas causas humanas, e sucede aos grandes fracassos da nossa existência, discreto como uma esfinge... O silêncio é o princípio e o fim de tudo.

Quando domina o ambiente que circunda o nosso berço, é sereno, afável vela sobre as nossas cabeças como um Nume excelso, fazendo a guarda do bem, assistindo o desabrochar lento, mas persistente, dessa esperança que dorme o sono angelical, embalada no berço, nessa concavidade oscilante que já nos ministra as grandes e amargas oscilações do mundo...

Quando a parca faz a ronda macabra à volta do leito do moribundo, espreitando o momento azado para amputar com a sua negra tesoura o fio de uma existência, fazendo-nos mergulhar no grande e profundo silêncio do pó, na mansão da imobilidade, no porto agasalhador donde nos empreendemos o surto branco que nos faz demandar a diretriz dos astros - o supremo silêncio das esferas, é silêncio trágico, apavorante, misto de soluços e gemidos, de desfalecimentos e dissipações, é a esperança que se trunca para sempre, é o cortejo azul das ilusões que se abismam no insondável silêncio do nada...

O silêncio tem uma voz maviosa e persuasiva que nos fala ao íntimo,numa linguagem nostálgica e lassa, todos os mistérios das coisas mudas e todos os segredos das coisas incomunicativas. É o mealheiro sacro, que guarda em seu bojo as medalhas rútilas que, engastadas na fronte do homem, representam a coroa augusta do trabalho que triunfou.

É, enfim, o sepulcro da agitação e o sustentáculo veemente da placidez que gera o raciocínio, da serenidade que fecunda o talento e do descanso que revigora.

Sylvio Floreal.

Maio de 1918.

Imagem: reprodução parcial da 12ª página da publicação, que contém também um poema de Vicente de Carvalho: Desiludida - IV

 

Imagem: reprodução parcial da 13ª página da publicação

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