1/1/2000
O processo criativo de Pedro Bandeira: por ele mesmo
O enredo - A feitura de um livro pode ser comparada à construção de uma
ferrovia: para que uma ferrovia funcione é necessário haver uma linha férrea, é preciso haver trilhos. Esses trilhos são o enredo sobre o qual a
história haverá de se desenvolver. Pode ser uma estrada sinuosa, tortuosa, com trechos perigosos, com pontes que ameaçam ruir. Também pode ser uma
estrada reta, linear, rodeada de árvores floridas, sem problemas de percurso. E pode até ser uma estrada em círculo, onde não há começo nem fim.
Essa estrada não é suficiente para o que o escritor pretende. É apenas um fio condutor.
A forma - Em seguida, sabemos que, sobre uma linha férrea, caminham os trens.
Essa é a composição literária, a forma de um livro, que pode ser bem organizada, com todos os vagões do mesmo estilo e tamanho, ou pode ser uma
Maria Fumaça, antiga e engraçada, ou pode ser um trem-bala, ou pode ser uma composição heterogênea. Pode ser o que se quiser; o que importa é
que essa composição deve ter uma estrutura muito clara na cabeça de quem escreve.
Personagens e conteúdo - Por último, sabemos que é muito caro e inútil fazer
uma composição ferroviária trafegar vazia. Os vagões têm de transportar alguma coisa, algum conteúdo, carga e pessoas. E é isso que me motiva a
escrever um livro: os passageiros - personagens - e a carga - conteúdo - que vou entregar ao leitor.
Em conclusão, quando organizo o plano de um livro, não me basta o enredo, não me
bastam as personagens, não me basta o conhecimento do público-alvo que serão os leitores, não me basta a forma, não me basta a definição do foco
narrativo, não me basta a linguagem, não me basta o conteúdo, não me basta a estrutura. Eu preciso de tudo isso coerente, interligado, interatuante.
É verdade que, muitas vezes, algum desses componentes impõe-se e acaba por comandar as características dos outros. Penso que é por isso que eu não
me defino como um autor ligado a este ou àquele estilo, pois, de acordo com a necessidade de cada idéia, tenho de impor-me um novo estilo.
O foco narrativo - Aí teríamos um primeiro passo para abrir a discussão acerca
de se já existe ou não uma estética própria para a literatura infanto-juvenil brasileira. Embora seja ainda muito cedo para que se possa tirar uma
conclusão distanciada do fenômeno que vem ocorrendo com esse tipo de literatura no Brasil, creio que podemos abordar algumas características
estéticas exclusivas que diferenciariam esta da literatura adulta ou sem idade.
Essa diferenciação começa pelo foco narrativo. Suponhamos um narrador na 3ª pessoa,
que relata o que vê, como se fosse a objetiva de uma câmara fotográfica ou de cinema; um ponto de vista único. Quando se trata de, por
exemplo, um livro para crianças, devemos discutir a que altura do chão está esse ponto de vista único. Uma criança pequena vê o mundo de uma
perspectiva mais abaixo do que a do adulto. Se eu tiver de descrevê-la entrando em uma cozinha, certamente ela não poderá saber o que está sobre a
geladeira, ainda que esta seja baixa, mas ela verá se alguém deixou um chiclete colado sob o tampo da mesa da cozinha.
Abordando a narrativa por esse lado, o autor de livros para crianças não pode
esquecer-se de que, se uma criança não vê algumas coisas que o adulto pode ver, em compensação ela verá outras coisas ocultas aos olhos dos adultos.
Isto serve mesmo para a visão interior e para a cosmovisão.
Essa argumentação serve especialmente para as ilustrações de livros infantis. De nada
adiantará um belo desenho, se a cena estiver enfocada a partir da altura de um homem em pé, como muitas vezes fazem nossos ilustradores. Uma criança
vê o mundo de uma perspectiva mais ou menos semelhante à de uma lente grande angular colocada na altura do umbigo de um adulto e dirigida
para cima. Olhando para seus pais, uma criança vê suas cabeças projetadas sobre o teto da casa; já seus pais a estarão vendo com o chão como fundo.
Quando o ilustrador desenha a criança vista de cima para baixo, ele estará mostrando sua perspectiva de adulto e a criança leitora terá dificuldade
de entender, de sentir o que está sendo mostrado.
Isso também tem a ver com a narrativa. Uma criança conhece o mundo do trabalho de seu
pai somente através de relatos; o restante ela tem de imaginar. Assim, se eu estiver escrevendo uma história focada através de um filho de um
soldado, a guerra entrará na narrativa de acordo com a fabulação que a criança faz a partir do que lhe contam os adultos. Nesse caso, eu não poderia
descrever cruamente o que acontece na batalha em que o pai está envolvido; isso é um conhecimento do adulto, que estaria já despido de toda aquela
riqueza que vem da fabulação elaborada pela criança.
Assim, creio que podemos afirmar ser possível a localização de uma primeira
característica estética marcante da literatura infanto-juvenil: o foco narrativo dirigido de acordo com a perspectiva que o leitor, e não o autor,
tem do mundo. Escrever um livro para crianças ou para jovens de cima, equivale à postura superior, moralista, cheia de certezas e
lições que caracterizaram a nossa literatura infanto-juvenil até Lobato. O grande Lobato, além de tantas outras qualidades, narrava as histórias
a partir do ponto de vista e dos processos criativos de uma só personagem: Narizinho.
Narizinho, uma menina solitária, vivendo em um sítio apenas em companhia de duas
velhinhas, usa sua imaginação, dando vida a uma boneca de pano e a um sabugo de milho, dando voz a burros, rinocerontes e leitões, criando um reino
encantado dentro de um regato e até mesmo trazendo para dentro de casa, os personagens infantis dos livros e do cinema. A inventividade da
menina é tão grande que suas criações, como Emília, acabaram impondo-se e tomando as rédeas das narrativas. Nos livros de Lobato, até mesmo Pedrinho
é uma personagem que embarca no mundo criado por Narizinho. Do mesmo modo, adultos como Dona Benta e Tia Nastácia são mostradas a partir do que
pensa e observa Narizinho e suas criações. Esse é um dos grandes segredos do sucesso de Lobato e com ele Lobato conseguiu uma grande identificação
do leitor com suas personagens. Desse mesmo modo trabalhou Mark Twain, por exemplo.
Pensando assim, concluo que, para escrever para crianças ou jovens, não me basta
simplificar a linguagem, usar gírias e procurar fazer frases curtas. Isso não transformará o meu livro em um livro para jovens. O ponto de vista
narrador sim. Suponhamos um enredo em que um homem e uma mulher, depois de anos de casados, vivem às turras, às agressões, transformando em ódio
aquilo que, um dia, fora amor. Este, certamente, seria assunto para um livro sem idade, ou adulto. Mas, se tomássemos o mesmo enredo e
o narrássemos sob o ponto de vista da filha adolescente do casal, que vê, na briga entre os pais, conseqüências danosas para sua própria situação,
teríamos um livro para adolescentes. E, por fim, se a mesma história fosse narrada pelo cachorrinho da casa, que acha muito estranhas aquelas brigas
entre humanos amalucados, teríamos, talvez, uma história de humor, de Literatura Infantil.
Literatura Infantil e Literatura Juvenil - É fundamental diferenciarmos essas
duas categorias. A primeira, iniciada provavelmente por algumas mães ou avós simples e analfabetas da Idade Média no interior da Europa Central,
continua até hoje na forma de fábulas e de histórias com forte enredo, geralmente bastante criativo e mirabolante. Essas histórias devem
sustentar-se por si mesmas e, muitas vezes, encerram alguma lição de vida no final. Há, portanto (e sempre houve!), uma clara intenção educacional
nessas histórias, desde suas origens até nossos dias.
A galinha ruiva, por exemplo, deve ter sido criada por alguma mãe que queria
mostrar a seus filhos a importância de todos dividirem uma tarefa. Em Bom dia todas as cores, como outro exemplo, Ruth Rocha monta uma bela
fábula para mostrar a impossibilidade de um camaleão ficar sempre mudando de cor para contentar a todos, tal como na fábula de Esopo O velho, o
menino e o burro.
Já no caso da Literatura Juvenil, o que temos não é um passo cronológico à frente da
Literatura Infantil; é antes um passo anterior da Literatura adulta - essas histórias são filhas dos folhetins, dos textos curtos e de ação. A
Literatura Juvenil seria, então, uma simplificação da Literatura dita adulta, ou sem idade.
Normalmente, eu sou este tipo de escritor: alguém que procura escrever de modo livre,
sem a intenção de lições de moral da história.
Pedro Bandeira nasceu em Santos, SP, em 1942, onde estudou até o 2º grau e onde
iniciou-se no teatro. Mudou-se para São Paulo em 1961 para estudar Ciências Sociais na USP. Fez teatro profissional por poucos anos e, em seguida,
trabalhou como jornalista, editor e publicitário até dedicar-se somente à Literatura Infanto-juvenil desde 1983. Em 1999, mudou-se para São Roque,
SP. É casado com Lia e tem três filhos.
Imagens publicadas com a matéria
LIVROS
O dinossauro que fazia au-au - Editora
Moderna - 1983
Este foi o meu primeiro livro, escrito depois de anos como
redator profissional de histórias curtas para revistas. Nele, fica clara a intenção lobatiana de criar um grupo de personagens que critica o
mundo.
Uma história que procura atingir as crianças dos nove aos
doze anos, com uma forma muito simples, uma narrativa linear, um narrador onisciente na terceira pessoa. Os trilhos dessa composição formam
um círculo fechado: quase nada acontece em termos de enredo e nem se apresenta uma solução final para o conflito dramático proposto. Aliás, essa é
uma das características do que escrevo; penso que é nocivo o conceito de que se deva sempre apresentar um final feliz para crianças e jovens, de
modo a não chocá-los.
Essa intenção catártica é muitas vezes mentirosa. Se eu
trato do problema das drogas, por exemplo, será mentira se, no final, com a prisão do criminoso do enredo, eu sugerir que o problema das drogas
estaria resolvido. Ao contrário, devo mostrar que, fora do livro, o problema continua e sua solução depende da atuação futura do leitor. Escrever
para crianças e jovens é também participar de seu processo educacional, e qualquer processo educacional objetiva, antes de tudo, amadurecer a
criança, informá-la, afastá-la da inocência e da ignorância, torná-la um adulto, fazer com ela deixe de ser criança.
É proibido miar (1983) - Editora Moderna
Neste livro, o desafio principal foi criar um narrador na
terceira pessoa que não sabe tudo; narra apenas aquilo que as personagens podem compreender. E, como as personagens são cães, muitas das ocorrências
são narradas do modo equivocado como aqueles cães as interpretam.
Por exemplo: no Canil Municipal, alguém, com um revólver, mata um cão hidrófobo. Os cães jamais
tinham visto alguém morrer e jamais tinham visto um revólver disparar. Assim, eles confundem o ruído do tiro com o ruído das descargas dos canos de
escapamento dos automóveis, do qual eles têm medo, e comentam: "Por que o vira-lata amarelo ficou quietinho depois daquele barulho de escapamento de
automóvel? Vai ver ficou com medo. Eu também tenho medo de barulho de escapamento...".
Desse modo, o jovem leitor, aí entre os oito e os dez
anos, deve ler o livro compreendendo o engano das personagens, descobrindo a verdade por trás desses enganos, e até concluindo que a ingenuidade
deles pode ser a responsável pelas agruras de que eles são vítimas.
Em "O dinossauro que fazia au-au" já não há final feliz mas, neste É proibido miar o final
é realmente infeliz, uma vez que o cãozinho protagonista, perseguido e expulso de casa por que resolve miar, termina a história fugindo para longe e
não voltando para casa e sendo novamente aceito pelos pais. Ser separada dos pais é, para uma criança, a pior das infelicidades e o livro causa,
assim, um impacto muito grande nos leitores. Eu sabia disso e mesmo assim resolvi arriscar.
Eu procurava mostrar os preconceitos que perseguem as pessoas de raças,
idéias e comportamentos diferentes dos dominantes. Desse modo, se eu terminasse o livro com o cãozinho sendo aceito por todos, eu estaria mostrando
à criança que o problema do preconceito estava resolvido. Como eu já disse acima, jamais poderia pregar tal mentira aos meus leitores.
Rosaflor e a Moura Torta (1994) - Editora
Moderna
Pelo fato de o personagem clássico Moura Torta ter sido
citado por mim em Feiurinha, a curiosidade dos leitores sobre essa história, pouco conhecida no Brasil, foi aguçada. Assim, publiquei minha
adaptação deste lindo conto de fadas. Para narrá-lo, quis reproduzir o modo clássico de narrar das contadoras de história originais, do passado
remoto: oniscientes por completo. Assim, fiz a história ser narrada pela água, pois a água é o elemento que nos envolve de modo mais completo: em
todos os lugares está e de tudo sabe.
Série Os Karas:
A Droga da Obediência (1984)
Pântano de sangue (1987)
Anjo da morte (1988)
A Droga do Amor (1994)
Droga de americana (1999)
Editora Moderna
O primeiro é o grande responsável por minha
profissionalização como escritor. Junto com A marca de uma lágrima é o meu carro-chefe e o da Editora Moderna. Acerca desta série, é preciso
definir o que eu entendo por um livro que mescla mistério e suspense. Para mim, uma novela de mistério é aquela em que alguns dados são ocultos do
leitor, de modo que este, a partir de uma série de pistas mais ou menos explícitas, possa resolver o desfecho (no caso dos finais-surpresa, o que
acontece é que o leitor deixou de perceber algumas pistas ou o autor ocultou-as demais).
Assim, uma novela de mistério é aquela que se destina ao raciocínio, à razão. Na novela de
suspense, o autor oculta certas informações não do leitor, mas da personagem. É o caso de uma criança que entra em casa despreocupadamente, quando o
leitor sabe que um louco armado com uma faca está atrás da porta, a sua espera. Neste caso, o apelo não é ao raciocínio, não é à razão, é à emoção.
Na série iniciada por A Droga da Obediência, procurei utilizar as duas técnicas. Há alguns
dados do enredo básico que levarão ao tal final-surpresa, mas há também muitos fatos perigosos conhecidos pelo leitor e desconhecidos pelas
personagens, de modo a criar o tal clima de suspense.
Quanto à forma, procurei usar dois aspectos básicos da técnica cinematográfica. Em primeiro lugar,
temos a estrutura em cenas justapostas, com cortes bruscos, bruscas entradas e retomadas de ação já a partir da ação anterior, sem perdas de tempo
com descrições, e flash-backs estruturados da mesma forma. Em segundo lugar, o foco narrativo, na terceira pessoa, explica a ação como se
fosse o olho único de uma câmera de cinema. O narrador só fotografa o que está exposto a esse olho único, a esse único ponto de vista. Assim,
ele não sabe tudo, ele não enxerga todos os ângulos. Um exemplo: o narrador descreve dois homens sentados na mesa de um restaurante. Um deles tem um
revólver, sob a mesa, apontado para o outro. Como a tomada de cena é frontal, o narrador não verá o revólver; para tanto, será necessário um
corte ou um travelling para debaixo da mesa.
Creio que o ponto de vista único de uma câmara cinematográfica é o mesmo de todos nós, de todo
mundo. Ninguém vê, ao mesmo tempo, mais do que um ângulo cinematográfico. Mas, tal como faço nesta série, todos vêem um só ângulo mas
imaginam os ângulos que não estão ao alcance de sua observação. É o caso do escuro. Uma criança tem medo do escuro porque, não podendo enxergar
nada, cria em sua imaginação perigos que poderiam estar ocultos pela escuridão. Tememos o escuro quando crianças, porque tememos o que nossa própria
imaginação elabora a partir do que os olhos não estão vendo.
Assim, nestes livros, eu não descrevo apenas o que a câmara vê; eu descrevo o que ela vê e o que
ela infere do que não vê, complementando o que ela desconhece. Ela (ou o narrador) infere o que não pode ver. A forma, não é, deste modo, uma
simples descrição como seria se eu me ativesse apenas ao olho único da câmara cinematográfica. Usando ainda a linguagem do cinema, seria o que
chamam de inner-shots, para configurar pensamento e introspecção.
As histórias são protagonizadas por cinco adolescentes normais, estudantes de uma escola de elite.
São extremamente corajosos, mas não são infalíveis. Eles erram, tropeçam, enganam-se o tempo todo, mas têm a capacidade de reconhecer os próprios
erros e procurar a solução por novos caminhos. Criados do modo como foram, esses cinco adolescentes - os Karas - conseguiram uma grande
identificação com os leitores.
Nesta série, acontecem algumas ações que podem ser
consideradas violentas. Minha intenção, porém, foi deixar todas as ações violentas para os antagonistas das histórias. As ações dos protagonistas
são sempre não-violentas, sempre baseadas na inteligência, na pertinácia, no amor, no trabalho. Desse modo, eu pretendi mostrar ao leitor que o
caminho da civilização não é violência dos Rambos, ou John Waynes.
Cavalgando o arco-íris (1984) - Editora Moderna
Mais respeito, eu sou criança! (1995) - Editora Moderna
Por enquanto eu sou pequeno (1994) - Editora Moderna
Pensando no tal dogma que afirma que "as crianças não
gostam de poesia", procurei fazer livrinhos com uma série de pequenas idéias e anedotas em versos, com temas sempre ligados à vida da criança: suas
surpresas, seus relacionamentos, suas esperanças.
Na colméia do inferno (1984) - Editora Moderna
Neste livro eu procurei uma narração mais visceral, com um foco narrativo quase nas entranhas do
personagem central: suas raivas, suas revoltas, suas idiossincrasias. A narrativa é linear, mas os acontecimentos misturam-se às emoções do
protagonista, formando um quadro duro, áspero, revoltado. A intenção foi justapor o tal conflito de gerações, mostrando-o como uma diferença
de pontos de vista acerca do mundo ditados pela evolução das necessidades da própria História (História da sociedade, não história-enredo).
Já fiz teatro no passado e isto faz com que a forma teatral cênica não se afaste de meu
pensamento. Assim, procurei utilizar essas técnicas no livro: veja-se o clima cênico do início do Capítulo Nha Nana. Os personagens são
também verborrágicos, como seria necessário no teatro, e procurei criar as falas de modo que elas funcionassem como falas de teatro, isto é, um
texto que daria certo se fosse lido em voz alta. A varanda, no texto, representa o estrado (chamado praticável) em teatro, para criar planos
que definam as desigualdades entre as pessoas: os reis, os senhores, sempre estarão sobre estes estrados; o povo, os outros, sempre estarão
ao rés-do-chão, submissos.
Durante a redação desse livro, surgiu um personagem, não planejado
anteriormente, que se agigantou e tomou o livro, forçando, inclusive, um desfecho que sequer me havia ocorrido. É o Velho Santinho, uma
imposição quase parapsicológica, que se desenvolveu, falando diretamente, sem que, ao reler o que havia escrito, eu mudasse uma palavra do que ele
dissera.
Malasaventuras - safadezas do Malasarte
(1985) - Editora Moderna
São seis anedotas famosas do Pedro Malasarte, contadas em
redondilhas. A intenção foi mostrar a gênese do tal jeitinho brasileiro: quando não há justiça rápida e barata para todos, os menos
favorecidos têm de encontrar um jeito de quebrar o galho, de usar o jeitinho brasileiro para resistir às injustiças.
Em suma: em um país civilizado, onde houvesse justiça para todos,
independentemente de sua classe social, um Pedro Malasarte não precisaria existir. E veja que este personagem existe em praticamente todas as
culturas camponesas em que o quadro de injustiça social pode ser historicamente encontrado: na Alemanha, ele é Till Eulenspiegel, na Espanha, Pedro
Urdemales e assim por diante.
O poeta e o cavaleiro (1998) - Editora FTD
Se Literatura fosse como carnaval e também concorresse aos
prêmios das categorias Luxo e Originalidade, este livro deveria receber, por seu foco narrativo, o prêmio Originalidade. Criei um narrador, na
primeira pessoa, que é apenas mais uma das vítimas de um vigarista que, com suas artimanhas, submete toda uma cidade medieval a seus caprichos.
Assim, ele não está entendendo aquilo que narra. O leitor tem de compreender a história apesar do que diz o tal personagem. Adorei trabalhar esta
idéia. Este livro procura também mostrar que a palavra tem força até mesmo para enganar os outros. O personagem vigarista fala difícil o
tempo todo, de modo a ser mal compreendido mas, ao mesmo tempo, de modo a ser temido e atingir seus objetivos desonestos.
O livro pretende mostrar o perigo de votarmos errado, de nos deixarmos envolver por discursos
floreados e promessas vãs de nossos políticos ou dos militares, que tomaram o poder em nosso País durante tanto tempo, às custas da ameaça de, no
alto do Corcovado, haver o dragão do comunismo, que a todos devoraria, a menos que nós, o povo brasileiro, concordássemos em entregar-lhes (aos
militares, à burguesia, às oligarquias rurais e às multinacionais), sem resistência, todo o poder, todo o exercício da justiça e toda a condução da
economia.
Durante duas décadas, o povo brasileiro concordou com
arrochos, com desmandos, com corrupção, com tortura, com assassinatos, com cassações, aceitando que aquele talvez fosse um mal menor frente
à grande ameaça do comunismo, que certamente estaria a ponto de tomar o poder no Brasil e promover arrochos, desmandos, corrupção, tortura,
assassinatos e cassações.
A marca de uma lágrima (1986) - Editora
Moderna
É uma recriação de Cyrano de Bergerac, de Edmond
Rostand. A idéia romântica do autor francês é muito boa, mas sua forma, atualmente, é rebuscada demais para uma leitura popular. Usei apenas a idéia
central das cartas escritas secretamente, mas criei outra história. Há, porém, equivalências: a guerra, em Cyrano, virou o crime, em A
marca...; a cena do balcão é feita ao telefone; a famosa fala do nariz está no final, quando Isabel desiste de Cristiano.
Por que eu transformei uma grande personagem masculina em uma personagem feminina? Porque, se eu
usasse um rapaz, correria o risco de fazer autobiografia; lançando mão de uma menina, vi-me obrigado a pesquisar, a sentir fora da minha pele, a
imaginar o que pensa alguém que eu nunca poderia encarnar. E não é essa a função de um escritor?
Para este livro, desde o título, adotei descaradamente a forma folhetim por duas razões.
Primeiro, porque este é o estilo de Rostand, o autor de Cyrano, e segundo porque eu creio que esta forma apaixonada, radical, melodramática
de comunicação ajuda muito a conquistar as jovens leitoras, principalmente aquelas pouco afeitas ao hábito de ler. E, como estas são a maioria...
A marca de uma lágrima tem um interessante recurso literário que, até agora, pelo menos que
eu saiba, ninguém percebeu. Eu pretendi criar uma personagem feminina que descobre bastar-se a si mesma, descobre poder realizar-se e ser feliz sem
que a felicidade dependa única e exclusivamente do apêndice masculino, tomando-se apêndice em seus dois sentidos, o social e o sexual.
Não importa o que eu penso sobre isso, importa a coerência interna da personagem Isabel, uma
cabeça superior, realizadora, corajosa e independente. Neste livro, é possível ver que, no transcorrer do enredo, a lógica aponta para uma solução,
se não solitária, pelo menos de grande independência em relação ao sexo oposto. Assim, como pode ser visto no desfecho dramático do enredo, há um
rompimento moderno do estilo folhetinesco que eu adotei para este livro.
Procurei, com o final racionalizante, uma saída a la Brecht, com a quebra de clima e tudo o
mais. O tal distanciamento brechtiano. Em seguida, baseando-me no mesmo Brecht, usei a solução genialmente bolada por ele em A ópera dos
três vinténs.
Esta peça termina de modo lógico, racional, com o enforcamento de Mac Navalha. No momento em que o
carrasco vai puxar a corda, o Autor interrompe a peça e faz um dos personagens ir à boca-de-cena e explicar para a platéia que o Autor sabe que as
pessoas não vêm ao teatro para ver finais infelizes e que gostam de voltar para casa com a alma lavada pela catarse. Eis então que, pensando nisso,
o Autor preparou um outro final.
Nesse instante, a peça assume um clima operístico e entra em cena um mensageiro com um perdão
real, Mac Navalha abraça sua namorada, é perdoado por todos e os espectadores saem do teatro com uma sensação de terem sido cinicamente enganados e
manipulados pelo Autor em sua (deles) expectativa estética convencional. Desse modo, criei também um segundo final para A marca de uma lágrima,
operístico, novelesco, falso, no melhor estilo de M. Delly.
Parece, felizmente, que as leitoras entenderam estas
boas intenções, ou encontraram outras qualidades aqui não indigitadas. O livro é um grande sucesso de vendas. A marca... foi também bem
acolhido pela crítica, recebendo o Prêmio A.P.C.A. como O melhor livro juvenil de 1986.
O fantástico mistério de Feiurinha
(1986) - Editora FTD
Este livro começou a nascer sem o personagem que o
intitula. Minha idéia era reviver as histórias de fadas, discutindo as grandes heroínas após do fim de suas histórias, de modo a mostrar a
importância desse tipo de literatura na formação de cada um de nós. Aos poucos, porém, a personagem Feiurinha apareceu, impôs-se e... tomou o
livro! Mais ou menos como o que aconteceu com o Velho Santinho em Na colméia do inferno.
De especial mesmo, eu creio que há neste livro três aspectos. Em primeiro lugar está sua
estrutura, como se ele fosse um livro antes do livro, com sua organização em capítulos que vêm antes do primeiro capítulo. Em seguida, temos a
fábula de Feiurinha, que eu montei com o máximo de clichês extraídos de todas as histórias da carochinha: bruxas, príncipe, transformações,
heroína pobre, linda e infeliz, a idéia bíblica do Rei Salomão etc.
E, por último, está a discussão da importância do leitor em relação à
Literatura. Como eu disse, um livro não existe se não houver leitores para ele; um autor nada é, se não houver pessoas dispostas a ler o que ele
escreve. Feiurinha é um sucesso de público e de crítica, tendo recebido o Prêmio Jabuti de 1986.
Gente de estimação (1986) - Editora Ática
Neste trabalho, há duas intenções a destacar. A primeira
foi a decisão de criar um foco narrativo tradicional, linear, onisciente ao extremo, pois ele informa sobre o passado das personagens, sobre suas
intenções e até sobre fatos sobrenaturais.
Ao narrar uma história de modo tão tradicional, eu pretendi afastar qualquer distração formal do
leitor, de modo a fazer com que ele se preocupasse apenas em meditar sobre o conteúdo central do livro. Nesse ponto, entra a segunda intenção. O
texto está quase que totalmente metrificado de acordo com a música da nossa língua, de modo que a leitura possa fluir suavemente, ainda com o
intuito de não distrair o leitor do tema central.
Gente de estimação, Feiurinha e O poeta e o cavaleiro
foram escritos um após o outro, em 1984, sendo que suas diferentes formas e focos narrativos estavam planejados de antemão, quase como se eu
quisesse compará-los depois e descobrir qual a melhor forma de narrar uma história para jovens. Parece que, pela aceitação comercial e de crítica,
Feiurinha ganhou longe ...
Agora estou sozinha... (1988) - Editora
Moderna
Todo jovem ator (e eu fui um deles) sonha em, um dia,
fazer o papel de Cyrano de Bergerac e o de Hamlet. Assim, eu não poderia deixar de fazer uma recriação juvenil de Hamlet como eu fiz a de Cyrano.
Hamlet, lido ao contrário, dá Telmah. Foi assim que nasceu mais esta minha heroína. O título do livro, inclusive, é o começo do segundo
mais famoso monólogo de Hamlet: "now I'm alone".
Ao contrário de A marca..., onde eu praticamente só usei a idéia central de Cyrano, em
Agora... eu usei o máximo do texto de Shakespeare que pude. As falas de Hamlet são belíssimas, suas idéias realmente resistiram ao tempo e a
peça é, até hoje, considerada como o mais perfeito texto de teatro já produzido (com perdão dos gregos...). Assim, é possível encontrar em
Agora..., o ser ou não ser, o há algo de podre no Reino da Dinamarca e tudo o mais que até já entrou para nossa linguagem
cotidiana.
Ao inverter o sexo da personagem, deparei-me com algumas dificuldades, e a principal delas foi a
personagem Ofélia. A namorada de Hamlet é uma personagem frágil, ingênua, que se deixa morrer no rio enlouquecida pelos acontecimentos. Na
transposição, ficaria difícil criar um namorado para Telmah que fosse frágil, ingênuo e suicida. O remédio foi criar Tiago, um namorado com algumas
das características de Horácio, amigo de Hamlet, e criar Filhinha, a velha cadelinha de Telmah, que morre de fome quando é afastada de sua dona.
Quase tudo de Ofélia está em Filhinha.
Shakespeare aproveita, na cena em que o personagem fala
com os atores, para registrar seu modo particular de ver a arte de representar. Na transposição, fiz com que Telmah dissesse o meu modo de ver a
arte de ler.
O mistério da fábrica de livros (1988) -
Hamburg Donnelley Gráfica e Editora
Este livro nasceu como uma encomenda do dono de uma grande
gráfica de São Paulo. A idéia dele era fazer um livro que mostrasse às crianças os processos editoriais, industriais e gráficos que estão envolvidos
nos livros que elas lêem. Assim, é mais um trabalho didático que literário. Foi escrito com clichês do gênero, o que fez com que o livro fosse muito
bem aceito pelas crianças. Além disso, a curiosidade de conhecer-se o processo industrial de um livro talvez tenha também ajudado para seu sucesso.
A hora da verdade (1998) - Editora Ática
Mais uma vez seguindo minha paixão por Shakespeare e por
Machado de Assis, juntei num mesmo texto Otelo e Dom Casmurro, atualizando as histórias para a atualidade e citando muitos trechos das
duas obras. |