Imagem: reprodução da página 8 da revista Panoplia, de janeiro/março de 1918
Vicente de Carvalho
João Pinto da Silva
O coração de Musset na caixa toráxica de Heredia... - Pontos de contato entre a Natureza e a criatura humana. - O amor doloroso: a "Menina e Moça" e a "Rosa, rosa de amor..." - A beleza simples e a tristeza suave. - O poeta e o prosador.
I
Aquele magnífico ideal de poesia que José Enrique Rodó imaginou, superiormente: "cincelar con el cincel de Heredia la carne viva de Musset", - o talento fulgurante de Vicente de Carvalho o está realizando, nos limites do possível, é claro, com uma felicidade incomparável, sem exemplo entre nós.
Através dos vasos sonoros das suas estrofes impecáveis, passa, numa circulação alta e serena, o sangue irreal das emoções mais prestigiosas. Imagine-se o coração do lírico delicadíssimo das Noites, a bater, maravilhosamente, dentro da caixa toráxica do burilador radioso dos Troféus...
Os versos de Vicente de Carvalho, rutilantes, num apuro inexcedível de forma, falam sempre às partes ultrasensíveis da nossa alma. A sua leitura deixa no cérebro a mais doce impressão; mas é principalmente sobre a sede clássica do sentimento, sobre o dínamo cardíaco, que ela exerce a sua maior influência.
Vicente de Carvalho possui, por isso, o segredo transfigurador de despertar em nós, a propósito de tudo, as emoções profundas. Quando estaca diante de uma paisagem, e a transporta para os seus versos, essa paisagem entra a viver uma vida humana; começamos a sentir que há entre nós e ela afinidades recônditas, ignoto parentesco, estranhas ligações subterrâneas... A alma das árvores - esparsa, ondeante, na folhagem, ou na névoa, ou no vento, que a faz sofrer -, a alma das árvores é bem uma irmã rudimentar da nossa alma; é, talvez, a ancestral da nossa alma...
A atitude de Vicente de Carvalho, diante do Mar, é típica.
Veja-se como ele no-lo apresenta: amoroso e sofredor, com músculos e nervos em cada onda; com uma voz apaixonada e triste em cada rugido, sob os temporais, de inverno, ou em cada palpitação mansa, dolente, sob a luz vacilante e apaziguante dos crepúsculos, no estio.
Euclides da Cunha, chegando, por outro caminho, a esta mesma conclusão, verificou, com olhos mais de homem de ciência do que de artista, que os gestos e as intenções atribuídas ao Mar pela poesia de Vicente de Carvalho estão rigorosamente de acordo com a última palavra, com as derradeiras observações dos naturalistas.
É um detalhe secundário. Vale dizer: sem a importância que o prosador possante do Sertões lhe procurou dar.
Ainda que lhe faltasse, no caso, o apoio da palavra oracular dos sábios, o poeta conseguiria o mesmo efeito, com o prestígio, com o magnetismo do seu poder de idealização, com o sopro forte de sentimento cósmico que anima os seus versos, irmanando a criatura humana aos elementos, à Natureza toda...
A propósito do vigoroso prefácio escrito por Euclides, para o Poemas e canções, acode-me à memória esta sugestiva lição de estética do deslumbrante John Ruskin: "Du moment que nous commençons de considérer une creature comme subordonnée à quelque dessein en dehors d'elle, quelque chose du sens de la beauté organique est perdu. Ainsi, lorsqu'on nous dit que les feuilles d'une plante sont occupés a decomposer de l'acide carbonique et à nous préparer de l'oxygéne, nous commençons á la considérer avec quelque espéce d'indifference, comme si c'était un gazométre..."
Ora, Eclides, quando insiste nas suas afirmativas de que os poemas de Vicente de Carvalho exprimem observações exatíssimas, demonstráveis até matematicamente, e de que, mesmo mergulhados na água transparente e azul da fantasia, têm o endosso decisivo dos cientistas, procede, mais ou menos, como quem, diante duma árvore, ao invés de gozar o espetáculo que as folhas desta lhe oferecessem, nos chamasse a atenção, deslumbrado, para a função prática que os vegetais exercem na decomposição do óxido carbônico etc....
Se não lhes tira, nem lhes pode tirar, uma parcela, mínima embora, de beleza, pelo menos nos obriga a olvidar, m parte, o motivo gerador, o espírito mesmo do poema. Porque, quando o poeta, por exemplo, pinta magistralmente a larga paixão romântica do Oceano pela "indiferente e fria" Lua, pouco se lhe dá que ao imaginado idílio imprima um undo de verdade o anseio, quase humano, da água do Mar a subir e a descer, na oscilação rítmica das marés, em noites de plenilúnio. Na impossível aspiração amorosa que Vicente de Carvalho empresta ao Mar, e que vale, como Arte, é a poesia triste do amor infeliz, simbolizado nela...
O sonho do Mar diante da formosura longínqua e gélida da Lua é, numa gigantesca ampliação, sob forma alegórica, o nosso próprio sonho em face da felicidade que não podemos alcançar, que não alcançaremos nunca: a felicidade que apenas se entremostra e foge sempre... Aquela doce e vaga felicidade, enfim, que ilumina, difusamente, com um reflexo, as primeiras páginas da Rosa, rosa de amor... e logo se converte na mais comovedora das amarguras...
II
Com o Rosa, rosa de amor..., o nosso lirismo romântico-amoroso toma um novo aspecto, talvez o mais interessante e, por certo, o mais suave de todos.
O que distingue Vicente de Carvalho, aí, é principalmente, a sua sensibilidade finíssima e a sua imponderável delicadeza de expressão. Não há nele um vestígio sequer do veemente erotismo, tão tropical, tão nosso, de resto, que faz de muitos, da maior parte dos versos de Olavo Bilac, por exemplo, como que apelos de Faunos insaciáveis...
Os seus cantos de amor não se revestem, nunca, de exuberâncias vocabulares, de referências atrevidas, a seios e braços nus, nem de escabrosas metáforas provocantes.
Vicente de Carvalho, neste livro, é um irmão retardatário de Bernardim Ribeiro. Esta é, sem dúvida, a afirmativa que melhor lhe define o temperamento. Surpreendente, em verdade, o laço de parentesco espiritual que se estabelece, através de quase quatro séculos, com uma força irresistível, entre os períodos comovidos da Menina e Moça e as estrofes tão emocionantemente sonoras da Rosa, rosa de amor...
Pela profunda e leve candidez da concepção; pela espiritualidade por assim dizer ambiente, nas suas páginas; pela ingênua, prestigiosa franqueza que o torna transparente e pela asa harmoniosa de sentimento que lhe dá vida; pelos seus traços mais distintivos, em suma, o Rosa, rosa de amor... não é da idade, nem do lugar em que surgiu, com o esplendor excepcional de um contraste...
É até certo ponto - pode-se afirmar sem impropriedade -, um fenômeno e atavismo literário. Nele, Vicente de Carvalho é menos um brasileiro do que um português, mas português antigo, português contemporâneo de D. Manuel, o Venturoso.
Para completar a ilusão dessa contemporaneidade maravilhosa, o artista admirável tem ainda a sua grande, a sua viva predileção pelo mar, não só pelo mar em si mesmo, como pelo que o mar vagamente e irresistivelmente promete, de imprevisto, de glorioso e de heróico; os descobrimentos, as conquistas, os naufrágios, a morte entre ondas inéditas e altas... A sua alma, nesse particular, é a de um lusíada camoneano, daqueles formidáveis beluários (N.E.: homens que, nos anfiteatros romanos, combatiam com os animais) de vagalhões, que não se apavoram nem mesmo diante da "disforme e grandíssima estatura" do Adamastor...
Singularmente imunizada, a inspiração de Vicente de Carvalho funcionou insensível às influências do meio e do momento. Foi como se, ao compor o poema, se tivesse transferido, pelo milagre do sentimento, numa regressão fantástica, para a época a que pertence o seu espírito e de onde voltou trazendo, cristalizado em versos, o reflexo d'algumas das tendências românticas mais adoráveis.
Rosa, rosa de amor... não é, pois, o que se costuma chamar um livro atual. Está mesmo duplamente deslocado, nesta zona e neste século... Mas, isso não o prejudica em coisa alguma. Pelo contrário: dá-lhe até um acréscimo inesperado de valor.
Vive, plenamente, a vida magnífica da beleza pura; a sua inatualidade típica é o melhor elogio da delicadeza de emoção do grante poeta paulista.
O amor, ideado ou vivido, geralmente só produz obras d'arte notáveis, quando é desgraçado, quando sofre. Isto ganhou, já, a intangibilidade hierática de um axioma. Era, talvez, a intuição dessa lei que fazia a apaixonada e pecadora reclusa do Convento da Conceição, na Beja, escrever ao fútil senhor de Chamilly, há duzentos e tantos anos, este pedido alucinado: "Ama-me constantemente e faze-me padecer ainda maiores males..."
No radioso romance de Gabrielle d'Annunzio, Forse che si, forse che non, uma das personagens principais, Isabella Inghirami, cujo "viso era il viso stesso dell'amore, malato d'angoscia, simile a un fuoco che sotto la piogia svenga e non si spenga", - Isabella reproduz, como um eco, a recomendação da freira portuguesa: "L'amore ch'io amo, é quello che non si stanca di ripetere: fammi piú male, fammi sempre piú male!"
O amor feliz é uma banalidade burguesa. Nivela-se à chatice cotidiana. É, por certo, o supremo ideal da vida doméstica. Mas é quase de todo inútil para a Arte.
Nas literaturas, principalmente, a felicidade amorosa apenas ocupa os pontos subalternos. Nos vértices, brilham, duma luz triste, mas eterna, dolorosamente empolgantes, todos os que, como Francesca da Rimini, na deslumbradora epopeia dantesca, podem dizer que tingem o mundo com as suas lágrimas e com o seu sangue.
Noi che tignemmo il mondo de sanguigno...
Vicente de Carvalho, nesse sentido, não pensa, não parece pensar de outro modo.
Por isso, na sua obra, em prosa, ou em verso, o Amor, arqueiro formidável, se não chega a produzir aquele estranho desejo - il desiderio de morir -, de que trata o amargurado Giacomo Leopardi, é sempre, entretanto, mais ou menos, um sinônimo eufêmico de sofrimento.
O amor doloroso conta nas letras portuguesas, d'aquém e d'além Atlântico, numerosas composições de mérito inconfundível.
Afora outras, menos célebres, menos conhecidas, há o episódio clássico de Ignez de Castro, a "linda Ignez" que depois de morta foi rainha, e cujo ruidoso infortúnio espalha tintas sutilíssimas de doçura e de piedade por entre as narrativas heróicas do canto terceiro dos Lusíadas. Há o Eurico, do prodigioso Alexandre Herculano. Há o soluçante Amor de perdição, de Camillo Castello Branco. Há o Constança, poema, em versos brancos, de Eugenio de Castro, e que apaga, quase, aquela auréola transfiguradora posta em torno da "colo de garça", a trágica amante de D. Pedro, pelos decassílabos perpétuos de Camões.
Nenhuma dessas, porém, nem uma só, consegue despertar o grau de emoção que se evola (é aqui o único vocábulo próprio) que se evola da Menina e Moça, das cinco cartas de amor de Soror Marianna do Alcoforado, e desta quase imaterial, desta triste Rosa, rosa de amor..., que, indiscutivelmente, encerra muito dos melhores versos passionais até agora escritos em nossa língua e alguns dos mais finos, mais fascinantes da literatura universal.
III
Todas as outras poesias de Vicente de Carvalho apresentam, no fundo, os mesmos caracteres distintivos desse formosíssimo poema: a tristeza suave; a beleza simples e fulcra; o amor como fonte de desventuras; um desencantamento agridoce, ou desilusão tranquila - vago ceticismo, em todo caso, que floresce, invariavelmente, num luminoso sorriso de resignação e de bondade.
Nos seus deliciosos versos líricos, há sempre como que o traço esmaecido de uma novela sentimental: a paixão por uma mulher que já é de outro e que nem mesmo o escuta. Essa indiferença, porém, ele próprio a exalta e abençoa, com uma abnegação que nos mostra a beleza da sua alma, pelo menos, tão grande e pura como a beleza dos seus versos:
"Alma serena e casta que eu persigo,
com o meu sonho de amor e de pecado,
abençoado seja, abençoado
o rigor que te salva e é meu castigo.
Assim desvies sempre do meu lado
Os teus olhos; nem ouças o que eu digo;
e assim possa morrer, morrer comigo,
este amor criminoso e condenado.
Sê sempre pura! Eu com denodo enjeito
uma ventura obtida com teu dano,
bem meu que de teus males fosse feito".
Assim penso, assim quero, assim me engano,
Como se não sentisse que em meu peito
pulsa o covarde coração humano.
E, no entanto, todo o seu ideal de felicidade reside nesse amor inatingível,
Beijo dos lábios da mulher amada,
O único bem és tu. Nem há mais nada.
E tu és d'outro e nunca serás meu...
É assim desconsoladamente que termina o "Velho tema", em cujas várias composições Vicente de Carvalho, como em todas as outras, numa forma simples, embora perfeita, e com um vocabulário fácil, translúcido e pouco extenso, logra exprimir os pensamentos mais altos e mais profundos, sobre a Vida, sobre o Amor, sobre a impossibilidade da Ventura... Principalmente sobre a impossibilidade da Ventura, "árvore maravilhosa", que
Existe sim, mas nós não a alcançamos,
porque está sempre apenas onde a pomos
e nunca a pomos onde nós estamos...
Vicente de Carvalho é sempre o mesmo artista e a mesma alma. Como em todos os poetas de personalidade definida, a sua obra é duma unidade absoluta. É um bloco, inteiriço e radioso.
Não há repetições monótonas de ritmos, nem de imagens. Há variações inéditas em torno de grandes ideais e de grandes motivos, que se comunicam entre si, ora por força das suas próprias virtudes essenciais, ora pelo prestígio irresistível do artista.
A Vida e o Amor ocupam a maior parte dos seus volumes. Mas, nem o Amor, nem a Vida, aparecem neles isoladamente. Vida e Amor formam um corpo único, uma só coisa, como que um todo mitológico de Centauro. É a Vida submetida ao império despótico do Amor...
"Velho tema!" Velho, não há dúvida, mas "superlativamente humano", como o diria o profeta da Religião da eleza: velho, mas eterno e, como todas as coias eternas, iluminado por um raio de juventude permanente, porque é sempre de rigorosa atualidade.
Depois, o que influi, em literatura, como na Arte, em geral, não é propriamente a novidade, maior ou menor, dos temas. É a sensação de beleza que o artista consegue arrancar deles e transmitir aos seus leitores. A novidade não está no assunto. Está na individualidade do artista, isto é: na maneira especial como o tema se nos apresenta e se desenvolve, através do temperamento do artista.
Algumas das suas páginas, quase todas sem favor, sem sombra de exagero, pela profundeza dos conceitos, pela simplicidade suprema das imagens e dos desfechos, em nada são inferiorse às canções de maior fama do Romanceiro português e a certos "l'eder" célebres de Goethe e de Heine.
A muitos há de parecer petulantmente audaciosa, irritante mesmo, essa afirmativa, de tão largas dimensões... Quem quer que tenha, entretanto, um razoável conhecimento de literatura e seja capaz de um julgamento autônomo, não verá nela, lidos os vários pedaços transcritos em seguida, senão uma verdade inatacável, expressa lealmente e conscienciosamente.
Do epílogo do "Velho tema":
"Lembra!", diz-me o passado. "Eu sou a aurora
e a primavera, o olhar que se enamora
de quanto vê pelo caminho em flor;
para o teu coração cansado e triste
é recordar-me o único bem que existe...
Eu sou a mocidade, eu sou o amor".
"Vive!", diz-me o presente. "Alma suicida,
louca, não peças à árvore da vida
Mais que os amargos frutos que ela tem;
deixa a saudade e foge da esperança,
faz do pouco que teu braço alcança
o teu mesquinho, o teu único bem".
"Sonha!", diz-me o futuro: "o sonho é tudo,
eu sobre as tuas pálpebras sacudo
a poeira da ilusão!... sonha, e bendiz!
Eu sou o único bem porque te engano,
e o desgraçado coração humano,
só com o que não possui é que é feliz".
D'"A Voz do sino":
Consolador de tristezas!
Semeador de esperanças!
Aqui nestas redondezas
não há vida tão bonanças
nem casebre tão remoto
onde quanto o sino diz
não abençoe um devoto,
não console um infeliz...
Afirmas à angústia surda
do mísero tabaréu
que o brejo onde ele chafurda
- é um caminho para o céu.
A cada pobre praiano
que, na sua dura lida
de afrontar o largo oceano
vive de arriscar a vida,
tu, consoladoramente,
falas para lhe lembrar,
que há quem reze por a gente
- e há céu por cima do mar...
E estas admiráveis "Folhas soltas":
Ontem, hoje, amanhã... Como simbolizar
o passado, o presente, o futuro - as três fases
da vida? com três frases
de sentido corrente e de uso mais vulgar:
- Uma saudade; um grande esforço; uma esperança.
Ou antes, e talvez melhor, espondo-as numa
tríplice imagem que resume a vida inteira:
- Um rosto, luminoso, de criança;
Duas mãos perseguindo uma bola de espuma;
E rindo-se (de que? de tudo) uma caveira.
E estes versos a uma incógnita "Mimi":
Vais-te, a sorrir... Que mais queres?
Fico, a chorar... Que mais posso?
Levas tudo que era nosso:
tua mocidade em flor...
Pois que te vais tão contente
e me deixas tão sem nada,
feliz de ti, minha amada!
Coitado do nosso amor!
Mas tu que partes sorrindo
talvez algum dia, quando
voltares, voltes chorando
tua mocidade em flor...
Que encontrarás, quando voltes
Talvez pouco... talvez nada...
Pobre de ti, minha amada!
Coitado do nosso amor!
E esta deliciosa quintilha:
Tu, moça; eu, quase velho... Entre nós dois, que horror!
Vinte anos de distância. Entre nós dois, mais nada.
E hoje, pensando em ti, pus-me a sonhar de amor
somente porque vi por acaso, na estrada,
sobre um muro em ruína, uma roseira em flor...
Vede esta quadra das "Cantigas praianas" - cantigas em cujo ritmo suavíssimo a humana mágoa tão bem se mistura à imensa tristeza oceânica, tal como nas melancólicas "Palavras ao Mar":
É tão pouco o que desejo,
mas é tudo o que me falta,
só porque a flor do teu beijo
pende de rama tão alta...
E estas oitavas, em leves redondilhas musicais:
Tinha momentos amargos
teu amor, que era tão doce...
Nem posso dizer que fosses
tudo céu, naquele céu:
Deu-me carinhos e zelos,
gostos e desgostos... Contudo,
tenho saudade de tudo,
de tudo que ele me deu.
Tu eras uma roseira
que eu topara no caminho...
Quem não perdoa um espinho
pelos encantos da flor?
Depois... caprichos, arrufos,
eram apenas o ensejo
de mais sabor em teu beijo
e mais viço em meu amor.
Tem esse amor tão grande,
tão forte, tão exclusivo,
que me tornava cativo
dos teus caprichos sem lei;
Tentei do seio arrancá-lo...
Mas vejo, por minhas penas,
que ele não foi, foi apenas
meu coração que arranquei.
As "Cantigas praianas", tão límpidas, todas, e tão harmoniosas, terminam assim:
Vida, que és o dia de hoje,
o bem que de ti se alcança
ou passa porque nos foge,
ou passa porque nos cansa.
Ainda mesmo quando ocorre
na vida das mais felizes,
o prazer, floresce e morre,
a mágoa deita raízes.
Tem alicerces de areia
o que constróis cada dia,
vida que corres tão cheia
para a morte tão vazia.
Haverá queixa mais justa
que a do feliz que se queixa?
Ai, o bem que menos custa
custa a saudade que deixa.
E o "Deslumbramento"?
Quanto durou essa ilusão perdida,
esse amor, esse encanto, essa alvorada?
Dias ou meses, não o sei, querida:
Foi um clarão que me passou na vida,
sei que fulgiu, sei que passou, mais nada.
No absorto enlevo desse amor tão raro
no êxtase dessa adoração radiosa,
Passava o tempo? Nunca pus reparo:
A madrugada era um botão de rosa
desabrochando em teu sorriso claro;
Havia noites? Ainda agora penso
no olhar de uns olhos negros, céu imenso
de estio em noite sonhadora e calma,
céu luminoso, a palpitar, suspenso
sobre essa terra em flor que era a minh'alma.
E hoje, que para toda a eternidade,
eu despertei do sonho de um momento,
Hoje, na sombra, penso com saudade
que o teu encanto era uma claridade
e o meu amor foi um deslumbramento.
Nesta altura, é mister que tenham um termo, afinal, as citações... Vai escasseando o espaço. Mal posso sofrear o desejo de transcrever outras poesias, tão belas como essas. Quantos versos extraordinariamente encantadores, em verdade, eu poderia extrair ainda da "Rosa, rosa de amor...", das "Palavras ao Mar", do "Pequenino morto", de todos os demais capítulos desse grande livro, livro luminoso e consolador, que são os "Poemas e canções"!
Entre as suas líricas, assim cheias de filigranas sentimentais, "vestidas de alma", como a heroína d'annunziana, refulge, num constraste, o grande quadro, vigoroso e épico, do "Fugindo ao cativeiro".
Naqueles alexandrinos e decassílabos vibrantes, com sonoridade de bronze, couberam, ao mesmo tempo, numa descrição inesquecível, um pedaço da Serra do Mar e a interpretação dum ideal titânico de liberdade, que, pela noite fria, entre as escarpas e árvores hostis, arrasta, dramaticamente, um punhado de escravos foragidos - farrapos de criaturas viventes.
O "Fugindo ao cativeiro", relampagueante, a espaços, em visões trágicas, sob uma rajada de patético heroísmo, com estremecimentos de grande vitalidade no ritmo vário das estrofes -, essa epopeia, que é a glorificação de um "Leonidas maltrapilho", garantiria, sem dúvida, por si só, a inclusão de Vicente de Carvalho no círculo da figuras máximas da nossa liberatura, se outras composições, outros títulos, maiores ainda à nossa admiração incondicional, já não o tivessem colocado ao nível dos mais belos poetas, de todos os tempos, da língua portuguesa.
IV
Foi Geoffroy-Saint-Hilaire quem descobriu, ou, pelo menos, quem vulgarizou a lei do equilíbrio orgânico, segundo a qual, nos animais, ao desenvolvimento excepcional de um órgão corresponde o enfraquecimento de um dos órgãos opostos. Assim - na síntese de George Brandés -, as aves de asas muito fortes não sabem correr; as de patas muito resistentes não sabem voar.
Procurando aplicar essa lei na crítica sociológica, Hypolito Taine escreveu, no prefácio célebre da segunda edição dos seus Essais de critique et d'histoire: "Os historiadores podem constatar, igualmente, que o desenvolvimento extraordinário de uma faculdade, como a aptidão geral nas raças germânicas, ou a aptidão metafísica e religiosa entre os hindus, acarreta, nas mesmas raças, o enfraquecimento das suas faculdades inversas".
Essa foi uma das ilusões de Taine, ao construir o seu hoje tão malsinado sistema de crítica histórica e literária. A lei do "balancement organique" é uma verdade bem relativa, na história natural. A experiência taineana veio provar que, na história dos povos, ela é mais relativa ainda.
A sua aplicação na análise dos artistas, através das suas obras, é, porém, até certo ponto, possível, admissível... Num manejador de palavras, por exemplo, o desenvolvimento singular de uma aptidão atrofia a aptidão mais ou menos antípoda. Da mesma forma que o pássaro, habituado às longas viagens aéreas, só dificilmente pode fazer uso dos seus órgãos de locomoção terrestre, o poeta, afeito ao metro e às rimas - os seus instrumentos de voo -, é um mau prosador, traindo no estilo vacilante, arrastado, as consequências do abuso sistemático das asas...
Ainda aí, entretanto, essa lei - como todas as leis, de resto - seria perfurada por inúmeras exceções.
É inútil, por supérflua, a enumeração, aqui, dos homens de letras que foram, simultaneamente, poetas magníficos e magníficos prosadores. Dentre os nossos melhores profissionais do verso, é costume citar Olavo Bilac como estando nesse caso, e citar Cruz e Souza como incluído no caso contrário.
Parece-me que, como exceção à lei do "equilíbrio orgânico" adaptada à crítica literária, Vicente de Carvalho pode ser lembrado, também, com uma dose grande de justiça. O glorioso poeta é, rigorosamente, um vibrante e brilhante prosador. Leiam-se as suas Páginas soltas. Há, ali, trechos em prosa de largo fôlego e extraordinário fulgor.
Deixemos de parte as suas crônicas, e os seus artigos de jornal, e os seus esboços de crítica de Arte. Detenhamo-nos somente diante dos seus trabalhos de novelista. As suas páginas nesse gênero são todas admiráveis, tanto na urdidura sugestiva do entrecho, quanto na roupagem fraseológica. No interior e na superfície, o escritor soube dar-lhes uma vida intensa, num realismo sadio, palpitante de emoção.
Vicente de Carvalho é um fino "conteur", de espontânea singeleza e aguda penetração psicológica. Conduz sempre superiormente as suas personagens, cujas entradas e saídas, no cenário da novela, são sempre oportunas; em cujos diálogos há a maior naturalidade, e cujos hábitos, paixões, intuitos, atos consumados, ou atos em projeto, aparecem sempre com uma nitidez absoluta, em sucessões lógicas, até o desenlace impressionante.
Para documentar esse juízo, basta recordar aqui o "Em roda do fogo", com o seu cunho sobriamente regional, e a sua linguagem expressiva, pitoresca, e o "frisson" que nos vem da movimentada narração de um episódio meio realidade, meio lenda, porém de grande efeito trágico.
O "Selvagem", igualmente, tem lances dramáticos que empolgam, como a brusca resolução daquele pobre tarimbeiro que, depois de cinco anos de luta e sangue, no Paraguai, ao voltar, uma tarde, à sua aldeia, só encontra, para vingar o seu imenso amor desiludido, o tremendo, o desesperado recurso de assumir, com orgulho, a responsabilidade de um assassínio cometido por outrem.
Também o "Humildes" possui algumas cenas esplêndidas, pelo colorido das descrições e, com especialidade, pela paixão sem raias de Faustino, o misérrimo praiano, que, numa de suas atitudes de amoroso incompreendido, sobre o "Candieiro", diante do Atlântico que cresce, cresce, e ameaça submergir o rochedo, lembra parcialmente uma das últimas passagens dos "Trabalhadores do Mar": quando Gilliatt, imóvel sobre o "Gil-Holm-Ur", deixa que a água da maré montante o sufoque, sem a ver, sem a sentir, porque os olhos e o pensamento ele os tem fixos no ponto do horizonte por onde desapareceu, com Déruchette nos braços de outro, toda a sua enorme esperança de felicidade...
Não é, porém, a maneira ciclópica de Victor Hugo que Vicente de Carvalho evoca, como "conteur". Os seus contos, transbordantes, sempre, de emoção, fazem pensar, de preferência, em Fialho de Almeida: são como de um Fialho, pintor de marinhas, que tivesse vivido longo tempo, não entre os camponeses, na monotonia dos trabalhos agrícolas, mas entre pescadores, sob a atração maravilhosa do Oceano...
Imagem: reprodução parcial da capa da revista Panoplia de janeiro/março de 1918
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