A Lua - Ano 1/nº 7 - CHEIA - fevereiro de 1910 - página 1*:
Imagem: reprodução da capa de A Lua número 7
Vicente de Carvalho - Olhando o Mar (dos Versos da Mocidade)
(N. E.: note-se as diferenças em alguns versos para a versão publicada em livro em 1912)
Anoitecera apenas.
O céu azul cobrira-se de estrelas,
E a cismadora lua em meio delas
Vinha, como uma rosa entre açucenas.
Estávamos em frente
Do mar, que apenas ondulava; fraca,
De manso, pela areia, a alva ressaca
Vinha e voltava preguiçosamente...
Ela, sobre o meu ombro
Pondo a mão, e em meus olhos pondo o olhar,
Disse-me: "Causa o mais estranho assombro
A tristeza da noite sobre o mar.
"Abre-nos asas na alma,
Leva-a por cismas, tonta e deslumbrada,
Ver sobre o abismo do mar largo a calma
Da imensa noite, límpida e estrelada.
"Dorme a praia ao relento,
Beija-a de leve o mar que arfa ao seu lado,
E em cima resplandece o firmamento
Como o dossel de um leito de noivado.
"Tudo tranquilo e doce,
Tudo tão calmo, a nos fazer supor
Que o mundo inteiro talvez mais não fosse
Que um ninho feito para o nosso amor...
"No entanto, basta um pouco
De vento: o céu se enturva, o mar se alteia,
E sucede ao marulho o grito rouco
Dos vagalhões torcendo-se na areia.
"Mesmo tranquilo, assombra
O mar: finge-se manso, enternecido,
Mas, dentro dele, embosca-se na sombra
um coração raivoso, de bandido.
"Apavora e entristece
Mesmo cantando ao luar, meigo e gentil:
A cólera se esconde dentro desse
Repouso, como as feras no covil.
"Vendo-o, penso que a vida
É assim também, traiçoeira como as águas,
Que arfa sob a nossa alma adormecida
Todo um abismo de profundas máguas.
"Alma ou praia, te enlevas
No mar que canta à luz dos astros de ouro;
E, súbito, eis-te mergulhada em trevas,
Batida de ondas, afogada em choro..."
Nisto, alvejou a vela
De um navio passando no alto mar;
E eu disse, erguendo os olhos para ela
E mergulhando-os no seu doce olhar:
"Não! A noite estrelada
Sobre a praia deserta e o mar tristonho
Abre em nossa alma leve e consolada
As duas asas místicas do Sonho.
"Vê: longe se desenha
A alvura de uma vela que se afasta;
Palpita à viração, foge e se embrenha
No azul da noite luminosa e vasta..."
"E é tão triste! Parece
Um sonho que se afasta, uma ilusão
Que vai fugindo e que desaparece;
Tanto do olhar como do coração"...
"Enganas-te, criança!
Esse afastar de um barco fugitivo
Desperta pensamentos de esperança
E a alma consola como um lenitivo.
"Ah, deixamos um dia
A terra; para fora velejamos
De todo a mágua que nos agonia,
Sim, das lágrimas todas que choramos:
"Afasta-se nossa alma,
Foge... E, como essas palpitantes velas,
Mergulha pelo azul da noite calma,
- E vai perder-se em meio das estrelas..."
Santos, 1890 - Vicente de Carvalho
Imagem: reprodução da página 19 de A Lua número 7
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