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CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - POETA DO MAR
Vicente de Carvalho (15)

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Vicente de Carvalho também colaborou na revista semanal ilustrada paulistana A Lua, desde seu primeiro número, como registrou em suas páginas (revistas preservadas no Arquivo do Estado de São Paulo - acesso em 18/09/2016 - ortografia atualizada nestas transcrições):
 


Imagem: reprodução da capa de A Lua número 1

A Lua - Ano 1/nº 1 - nova - janeiro de 1910 - páginas 18 e 19:

Vicente de Carvalho – A invenção do diabo

Deus, entregando ao Diabo a metade do mundo
Deu-lhe a parte pior, como era de razão:
E, para arrecadar seu patrimônio, o Imundo
Foi forçado a varrer todo o cisco do chão.

Tomando para si todo o imenso tesouro
Da Bondade e da Luz, do Amor e da Harmonia,
Pode o Senhor fazer esbanjamentos de ouro
Nas estrelas da noite e no esplendor do dia.

Pode esparzir na areia as pérolas do orvalho,
Marchetar de rubis a asa de um beija-flor,
Fazer a primavera – e pôr em cada galho
O gorjeio de uma ave e o riso de uma flor...

A Satanás, porém, coube em partilha a treva,
O ódio como prazer, como covil um poço;
E ele lá no seu reino escuro a vida leva
De um cão magro a que dão muita pancada e um osso.

E, enquanto a mão de Deus, abrindo-se, semeia
Astros de ouro no céu, messes de ouro no pó,
Satanás, furioso, a mão sacode, cheia
De lepra e maldição como o punho de Jó.

Só uma vez Satã respirou satisfeito,
E arregaçou-lhe o beiço um pérfido sorriso,
Quando, acaso, ao sair do seu covil estreito,
De repente se achou dentro do Paraíso.

A primeira impressão que teve foi de inveja:
Daquele estranho quadro o imprevisto esplendor
Só lhe pôde arrancar à boca malfazeja
Uivos de cão ferido, imprecações de dor.

Mas de repente, como o corisco clareia
O tenebroso céu nas borrascas de Agosto,
Uma ideia triunfante, uma sinistra ideia
Fuzilou-lhe no olhar e iluminou-lhe o rosto.

Sobre um macio chão todo em musgos e rosas,
Eva, formosa e nua, adormecera ao luar.
E sobre a alva nudez dessas formas graciosas
Satã deixou cair um desdenhoso olhar...

Mas num sonho talvez de coisas ignoradas,
Num desejo sem alvo, imperfeito e indeciso,
Eva os lábios abriu – e abriram-se, orvalhadas
De um suspiro de amor, as rosas de um sorriso.

Espantado, Satã viu que esse mármore era
Animado e gentil, ardente e encantador;
Como um resumo viu de toda a primavera
Na frescura sem par daquela boca em flor.

E foi somente então que o Príncipe da Treva
Imaginou o Amor furioso e desgrenhado,
E resolveu fazer dos róseos lábios de Eva
O cálix consagrado às missas do Pecado.

Lábios feitos de mel, de rosas ao sereno,
De céu do amanhecer franjado em rosicler...
Entreabriu-os Satã; e enchendo-os de veneno,
Sorriu. Tinha inventado o beijo da mulher.

Vicente de Carvalho


Imagem: reprodução das páginas 18 e 19 de A Lua número 1


Imagem: reprodução da página 18 de A Lua número 1


Imagem: reprodução da página 19 de A Lua número 1


Imagem: reprodução de anúncio publicado na página 8 de A Lua número 1

A Lua - Ano 1/nº 2 - CRESCENTE - janeiro de 1910 - página 18:


Imagem: reprodução da capa de A Lua número 2

Vicente de Carvalho - Menina e Moça

(N. E.: note-se as diferenças em alguns versos de outra versão)

Tu, que és quase uma criança,
E acreditas quanto diz
A tentadora esperança
De ser amada, e feliz;

Sê formosa; entre as formosas
Reina e brilha, se puderes:
Que a beleza nas mulheres
É como o viço nas rosas.

Sendo formosa e mais nada
Cumpre a mulher com fulgor
Sobre a terra iluminada
O seu destino de flor.

Sê bondosa! Entre as melhores
Sê a melhor se puderes:
Que a bondade nas mulheres
É como o aroma nas flores.

Meiga, formosa, querida,
Ama e sê amada! O amor
Na areia solta da vida
Brota roseiras em flor.

Serás feliz? Ai, não queiras
Ser feliz: às mais ditosas
Brotam mágoas entre as rosas
Como espinhos nas roseiras...

Tu que és quase uma criança
E que enlevada sorris
À enganadora esperança
De ser amada e feliz,

Sê resignada! A roseira
Que mais viça e mais prospera
Dá rosas na primavera
E espinhos a vida inteira...

Vicente de Carvalho


Imagem: reprodução da página 18 de A Lua número 2

A Lua - Ano 1/nº 7 - CHEIA - fevereiro de 1910 -  página 1*:


Imagem: reprodução da capa de A Lua número 7

Vicente de Carvalho - Olhando o Mar (dos Versos da Mocidade)

(N. E.: note-se as diferenças em alguns versos para a versão publicada em livro em 1912)

Anoitecera apenas.

O céu azul cobrira-se de estrelas,

E a cismadora lua em meio delas

Vinha, como uma rosa entre açucenas.

 

Estávamos em frente

Do mar, que apenas ondulava; fraca,

De manso, pela areia, a alva ressaca

Vinha e voltava preguiçosamente...

 

Ela, sobre o meu ombro

Pondo a mão, e em meus olhos pondo o olhar,

Disse-me: "Causa o mais estranho assombro

A tristeza da noite sobre o mar.

 

"Abre-nos asas na alma,

Leva-a por cismas, tonta e deslumbrada,

Ver sobre o abismo do mar largo a calma

Da imensa noite, límpida e estrelada.

 

"Dorme a praia ao relento,

Beija-a de leve o mar que arfa ao seu lado,

E em cima resplandece o firmamento

Como o dossel de um leito de noivado.

 

"Tudo tranquilo e doce,

Tudo tão calmo, a nos fazer supor

Que o mundo inteiro talvez mais não fosse

Que um ninho feito para o nosso amor...

 

"No entanto, basta um pouco

De vento: o céu se enturva, o mar se alteia,

E sucede ao marulho o grito rouco

Dos vagalhões torcendo-se na areia.

 

"Mesmo tranquilo, assombra

O mar: finge-se manso, enternecido,

Mas, dentro dele, embosca-se na sombra

um coração raivoso, de bandido.

 

"Apavora e entristece

Mesmo cantando ao luar, meigo e gentil:

A cólera se esconde dentro desse

Repouso, como as feras no covil.

 

"Vendo-o, penso que a vida

É assim também, traiçoeira como as águas,

Que arfa sob a nossa alma adormecida

Todo um abismo de profundas máguas.

 

"Alma ou praia, te enlevas

No mar que canta à luz dos astros de ouro;

E, súbito, eis-te mergulhada em trevas,

Batida de ondas, afogada em choro..."

 

Nisto, alvejou a vela

De um navio passando no alto mar;

E eu disse, erguendo os olhos para ela

E mergulhando-os no seu doce olhar:

 

"Não! A noite estrelada

Sobre a praia deserta e o mar tristonho

Abre em nossa alma leve e consolada

As duas asas místicas do Sonho.

 

"Vê: longe se desenha

A alvura de uma vela que se afasta;

Palpita à viração, foge e se embrenha

No azul da noite luminosa e vasta..."

 

"E é tão triste! Parece

Um sonho que se afasta, uma ilusão

Que vai fugindo e que desaparece;

Tanto do olhar como do coração"...

 

"Enganas-te, criança!

Esse afastar de um barco fugitivo

Desperta pensamentos de esperança

E a alma consola como um lenitivo.

 

"Ah, deixamos um dia

A terra; para fora velejamos

De todo a mágua que nos agonia,

Sim, das lágrimas todas que choramos:

 

"Afasta-se nossa alma,

Foge... E, como essas palpitantes velas,

Mergulha pelo azul da noite calma,

- E vai perder-se em meio das estrelas..."

Santos, 1890 - Vicente de Carvalho


Imagem: reprodução da página 19 de A Lua número 7

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