Clique aqui para voltar à página inicialhttp://www.novomilenio.inf.br/cultura/cult006q11.htm
Última modificação em (mês/dia/ano/horário): 02/13/14 14:08:48
Clique na imagem para voltar à página principal
CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - Ribeiro Couto - BIBLIOTECA NM
Rui Ribeiro Couto (17-K)

Clique na imagem para ir ao índice desta obraUma das obras de Rui Ribeiro Couto é O Crime do Estudante Batista, aqui transcrita em primeira edição digital, a partir do livro publicado em 1945 pela Companhia Editora Nacional (São Paulo - Rio de Janeiro - Recife - Bahia - Pará - Porto Alegre), em segunda edição. A obra faz parte do acervo de Rafael Moraes transferido à Secretaria Municipal de Cultura de Santos e cedida a Novo Milênio pelo secretário Raul Christiano para digitação/digitalização (ortografia atualizada nesta transcrição - páginas 179 a 187):

Leva para a página anterior

O crime do estudante Batista

Ribeiro Couto

Leva para a página seguinte da série

A Amiguinha Teresa

-Está errado! - exclamou o sr. Soares com aquela sua grossa voz autoritária. - Escreva outra carta. São quinhentos fardos e não quatrocentos. Onde é que o senhor foi descobrir esses quatrocentos?

Paulino tomou o papel que o patrão lhe estendia e sentou-se à máquina de escrever. Começou a tantanear.

Era um rapaz de vinte anos a quem a gravidade silenciosa da fisionomia dava um ar mais velho, um ar de adolescência falha. Viera do Norte havia pouco. Vivia só no Rio. Ninguém lhe conhecia família nem relações. Sabia-se apenas que aparecera no escritório certa manhã, dois meses antes, com uma carta para o sr. Soares. E que no fim do primeiro mês enviara quase todo o dinheiro para a sua terra anônima.

Desde logo ficara trabalhando no escritório do patrão, assim como uma espécie de secretário ao qual não se dá maior importância que a um criado. Chegava sempre às oito horas, não se demorava no almoço mais que os quarenta minutos que o sr. Soares lhe concedia, e não largava o escritório à tarde, senão depois que o patrão, ou o gerente, lho dissesse. O sr. Soares, não raro, prendia-o até tarde da noite. E, durante o dia todo, Paulino ficava ali, calado, na sala do chefe, a fazer o que este lhe mandava, que era sempre a correspondência da casa, mais uns recados fora, quando o menino dos recados não vinha.

O sr. Soares era um homem alto, corpulento, rude, falando a todos com um vinco forte entre as sobrancelhas e um calor de zanga permanente. Queria que todos fossem breves. Não gostava de ninguém senão da filha.

Teresa tinha dezoito anos. As crônicas mundanas falavam dela com adjetivos líricos. Ia às reuniões, ao footing, aos chás, aos bailes. "Mlle. Teresa Soares, com os seus grandes olhos pretos, e a sua linda e fresca pele morena, as suas mãos perfeitas, os seus gestos rítmicos, o vulto élancé entre todos adorável..." E era realmente assim.

Teresa ia duas e mais vezes na semana ao escritório do pai, pelas cinco horas da tarde, de passagem para o seu chá. Ao encontrar pela primeira vez Paulino - o sr. Soares saíra para mostrar a sua fábrica da Tijuca a uns amigos -, ficara confusa. Mas como a confusão de Paulino ainda fora maior, principalmente porque ela o pilhara a ler um livro às escondidas, recobrou logo o seu desembaraço:

- O senhor é o novo empregado de papai?

- Sou o novo empregado do sr. Soares, sim, senhora.

- Filho da viúva de um amigo dele, não é?

- Sim, senhora.

- Paulino... Paulino de quê?

- Da Costa.

- Mas eu já o conhecia do Rio... A sua fisionomia não me é estranha.

- Talvez se engane. Eu estou no Rio há cinco dias e nesta casa há três.

- Ah! em que cidade nasceu?

- Não nasci na cidade... Nasci no sertão, no sertão do Pará.

Teresa sorriu com uma piedade mansa por aquele pobre destino que viera ao mundo num lugarejo qualquer do Pará. Lembrou-se do livro que Paulino estava a ler. Pediu-o.

- O senhor gosta muito de ler? - perguntou ao pegar o volume.

Paulino teve um sorriso que dizia, melancolicamente: "Se é da única coisa que eu gosto!"

- Eugénie Grandet... Ora veja! O senhor aprecia Balzac ou... ou... lê por ler?

Paulino repetiu o sorriso, com mais melancolia.

Deram cinco horas e ela despediu-se rápida, apertando a mão de Paulino com uma simpatia que o comoveu.

Teresa passou a ir com mais frequência ao escritório. Quando o pai estava, dizia um "boa tarde" distraído ao rapaz e ia beijar, com certa coquetaria amorosa e inocente, a testa enrugada e pensativa do pai.

O sr. Soares ficava intimamente satisfeito com a aparição da filha, apesar de sentir, vagamente, que aquela atmosfera de negócios e cálculos a profanava um bocado, não sabia por quê. Por isso ficava mais satisfeito ainda quando ela saía, trêfega, deixando nele uma ternura de fera dócil.

Os empregados da casa chamavam-na, entre si, "o sorriso". Antes de chegar ao compartimento do pai, com a sua porta de vidro opaco e as letras transparentes a indicarem "Diretor", Teresa tinha que atravessar uma sala grande, com caixeiros suarentos debruçados em livros ou pacotes de amostras e um longo corredor ladeado de sacos, fardos, caixotes em pilha. Ela sorria a todos, discretamente, cumprimentando-os, e desaparecia, grácil, no escritório ao fundo. Em voz baixa os empregados comentavam:

- "O sorriso" está hoje mais bonito.

Ou então, os mais atrevidos:

- Vou pedir "o sorriso" em casamento e fico instalado na vida.

Ao cabo de quinze dias, Paulino tinha uma intimidade meiga com Teresa. Às ocultas do sr. Soares, emprestavam-se livros. Mesmo na frente dele, quando Paulino estava ocioso, conversavam coisas amáveis.

- Formoso dia!

- De manhã, ao vir para o escritório, vim sentindo uma carícia no ar.

- O mar, agora à tarde, deu-me o desejo de ser assim uma vela abandonada... Imagine!

- Imagino, sim, o prazer das gaivotas...

Ria. O sr. Soares, ocupado em escrever, despertava com o riso, chamava a filha para perto sob um pretexto qualquer. A sala era estreita, com escrivaninhas a atulhá-la e armários atopetados de livros enormes. A janela dava para os fundos de um grupo de sobrados velhos, sobre os quais azulava um pedaço de céu.

O sr. Soares não gostava daquelas conversas. Compreendera, porém, que eram agradáveis à filha e deixava. O que acontecia é que, sempre que encontrava uma razão mais ou menos suficiente, chamava Teresa, ou pedia-lhe que fosse embora para não o perturbar, ou saíam os dois. Amiúde, na presença dela, repreendia Paulino, instintivamente:

- Você não me entregou a carta para o correspondente de Manaus. É muito boa! Que é que fez o dia inteiro?

Paulino ia-lhe á secretária, procurava, mostrava a carta com a mão estendida.

- Está bem! Não tinha visto.

Já Teresa, sem que pusesse nisso uma intenção consciente, preferia agora, para ir lá, os momentos em que o pai não estivesse. De ordinário telefonava antes. Mas Paulino achava a moça cruel por aquele hábito de dizer às vezes uma pequena ironia e ficar olhando fixo, a sorrir, a ver o efeito. Outras vezes ele a sentia piedosa. Era uma humilhação insuportável.

Ela contava-lhe as reuniões da véspera, o que vira, o que lhe haviam dito, as homenagens sem fim... Escondia nessas narrações uma ponta feminina de perversidade. Tinha, para requintar o tormento sutil, pitorescos de frases, vivos de estilo, inflexões coloridas. "No último baile da Legação de Cuba - encantador, aquele ministro Viera! - tive uma deliciosa surpresa..."

Paulino da Costa parecia mais humilde ainda, escutando-a. Como que o coração lhe murchava. E era um sofrimento doce, penetrante, indefinível, esse de ouvi-la e olhar-lhe o busto que braços de homem haviam apertado na cadência propícia dos ragtimes. No entanto, sabia bem que era o seu único amigo no Rio, aquela amiguinha Teresa.

- Se o senhor saísse daqui, onde é que ia empregar-se?

- Eu? Em lugar nenhum. Estou arrependido de ter vindo, sabe?

Havia dias em que o sr. Soares o tratava melhor, sem aquelas exclamações de impaciência e os ronrons de ameaça furtiva. E o rapaz sentia nisso a influência da amiguinha, uma recomendação feita à hora da mesa, ou num intervalo de espetáculo, a propósito de negócios...

Uma tarde o patrão lhe disse:

- Preciso do senhor hoje à noite em casa. Oito e meia. Vamos escrever um relatório.

Teresa estava presente e teve uma ideia:

- Papai, ele pode ir às sete e janta conosco.

O sr. Soares olhou a filha e baixou a cabeça, com pudor, como se alguém o surpreendesse furtando ao jogo.

- Está bem.

Paulino quis esquivar-se: "Sentia muito. Mas justamente naquele dia necessitava estar às sete na cidade..."

- Ora, o senhor não encontra uma desculpa um pouquinho melhor do que essa? Veja... Lá em casa não há a menor cerimônia.

Na sala de jantar da casa do sr. Soares, Paulino sentiu durante todo o tempo um constrangimento forte, opressor. Não que o ofuscassem os brilhos da opulência e aquela atmosfera luxuosa de paraíso doméstico. Mas sentia a todo instante sobre ele os olhos cinzentos e frios de d. Noêmia, em cuja reserva lia bem: "Que é que vieste fazer aqui? Não vês que não é o teu lugar?" Estavam à mesa outras relações da casa. Entre elas um rapaz de monóculo, cara pálida e um fio preto de bigode, muito mesuroso com a sua amiguinha. Arrependeu-se de ter aceito o convite...

À uma da madrugada, quando deixou o gabinete do patrão, fatigado do tantaneio contínuo da máquina e de tudo o que dolorosamente pensara enquanto escrevia, automático, Paulino viu-se no jardim e Teresa, onde ela deveria passear à tarde, aos risos, com os rapazes íntimos da casa, com aquele de monóculo, ágeis, fáceis, com maneiras civilizadas e hábitos de esporte. Fazia luar, um luar abandonado. No palacete silencioso, apenas na janela fechada do gabinete fulgurava um raiozinho de luz, que logo se apagou. Vinha dos canteiros uma exalação entontecedora de jasmins. Lembrou-se mais ou menos de uns versos de Luís Delfino:

Ela andou por aqui... Andou. Primeiro, porque há sinais de suas mãos... Segundo, porque ninguém como ela tem no mundo este esquisito, este suave cheiro.

E viu-se fora do portão. Foi descendo a rua calada, com um último olhar para a casa adormecida.

Ao despertar, naquela manhã, sentiu-se contrariado à ideia de voltar ao escritório, à vida costumeira, à tortura... Lá estaria o sr. Soares com a sua corpulência e a sua ruga permanente entre as sobrancelhas. À tarde apareceria Teresa, por quinze minutos, a palrar sobre os romances de Balzac, um pouco por ostentação de gosto educado. E a olhá-lo com um olhar de amizade humilhante, humilhante...

O dia estava claro e quente. A irradiação luminosa do verão parecia tornar maior e mais irremediável a sua dor. Então tomou uma resolução. Que lhe importava fosse uma resolução romântica?

"D. Teresa. Eu lhe agradeço a bondade e o sonho que a senhora espalhou na minha vida pobre. Volto... Para a senhora, que representa a minha ausência? Ah! nada. Virá outro para o meu lugar no escritório e a senhora há de ser boa e sorrir-lhe; há de ser boa e conversar sobre livros com ele; há de ser boa e contar-lhe os seus triunfos mundanos; há de ser boa e fazê-lo sonhar, sofrer... Quero, porém que continue a ser, na minha memória, a deliciosa, a terna, a comovente, a impossível amiga, a amiguinha Teresa..."

Quando Teresa, no dia imediato, correu à pensão onde Paulino morava, a proprietária, uma velhota viúva que tinha no queixo uma verruga escandalosa, explicou:

- Seu Costa embarcou ontem para o Norte.

Então Teresa levou a mão aos olhos escondendo as lágrimas e murmurou, num suspiro fundo:

- Foi melhor assim...

Enquanto a velhota concluía, franzindo a testa com pena:

- Era um bom pensionista.