Clique aqui para voltar à página inicialhttp://www.novomilenio.inf.br/cultura/cult006p28.htm
Última modificação em (mês/dia/ano/horário): 02/15/14 10:05:07
Clique na imagem para voltar à página principal
CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - Ribeiro Couto - BIBLIOTECA NM
Rui Ribeiro Couto (16-[28])

Clique na imagem para ir ao índice desta obraUma das principais obras de Rui Ribeiro Couto é o romance Cabocla, aqui transcrito em primeira edição digital, a partir do livro publicado em 1945 (terceira edição) pela Livraria Sá da costa Editora, de Lisboa, Portugal, com prefácio de João de Barros, sendo todos os exemplares autenticados com as rubricas do autor e editores. A obra faz parte do acervo de Rafael Moraes transferido à Secretaria Municipal de Cultura de Santos e cedida a Novo Milênio pelo secretário Raul Christiano para digitação/digitalização (ortografia atualizada nesta transcrição - páginas 152 a 155):

Leva para a página anterior

Cabocla

Ribeiro Couto

Leva para a página seguinte da série

XXVII - Coroa de flor de laranjeira

Era a última noite. Na cama dura, agitava-me inquieto, com um vazio metálico de insônia dentro dos olhos. Repetia, num jogo maquinal da imaginação excitada, a cena provável do dia seguinte, a despedida atroz. Eu choraria, sem dúvida. Todos chorariam.

Zuca teria coragem de aparecer? Eu diria, se ela viesse: "Então adeus, dona Zuca". A frase criava dentro de mim novas ressonâncias de angústia: "Então adeus, dona Zuca". O fordinho, cheio de valises, partiria entre as aclamações da cachorrada da fazenda. "Adeus, dona Zuca", "Adeus, dr. Jerónimo..." Não era certo que todas as coisas inanimadas adquiririam uma consciência, seriam testemunhas caladas da minha aflição? Adeus, ó paisagem do Córrego Fundo, ó estados de alma, ó intuições!

... A Suíça, tão longe de tudo que eu agora conhecia e amava, aqueles horizontes do sertão... Longe da terra em que eu já sentia todas as criaturas, todas as almas... A Suíça, a saudade do Brasil... Como seria a saudade do Brasil?

Nos meus olhos ardia uma ameaça de pranto. Por antecipação, eu sofria essa inconsolável saudade. "No Pau d'Alho, uma vez, uma caboclinha... " Pau d'Alho, caboclinha - palavras que para mim seriam cheias de sugestões - do país e do povo. Pau d'Alho... caboclinha... Nos terraços do sanatório, quando eu as repetisse - esses e outros nomes, Córrego Fundo, Nhô Felício, prima Emerenciana, Tomé, Pigarço - todos os olhos continuariam frios, ausentes, sem ver os mundos ilimitados da minha ternura.

Minha última noite no Córrego Fundo...

Estava então desfeito o sonho de vida primitiva num sertão ignorado? Abrir a "minha fazenda", construir a "minha casa", trabalhar com os "meus braços"? Ficava assim interrompida aquela iniciação amorosa com a terra, com o país tão vasto, meu Deus, no qual antigamente eu não pensava? Deus me castigava, exatamente agora, que eu me humanizava e compreendia tudo que era daquele chão?

O cincerro do Pigarço tilintou lá fora. Ergui-me, numa aflição maior. O luar lavava o terreiro. No pasto, a sombra do cavalo movia-se vagarosa, a cabeça baixa, roendo a gordura. O Pigarço a que eu queria tanto bem! O Pigarço em que Zuca me dera o primeiro beijo, em que corria em pelo, em que disparava para o Pinhalzinho perseguida pelo clamor inútil de prima Emerenciana! Até o Pigarço parecia dizer-me adeus.

Então voltei a cama chorando, atirei-me por cima do lençol... E foi quando alguém arranhou a porta, de manso. Parei assustado, ouvindo o relógio bater duas horas na casa adormecida.

Abri, adivinhando trêmulo que era Zuca.

Entrou sem uma palavra, caminhou comigo para a cama, deitou-se em silêncio abraçada ao meu peito.

No meu ouvido, explicou com candura:

- Para não esquecer de mim.

... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ...

Nossa Senhora que me perdoe de eu ter pensado mal de quem não merecia.

... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ...

Pigarço, lá fora, agitava o cincerro; os grilos trilavam; vagos insetos noturnos enchiam o silêncio de músicas indefiníveis. A noite do Córrego Fundo embalava nos seus rumores cúmplices a perfeita inocência que nos meus braços se perdia.