XXVII - Coroa de flor de laranjeira
Era a última noite. Na cama dura, agitava-me inquieto, com um
vazio metálico de insônia dentro dos olhos. Repetia, num jogo maquinal da imaginação excitada, a cena provável do dia seguinte, a despedida atroz. Eu choraria, sem dúvida. Todos chorariam.
Zuca teria coragem de aparecer? Eu diria, se ela viesse: "Então adeus, dona Zuca". A frase criava dentro de mim novas ressonâncias de angústia: "Então
adeus, dona Zuca". O fordinho, cheio de valises, partiria entre as aclamações da cachorrada da fazenda. "Adeus, dona Zuca", "Adeus, dr. Jerónimo..." Não era certo que todas as coisas inanimadas adquiririam uma consciência, seriam testemunhas
caladas da minha aflição? Adeus, ó paisagem do Córrego Fundo, ó estados de alma, ó intuições!
... A Suíça, tão longe de tudo que eu agora conhecia e amava, aqueles horizontes do sertão... Longe da terra em que eu já sentia todas as criaturas,
todas as almas... A Suíça, a saudade do Brasil... Como seria a saudade do Brasil?
Nos meus olhos ardia uma ameaça de pranto. Por antecipação, eu sofria essa inconsolável saudade. "No Pau d'Alho, uma vez, uma caboclinha... " Pau
d'Alho, caboclinha - palavras que para mim seriam cheias de sugestões - do país e do povo. Pau d'Alho... caboclinha... Nos terraços do sanatório, quando eu as repetisse - esses e outros nomes, Córrego Fundo, Nhô Felício, prima Emerenciana, Tomé,
Pigarço - todos os olhos continuariam frios, ausentes, sem ver os mundos ilimitados da minha ternura.
Minha última noite no Córrego Fundo...
Estava então desfeito o sonho de vida primitiva num sertão ignorado? Abrir a "minha fazenda", construir a "minha casa", trabalhar com os "meus
braços"? Ficava assim interrompida aquela iniciação amorosa com a terra, com o país tão vasto, meu Deus, no qual antigamente eu não pensava? Deus me castigava, exatamente agora, que eu me humanizava e compreendia tudo que era daquele chão?
O cincerro do Pigarço tilintou lá fora. Ergui-me, numa aflição maior. O luar lavava o terreiro. No pasto, a sombra do cavalo movia-se vagarosa, a
cabeça baixa, roendo a gordura. O Pigarço a que eu queria tanto bem! O Pigarço em que Zuca me dera o primeiro beijo, em que corria em pelo, em que disparava para o Pinhalzinho perseguida pelo clamor inútil de prima Emerenciana! Até o Pigarço
parecia dizer-me adeus.
Então voltei a cama chorando, atirei-me por cima do lençol... E foi quando alguém arranhou a porta, de manso. Parei assustado, ouvindo o relógio bater
duas horas na casa adormecida.
Abri, adivinhando trêmulo que era Zuca.
Entrou sem uma palavra, caminhou comigo para a cama, deitou-se em silêncio abraçada ao meu peito.
No meu ouvido, explicou com candura:
- Para não esquecer de mim.
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Nossa Senhora que me perdoe de eu ter pensado mal de quem não merecia.
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Pigarço, lá fora, agitava o cincerro; os grilos trilavam; vagos insetos noturnos enchiam o silêncio de músicas indefiníveis. A noite do Córrego Fundo
embalava nos seus rumores cúmplices a perfeita inocência que nos meus braços se perdia. |