Capa da revista Manchete, do Rio de Janeiro/RJ, na edição nº 1.664, de 10 de março de 1984, com destaque para a tragédia da Vila Socó
Imagem: site Sebo do Messias (acesso: 22/2/2014)
A tragédia de Cubatão
Texto de Eduardo Francisco Alves * Reportagem de Durval Ferreira * Fotos de José Castro, Ruy de Campos, José Bosco e Oripedes A. Ribeiro
Em São Paulo, fevereiro é o mês mais cruel, arrancando gemidos da terra ardente. O mês da folia foi um mês de loucura naquele estado em 1972, quanto 16
pessoas morreram e mais de 300 ficaram feridas no incêndio do edifício Andraus. Em 1974, o drama do edifício Joelma: 183 mortos e também mais de 300 feridos. Em 1981, o edifício Grande Avenida ardeu, matando 17 pessoas e ferindo mais de 50. Agora,
na virada de sexta-feira para sábado, 15 minutos antes da meia-noite, a tragédia maior.
Em Cubatão, a favela da Vila São José, um imenso e desordenado agrupamento de barracos, entre a Via Anchieta e a refinaria da Petrobrás, plantada sobre os dutos de combustível desta empresa, foi
consumida completamente pelas chamas, em menos de uma hora.
Técnicos que examinaram alguns dos cadáveres carbonizados constataram que até o esmalte dos dentes foi derretido, o que permite calcular a temperatura atingida no local em cerca de 600 a 700 graus
centígrados. No domingo o cálculo dos mortos já chegava a 80.
As proporções do incêndio foram tão violentas que o número de crianças calcinadas é grande, e nesses casos os corpos ficam reduzidos a blocos tão pequenos e disformes que se misturam com os escombros de
móveis e colchões, passando despercebidos mesmo em buscas mais minuciosas e sendo finalmente atirados fora como dejetos, sem que ninguém se dê conta.
Um cadastramento dos sobreviventes e a checagem de suas reclamações por parentes desaparecidos tampouco ajuda a precisar o número de mortos, pois foi grande o número de famílias inteiras que pereceram
carbonizadas, sem que restasse ninguém para reclamar os corpos.
A Vila São José, também conhecida como Vila Socó, era um bairro operário extremamente miserável. Sobre uma faixa de mangue de mais de um quilômetro e meio de extensão por menos de 100 metros de largura,
os barracos se amontoavam em forma de palafitas, ou seja, equilibrados em estacas sobre o mangue. Por baixo, a lama fétida fluía incessantemente, caracterizando aquele tipo de subvida dos mangues do Beberibe e do Capibaribe, que o poeta João Cabral
descreveu de forma pungente em O Cão Sem Plumas e Morte e Vida Severina.
As autoridades locais que, no decorrer dos tempos e das administrações, chegaram a se preocupar com o perigo potencial daquela favela, nunca hesitaram em chamá-la de "um barril de pólvora". Qualquer
vazamento nos dutos faria com que o combustível logo se alastrasse pelas águas lodosas, e as casas passariam a estar se equilibrando sobre um mangue de gasolina. Uma única chama de um único fósforo, e seria o fim.
Pois apesar de todas essas previsões - em nada fantasiosas -, o fim foi exatamente o que sobreveio. Horas antes do fogo eclodir (foram duas explosões, com um segundo de intervalo), várias pessoas já
haviam detectado o vazamento, avisando a guarnição da Polícia Militar. Um funcionário da equipe de segurança do sistema foi avisado, e lhe pediram que chamasse oficialmente os bombeiros para o local. Mas o pedido esbarrou na mentalidade emperrada
de burocracia do funcionário. "Só depois que chegar o engenheiro para examinar a situação".
Pouca diferença fez. A PM, com ou sem bombeiros, resolveu dar o alarma entre os moradores, clamando para que deixassem suas casas. Essa simples providência salvou um número incalculável de vidas. Mesmo
assim, muitos não ouviram os apelos, ou se recusaram a atender, ou pensaram que era apenas uma batida policial em busca de criminosos.
O fogo correu como um raio sob os barracos
Desses, a maioria morreu. Outro fator providencial foi o forró que rolava numa espécie de clube local. Exatamente junto ao barzinho onde os dançarinos molhavam a garganta ocorreu o vazamento, que foi
visto por todos que bebiam, possibilitando o alarma. Quem estava no baile se salvou - e eram muitos. Isso amenizou, mas não evitou, a terrível dor que se seguiria.
Quando uma qualquer chama desavisada acendeu o fogo, este se estendeu por sob a favela como um raio. Tudo ardeu quase que simultaneamente. A maré estava alta, deixando as casas a poucos centímetros do
mangue em chamas. O que também não fez muita diferença. As labaredas se elevaram a 50 metros de altura quando se instaurou o inferno.
Agora, já se instaurou o inquérito. Ou melhor, os inquéritos. Um administrativo, de iniciativa da própria Petrobrás. Outro, policial, que o estado não se apressou em exigir, e que o próprio presidente
da Petrobrás, sr. Shigeaki Ueki, solicitou ao governador Franco Montoro que fosse instaurado.
Desde que surgiram os barracos, a empresa, através de seu departamento jurídico, deu entrada em processos judiciais para a evacuação do lugar, salientando o perigo permanente de um acidente lamentável.
Uma das primeiras preocupações de Ueki - que logo voou para São Paulo, indo visitar o local da tragédia - foi determinar a imediata liberação de verba para todo o socorro possível às vítimas, do abrigo aos sobreviventes e possível cooperação com o
BNH para o reerguimento de moradias em local seguro, até o enterro das vítimas e a indenização das famílias, motivado pela conscientização do papel social inerente à mais importante empresa do País.
A riqueza da Petrobrás é uma riqueza do povo brasileiro, e foi imediatamente colocada à disposição do socorro a um grupo que hoje se alinha, sem dúvida, entre os mais infelizes de todo esse povo.
Quem é o grande responsável? Não é um, são muitos. Em contraposição às medidas da Petrobrás para o deslocamento da favela da Vila São José, políticos dos mais diversos matizes conseguiam, com o passar
do tempo, extra-oficializá-la no âmbito municipal de Cubatão. Em meio aos escombros de Socó, ainda se encontram postes com medidores de luz servindo aos barracos, muitos dos quais também contavam com água encanada e relógios hidrantes a cada porta.
Se a maior parte das moradias eram palafitas, havia diversas casas em alvenaria sobre pedaços de terreno aterrados (essas até sofreram menos com o incêndio), demonstrando que seus moradores não
pretendiam deixar tão cedo o lugar, apesar da gravidade dos riscos que corriam. Se houver registro de cada pedido de "uma biquinha d'água' para a Vila São José, com as assinaturas dos políticos que disso se valiam para angariar votos, haverá então
uma relação dos principais culpados.
A reportagem de MANCHETE em São Paulo apurou que correm com frequência cada vez maior os boatos de que haveria um fundo criminoso por trás da tragédia. Dias antes falava-se na favela de pessoas
carregando latões de gasolina para casa. Um médico da Santa Casa de Santos, dr. Walter Diniz, recorda que um morador de lá, dois dias antes, comentara, durante um atendimento médico, que na Socó a gasolina saía de graça para quem tinha carro. A
hipótese é de que um vazamento já existia - ou até foi provocado - e os moradores recolhiam gasolina, que estocavam em seus barracos. Alguns bombeiros estranharam o fato de espocarem pequenas explosões, seguidas de fogo alto, durante o incêndio.
Vai ser difícil encontrar esse paciente que fez a denúncia. Quando o dr. Diniz tentou fazê-lo, o número de mortos já passava dos sessenta. Poluição industrial, irresponsabilidade política e miséria
social os males de Cubatão são, como diria o velho slogan da saúva.
A registrar que a tragédia de Cubatão quase teve uma suíte que iria abalar profundamente o Brasil, em especial no momento político que estamos vivendo: ao retornar do local do incêndio para o Palácio
Bandeirantes, o helicóptero que transportava o governador Franco Montoro sofreu uma pequena pane que o forçou a uma aterrissagem de emergência num terreno baldio do Morumbi, obrigando o governador a terminar o percurso a pé.
A tragédia de Cubatão já abalou muito o país. Se tivesse sido coroada com acontecimento tão infausto, ia se tornar um fato marcante entre os mais deprimentes da história brasileira.
O Brasil teve uma visão do inferno com a tragédia de Cubatão, uma das piores que já houve no país
Foto publicada na página 3
Depois de uma madrugada de fogo, uma manhã de cinzas. A Vila São José parecia uma imagem de cinema-catástrofe. Agora, é enterrar os mortos
Fotos publicadas nas página 110 e 111
Tanto o governador Franco Montoro quanto o presidente da Petrobrás, Shigeaki Ueki, acorreram ao local da tragédia, ordenando a abertura de
inquéritos
Fotos publicadas na página 112
A TRAGÉDIA DE CUBATÃO FOI UMA DAS MAIORES QUE O BRASIL JÁ VIU - Mal havia local suficiente para se empilharem os cadáveres. Muita gente
foi se refugiar em barracos de zonas inatingidas próximas. Mas na vila dizimada o que ficou de pé era inabitável.
Fotos publicadas nas páginas 112 e 113 |