BAIXADA SANTISTA - BIBLIOECA NM -
Lendas e Tradições
Lendas e Tradições de Uma Velha Cidade...
Em maio de 1940, era publicada esta obra do historiador santista Francisco Martins dos Santos, reunindo uma série de histórias que ele havia
publicado em jornais. Com 254 páginas e tiragem de 2.000 exemplares, Lendas e Tradições de Uma Velha Cidade do Brasil foi impresso na Empresa Gráfica da Revista dos Tribunais, na capital paulista, incluindo ilustrações de Wast Rodrigues e
prefácio de Baptista Pereira.
O exemplar pertencente ao professor e pesquisador Domingos Pardal Braz, de São Vicente/SP, foi cedido a Novo Milênio para digitalização em 2015. Assim, Novo Milênio apresenta nestas
páginas a primeira edição digital integral da obra (ortografia atualizada nesta transcrição) - páginas 130 a 140:
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Lendas e Tradições
de Uma Velha Cidade do Brasil
Francisco Martins dos Santos |
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[13] O milagre de Santo Antonio do Valongo
Na Santos de 1940, o caso de Santo Antônio da Matriz do Valongo, ocorrido
na cidade de 1860, é, sem dúvida, uma dessas coisas difíceis de "engolir". Talvez porque já tenha passado a idade dos milagres, como dizem, talvez pela mania da dúvida que caracteriza o século, o que não impede que a gente de tal século tenha
"engolido" coisas piores, como a "Santa de Coqueiros", o "São Vicente" da vila de São Caetano e seus milagres, além de outros milagres e milagreiros.
A verdade, porém, é que o fato milagroso da Santos de 1860, conhecido na tradição como o "milagre de Santo Antônio do Valongo", aconteceu e aconteceu sob as vistas de gente alheia à religião, de membros da Maçonaria, de operários, de engenheiros,
de homens de cultura, testemunhas insuspeitas, incapazes de aceitar "coisas feitas" ou falsos fenômenos, trazendo como consequência fatos materiais de monta, e isso concorre para positivá-lo, dando-lhe um profundo cunho de veracidade.
Senão, vejam.
Em 1860, era administrador da Recebedoria de Rendas da Província e irmão ministro da Venerável Ordem Terceira de São Francisco da Penitência, ordem que assistia e assiste ainda no Convento de Santo Antonio, Francisco Martins dos Santos, um
ilustrado santista, tio do autor deste livro, avô do poeta Martins Fontes, homem culto, escritor, poeta, jornalista, vereador municipal e membro dos principais da Maçonaria.
Naquele ano, violentamente, e por ato desconhecido em Santos, do Provincial do Rio de Janeiro, o Convento e o Cemitério Público, que lhe ficava atrás, ambos pertencentes à Igreja, foram vendidos à Companhia de Estradas de Ferro Santos a Jundiaí,
cujo privilégio pertencia a ingleses, para que em seus terrenos fosse construída a futura Estação dos trens, e que é a mesma que até hoje serve à cidade.
Sabedor da realidade por intermédio do enviado do barão de Mauá, sr. João Hayden, que na ocasião vinha saber quanto queria a Ordem para abandonar também a Igreja e quanto lhe restava verdadeiramente de terreno, o major Martins dos Santos,
revoltado, reuniu imediatamente em sessão especial todos os companheiros, conforme ata que ainda hoje se lê no livro da Irmandade, pronunciando o seguinte discurso, que serve ao mesmo tempo de comentário ao ato do provincial do Rio de Janeiro:
"Meus irmãos!
"O desgosto e a indignação de que me acho possuído me fazem talvez exorbitar de minhas atribuições, como indigno ministro desta venerável ordem, e me impelem a algumas reflexões em desabafo! Desculpai-me, pois!
"Quando os nossos maiores, que cuidavam mais da alma e da virtude, que de cifras com números, com onerosos sacrifícios procuraram e conseguiram fundar este templo, não anteaviam certamente que viria um século que, pouco modesto e no desvario da
torrente em que se afoga, apelidar-se-ia o século das luzes, o qual, acérrimo sectário do gênio destruidor, se empenharia não só em lançar um completo olvido a tantos e tão belos padrões de glórias, como a destruí-los desde seus alicerces, e
profaná-los com impuro contato e aplicação!
"Custa acreditar em tantas e tão rápidas degenerações de costumes! É bem doloroso sentir-se o desprezo em que são votados os mais santos dogmas da religião de Cristo! Mas, a realidade existe, e desgraçadamente a decepção aparece, e falam mais
alto os interesses pessoais que as nossas crenças!
A empresa da estrada de ferro desta Província quer chamar a si, por compra ou desapropriação, a nossa capela e seu edifício, e dest'arte converter tão augusto e secular monumento em ostentosos armazéns e quiçá, em luxuriosos botequins e mil
outras futilidades!
"Quer a empresa, que poderia ser só grandiosa e útil, tornar-se vil instrumento de profanação, estreando a sua obra, por um semi-sacrilégio, aprovado pela ingratidão dos poucos frades fransicanos, que não imitam os Jaboatões, São Carlos, Galvões
e Mont'Alverne!
"Então teremos que assistir o revolver das cinzar venerandas dos nossos avós, para sobre elas deporem-se os carris da via férrea?" (Ele se referia à memória dos realizadores desde 16440 e aos seus ossos, que descansavam no corpo da Capela).
"Teremos de ver os fragmentos sagrados do nosso templo, calcados pelo tacão da indústria apadrinhada, sob o nome de civilização e progresso - em menoscabo da Santa Religião que professamos e do Império da Santa Cruz?
"Nós, meus irmãos, fracos, tendo de lutar na arena com poderosos atletas, em luta tão desigual, é certa a nossa derrota. Embora. Demais, é bela e preferível! E provará à Humanidade corrompida e abalada que a virtude, quanto mais rara, mais brilho
ostenta, e que os filhos de São Francisco em Santos, fiéis ao seu preceito de honrar e conservar seu templo e não de mercadejar e aviltá-lo, não pactuarão com seus adversários, e não esquecerão os votos de adesão, respeito e culto, que juraram
tributar-lhe, e se conservam firmes no posto de honra que lhes cumpre guardar!
"Pleiteemos, palmo a palmo, e armados de arma legal, apelemos para os poderes supremos do Estado, e confiemos pouco a pouco na Justiça dos homens e muito na proteção de nossa Mãe Santíssima e Padroeira! Só no derradeiro transe então, curvemos a
cerviz, com a convicção e o sossego do justo, como último protesto de vítimas sacrificadas em holocausto ao altar corrupto do século!"
As palavras do varão santista, de tão elevado conceito social, cujo solar antigo era um seio de Abrão, refúgio de necessitados de Santos e de fora dela, ecoaram em toda a cidade, e então, solidariedades espocaram de todos os cantos, de toda
gente, de todas as classes.
Tudo, afinal, era ideia diabólica e obra de um homem: - Mauá! O famoso barão já espoliara a memória de Frederico Fomm, espoliando, de parceria com Monte Alegre, os direitos de sua viúva e principalmente a sua boa fé, fazendo caducar privilégios
adquiridos por aquele, por lei de 1836, chamando a si merecimentos e bens que não lhe pertenciam pelo ato impensado de uma mulher, que em Monte Alegre, como compadre, pensara encontrar o amigo que encaminharia as coisas em favor da família,
entregando-lhe os papeis do falecido marido.
Pois era esse Mauá que, agora, não contente com sua obra, querendo ressarcir-se de prejuízos havidos com a falência do seu banco, vendia aos ingleses projetos e privilégios que pertenciam a Frederico Fomm e queria tirar a Santos, de parceria com
seus compradores - uma vez que obtivera nova concessão em seu nome -, um grande pedaço da sua tradição religiosa.
Como resultado da reunião presidida pelo administrador da Recebedoria de Rendas, foi enviado a sua majestade o imperador d. Pedro II um recurso da Ordem Terceira de São Francisco, recurso que era ao mesmo tempo um libelo contra a monstruosidade
que se pretendia praticar, com o apoio inconsciente do provincial no Rio de Janeiro..., mas, enquanto isso, os operários a soldo da estrada de ferro e em cumprimento a ordens superiores, metiam a picareta no velho convento, no grande lance da
esquerda, demolindo-o em pouco tempo. Passariam adiante, e começavam mesmo a demolição da parte lateral da sacristia, ameaçando a estabilidade da torre da igreja, necessitada de escora pelos dois séculos de existência.
Muita gente assistia, comovida, irritada, à destruição da relíquia. Tiniam de raiva impotente os santistas velhos, e aí, no momento capital da ameaça, superando a força humana e o poder compressor do dinheiro "inglês", empenhado,
displicentemente, em destruir uma das mais belas criações do cristianismo em Santos, operou-se a intervenção das forças invisíveis e transcendentais; realizou-se o milagre da fé, demonstrada nos últimos períodos do Irmão Ministro.
Vieram os operários para retirar, do lugar em que se achava, a pequenina imagem de Santo Antonio. Eram dois, e possantes, e por mais força que fizessem não a puderam arrancar do nicho. Poderia a imagem pesar quatro quilos, se tanto... e parecia
pesar toneladas. Outros homens vieram, e mais homens, e turmas inteiras de operários experimentaram a força, empenhados em arrancar dali a imagem teimosa... e nada... a todos resistiu o Santo Antônio do Valongo!
Diante do claro milagre, ajoelharam-se aos pés do santo todos aqueles homens rudes, broncos, de grossos músculos e calosas mãos. Batiam no peito e alguns choravam, comovidos.
Chamados os chefes do serviço e trazidas novas turmas, porque as primeiras se negavam à profanação, ainda diante deles e dos companheiros, as tentativas fracassaram. Santo Antônio pequenino não saía do lugar, como não saiu!
Uma senhora inglesa, esposa de um dos engenheiros do serviço, de protestante que era, converteu-se à Igreja Romana, pedindo que a aceitassem na Ordem e a batizassem.
Apesar de tudo, a ordem dos "ingleses" e de Mauá era para derrubar a igreja, e os engenheiros e chefes de serviço preparavam gente para a demolição.
A notícia do milagre, porém, correra toda a cidade, e o povo inteiro afluiu para o local de Santo Antônio. Populares armados de paus, pedras, bengalas, enxadas, ancinhos, picaretas e até espingardas atacaram os operários e homens da Empresa,
travando luta demorada e de graves efeitos, vencendo-os debaixo de vaias e assuadas do resto da população.
Os potentados da Estrada tiveram que respeitar o pronunciamento de Santo Antônio e do povo, cabendo a este a vigilância da relíquia santista, organizando-se em patrulhas, espontaneamente, rondando a igreja, dia e noite, durante um ano, para
evitar uma nova investida criminosa e imprevista dos mercenários.
A própria polícia, chefiada por um dos cidadãos da terra, se negara a apoiar os demolidores e jamais se apresentara no lugar, deixando que o povo fosse, ali, a força soberana.
Meses depois, chegava a Santos o Aviso do Império nº 513, mandando entregar a Igreja do Convento de Santo Antônio e seu acervo à guarda de quem tão bem soubera administrá-la e defendê-la, a benemérita Ordem Terceira de São Francisco da
Penitência.
Ainda hoje, lá está, ao lado da pequena imagem, uma bengala simbólica, que o visconde do Embaré, santista ilustre, ofereceu à Igreja, como perpetuação do fato e lembrança do escorraçamento dos profanadores.
E a igrejinha de Santo Antônio do Valongo, ostentando na fachada, muito branca, a significativa legenda - 1640 -, continua ali, marcando o princípio do porto e o princípio do caminho de ferro ao mesmo tempo, como um traço de união entre a gente
que passa e a que fica, como um símbolo de firmeza à entrada da terra.
...A notícia do milagre, porém, correra toda a cidade, e o povo inteiro afluiu para o
local de Santo Antonio...
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