BAIXADA SANTISTA - BIBLIOECA NM -
Lendas e Tradições
Lendas e Tradições de Uma Velha Cidade...
Em maio de 1940, era publicada esta obra do historiador santista Francisco Martins dos Santos, reunindo uma série de histórias que ele havia
publicado em jornais. Com 254 páginas e tiragem de 2.000 exemplares, Lendas e Tradições de Uma Velha Cidade do Brasil foi impresso na Empresa Gráfica da Revista dos Tribunais, na capital paulista, incluindo ilustrações de Wast Rodrigues e
prefácio de Baptista Pereira.
O exemplar pertencente ao professor e pesquisador Domingos Pardal Braz, de São Vicente/SP, foi cedido a Novo Milênio para digitalização em 2015. Assim, Novo Milênio apresenta nestas
páginas a primeira edição digital integral da obra (ortografia atualizada nesta transcrição) - páginas 63 a 75:
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Lendas e Tradições
de Uma Velha Cidade do Brasil
Francisco Martins dos Santos |
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[07] Os canhões da paz
Naquele tempo, 1678, os cargos de provedor e contador da Fazenda Real
e vedor da gente de guerra do Presídio da Praça de Santos, reunidos numa só vara, eram hereditários.
Sebastião Fernandes Correia, que provera a esses cargos com muito zelo e probidade, durante muitos anos, acabava de morrer, deixando um único herdeiro, Timóteo Correia de Góis, menino de oito anos, impossibilitado pela idade de assumir os
encargos da pesada herança.
Resolvera-se então, em conselho de família, que o cavaleiro fidalgo da Casa Real Pedro Taques de Almeida exercesse aqueles lugares até que cessasse o impedimento do pequeno Timóteo. Dona Ângela de Siqueira, mãe do menino, assinou a nomeação
temporária de Pedro Taques, e a coisa ficou assim durante alguns anos.
Em 1864, completava Timóteo Correia os quatorze anos de idade e exigia para si o exercício das funções herdadas. Estava em São Paulo, onde se fizeram sua educação e sua instrução, aceleradas a propósito, e seu discernimento das coisas e dos
homens era, então, notavelmente claro.
Em março daquele ano baixava a Santos, pela Estrada do Mar, a notável caravana dos Góis, dos Almeidas e dos Barros, com o menino provedor à frente, para lhe dar posse dos cargos.
Empossado, para logo se revelou a sua competência, obrigando os muitos subalternos ao devido respeito à sua pessoa.
Chegava a Páscoa, porém, e Timóteo Correia segui para São Paulo, a fim de passá-la com toda a sua família, que lá se achava.
Estavam todos na sede da Capitania quando entrou no porto de Santos uma embarcação vinda do Rio de Janeiro. Entre a carga deixada por esse navio estava uma caixa destinada a José Pinheiro, que devia pagar 480 réis de direitos.
José Pinheiro era compadre e protegido de Diogo Pinto do Rêgo, pessoa da maior autoridade na vila, que havia pouco deixara o cargo de capitão-mor, governador da Capitania, e pensou que por isso, e pela pouca idade do provedor, ausente de Santos,
poderia sonegar o pagamento da taxa devida à Fazenda Real sem que lhe tomassem satisfações, e assim, tirada a caixa, praticou ele o atentado que premeditara.
Exercia a Provedoria o escrivão, por ordem de Timóteo Correia, e ele, alarmado com a ação de José Pinheiro, apressou-se a comunicá-la ao menino provedor. Recebeu a queixa em S. Paulo, Pedro Taques de Almeida, que era então governador da
Capitania, capitão-mor, e este, tomando a si as providências sobre o caso, como padrasto que já era de Timóteo, considerando altamente condenável a ação, pelos maus efeitos que produziria para o futuro, mandou ao escrivão e ao meirinho que
recolhessem à enxovia da cadeia de Santos o culpado José Pinheiro.
A ordem do capitão-mor foi executada; porém, qual não foi o espanto do escrivão quando, imprevistamente, apresenta-se na cadeia Diogo Pinto do Rêgo, o autoritário ex-governador da Capitania, à frente de um grupo armado, favorecido pelo respeito
que ainda merecia da tropa local, e procede à libertação escandalosa de José Pinheiro!
Era flagrante o escárnio à autoridade do provedor ante toda a população da vila.
Tal procedimento de Diogo Pinto acendeu nos ânimos, não só do capitão-mor Pedro Taques, como de Timóteo Correia e de todos os seus poderosos parentes, como Fernão Pais de Barros, Pedro Vaz de Barros e Antônio Pedroso de Barros, uma enorme
irritação, e todos então, em conselho, resolveram reunir suas forças imediatamente, e descer a Santos para castigar a insolência.
Disso teve aviso o ex-capitão-mor Diogo Pinto do Rêgo, que num último capricho resolveu assumir a responsabilidade do fato, declarando-se disposto a sustentar o rompimento e todas as suas consequências.
As casas de morada de Diogo Pinto eram de sobrado, com quatro salas de largura, e tinham a frente para a rua que corria do Carmo até o lugar que chamavam Quatro Cantos, hoje Rua Quinze de Novembro, deitando fundos para o Campo da Misericórdia,
hoje Praça Mauá, em local aberto e raso, que se estendia até as fraldas do Monte Serrate, onde está agora a fonte do Itororó, obra do governador Manuel Gomes Barbosa.
Nessas casas fortificou-se o ex-capitão-mor, fazendo abrir nas paredes da frente e dos fundos várias troneiras, em que introduziu arcabuzes para a reação contra os paulistas. Ao mesmo tempo, mandou Diogo Pinto fornecer seu reduto de tudo quanto
julgou necessário para o sustento de um largo assédio, cuja demora servisse para desistência dos sitiantes, recolhendo também grande quantidade de pólvora e bala.
Avisado do dia certo em que chegaria a Santos o provedor Timóteo Correia com todo o seu grande partido de armas, aguardava Diogo Pinto o último momento para meter-se em suas fortificações com sua filha dona Ana Pinto da Silva e todos os seus
apaniguados, mulatos, negros e escravos, em grande número, além de muitos agregados destros na pontaria e mais o réu José Pinheiro com sua gente.
A esse tempo, chegava ao Cubatão o pequeno exército do provedor. Vinham à frente o jovem Timóteo Correia de Góis, sua mãe dona Ângela de Siqueira e seu padrasto o capitão-mor Pedro Taques de Almeida, com uma guarda de mais de 100 homens armados.
A seguir, vinham Fernão Pais de Barros com seus irmãos Pedro e Antônio, todos tios do provedor, e depois os famosos Pires, João, José, Salvador Pires de Almeida, Pedro Taques Pires, seguidos de seus homens de guerra, e fechando a coluna,
Francisco de Almeida Lara, Luiz Pedroso de Almeida, Antônio Pompeu Taques, José Pompeu de Almeida, Maximiano de Góis e Siqueira, e os notáveis Lourenço Castanho Taques e Pedro Frazão de Brito, capitão-mor de Parnaíba, comandando as tropas que
marchavam à custa do grande Guilherme Pompeu de Almeida, num total de 1.200 soldados.
Durante três dias e três noites, realizou-se o transporte de toda aquela gente em canoas até o caminho de São Vicente, onde se reuniu todo o corpo para marchar sobre Santos.
Santos, nessa altura, estava em franca polvorosa. Algumas famílias haviam se retirado para São Vicente, outras para as chácaras dos arrabaldes, enquanto amigos e religiosos, empenhados em demover Diogo Pinto de tão rematada loucura, pediam-lhe
que não continuasse em seus arriscados e absurdos propósitos.
Diogo Pinto, entretanto, por mais que invocassem os homens de bom senso, e principalmente os frades do Carmo, seus vizinhos, as consequências e os resultados funestos de tal choque, não cedeu um palmo, demonstrando uma absoluta rebelação de
espírito, quase tocando ao desvairamento. Despediu-se do povo atônito que se acumulava nas redondezas, declarando que em última análise havia em suas casas um paiol, para estourar com tudo e com todos antes da rendição.
Todo o sopé do Monte Serrate cobriu-se de barracas de palha, formando a figura de três linhas, que principiavam na fonte de Itororó e seguiam até a fonte de São Jerônimo, onde hoje fica a Santa Casa de Misericórdia
(N. E.: o texto foi escrito antes da mudança dessas instalações para o bairro do Jabaquara), em comprimento
de um tiro de mosquete. Tinha assim o acampamento sua frente para os fundos da casa forte do ex-capitão-mor, onde ficava o tal paiol que ele prometera incendiar em caso de derrota.
Uma última tentativa foi feita pelos moradores, junto a Diogo Pinto, fazendo-o contemplar o acampamento da gente de Timóteo Correia, a sua força, o seu preparo, fazendo-o ver a grande superioridade das tropas do provedor e apelando para seu
espírito católico, que certamente não quereria incorrer nas iras de Deus e da Igreja.
Por sua vez, recebendo as comissões de povo e religiosos, o provedor menino e seus parentes negavam-se a desistir da punição que, por menor que fosse, tornava-se cada vez mais necessária, para exemplo e moralidade da Justiça. Era preciso,
declarava Timóteo Correia de Góis, que o réu José Pinheiro voltasse para a mesma prisão de onde o fora tirar a audácia de Diogo Pinto do Rego, e, sem tal procedimento, seria impraticável qualquer tentativa de pacificação.
Afinal, eram já passados três dias de intervenção das embaixadas populares e religiosas, sem que a situação se alterasse. A paciência dos homens do provedor e a dele mesmo já se esgotavam. Todo o corpo de armas descido dos campos de Piratininga
derramava-se pelos campos de Itororó e da Misericórdia num esplêndido espetáculo de guerra, com suas bandeiras, pequenas e grandes, a tremularem no topo das barracas, com seu vozear tumultuoso, com seus toques de trombeta, cercado de curiosos da
vila que ali vinham colher impressões e novidades.
Aprestava-se afinal o provedor para uma escalada à casa forte de Diogo Pinto, quando Domingos Dias da Silva, um primo, que andara pela vila em observação, teve uma bonita lembrança: - os canhões do Forte da Praça!
Os canhões talvez fossem o remédio para a situação.
Nove peças de artilharia de grosso calibre lá estavam, junto às amuradas do fortim, cavalgadas em carretas. Correu Domingos Dias da Silva a transmitir ao primo provedor a sua ideia. Timóteo Correia aceitou-a imediatamente, designando um corpo de
cem índios para desmontar aquelas peças e conduzi-las ao acampamento.
Horas depois, as nove peçpas estavam dispostas em ordem de tiro, de Itororó a São Jerônimo, assestadas para os fundos da casa forte de Diogo Pinto do Rêgo.
Três disparos de advertência, a pólvora seca, foram feitos pelos canhões centrais, e os calmos ares santistas se sacudiram com os poderosos estrondos.
Após tais disparos, um último aviso-proposta foi enviado pelo provedor a Diogo Pinto do Rêgo, acompanhando uma ameaça do capitão-mor, já bastante irritado. Davam-lhe uma hora para pensar e resolver; depois, ou ele entregaria o réu José Pinheiro
para ser castigado ou dar-se-ia fogo a toda a artilharia, para arrasamento e ruína de todas as fortificações e seus fortificados.
Só então reconheceu Diogo Pinto do Rêgo a inadvertência em que caíra, ele que possuía boa experiência de guerra, adquirida no tempo em que tantos serviços prestara ao Reino e tantas honras conquistara nas fronteiras de Portugal e ali mesmo, na
defesa da terra contra os índios e os corsários, rendendo-se finalmente, com declaração de arrependimento do erro que praticara.
José Pinheiro foi entregue e Timóteo Correia mandou que o recolhessem à enxovia de onde tinha sido arbitrariamente tirado, e que lhe atassem aos pés grossos grilhões, os mais grossos que existissem, símbolos da justiça vencedora.
Gritava uma parte do povo pela execução do réu e a expulsão e degradação de Diogo Pinto do Rêgo e, quando afinal toda a vida contava com isso, como punição exemplar a tantos sustos, a tantos prejuízos e perturbações além do crime essencial, houve
uma grande decepção, tanto para o povo como para a própria força que de tão longe viera e que tantos trabalhos sofrera.
Timóteo Correia de Góis, o menino de 14 anos, sobrepondo à opinião de tantos parentes, famosos na paz como na guerra, a sua opinião forte de criança representante da Lei, estabeleceu solenemente que duas horas de prisão com grilheta para José
Pinheiro e o pagamento dos 480 réis dos direitos sonegados bastariam para desafrontar a justiça e produzir os necessários frutos no espírito do povo!
Era grande a decisão; toda a vila compreendeu-a logo, começando pelos religiosos e pelos velhos. Diogo Pinto do Rêgo chorou de comoção ante a sublimidade do gesto daquele menino, que o seu mau gênio pusera em cheque.
Houve festa em Santos. Todos os sinos das igrejas repicaram festivamente, e todos os canhões salvaram em regozijo. Imediato "Te-Deum" na Igreja do Carmo coroou os acontecimentos, cantado em ação de graças, e ali, publicamente, na mesma igreja,
abraçaram-se uns e outros, os homens dos dois partidos, horas antes em campos adversos, com amplas demonstrações de cordialidade e esquecimento de rancores; nem era outra coisa que desejava Timóteo Correia, para que não ficassem resíduos de
malquerenças e prevenções entre filhos da mesma terra.
Os canhões do Forte da Praça, heróis do momento, foram por muito tempo alcunhados de "canhões da paz", porque sua missão ficara nisso e não se maculara com sangue de irmãos, e tal fato, ocorrido em princípio da gestão do provedor menino, pôs em
grande respeito e real autoridade a sua pessoa, garantindo-lhe largos anos de calmo exercício.
Mas, nem tudo estava terminado; restara do fato um rescaldo amoroso, como um final de romance. O entusiasmo que o gesto de Timóteo |Correia despertara na sociedade de então atingira, mais do que a qualquer outra pessoa, uma menina como ele, de
treze formosos anos, da melhor nobreza local, uma Leonor inesperada, cujo coração palpitou a fundo ante o romanesco da página histórica que se escrevia pela mão do varãozinho paulista, cujos olhos se deslumbraram ante a figura serena e varonil do
provedor menino.
Essa menina, de quem as genealogias conservam o nome, cheia de recatos e pudores próprios da época, florzinha de estufa, de gostos e expansões medidos pelo rigor paterno, como muitas outras, acompanhando os pais, foi também à presença de Timóteo,
para cumprimentá-lo; e aí, não resistindo a um impulso mais forte do que a imposição social e do que a própria intenção talvez, transformou seu cumprimento num abraço efusivo, emocional, sincero, à vista de toda gente.
Naquele tempo, de rígidos preceitos, o gesto impulsivo da menina foi objeto de comentários e diz-que-diz-ques maldosos, mas Timóteo Correia ainda uma vez pôs fim a tudo. Também ele se comovera ante aquela revelação, sentindo que o dedo do Destino
andava ainda ali, naquela pequena passagem, indicando-lhe rumos.
Meses depois declarava-se o noivado de ambos, e quatro anos mais tarde, em 1689, no mesmo dia em que o provedor completava os dezoito anos, celebrava-se afinal a união dos dois jovens, inspirada no mais puro e espontâneo amor.
Era o fruto de paz de uma passagem de guerra.
...Horas depois, nove peças estavam dispostas em ordem de tiro, de Itororó a São
Jerônimo...
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