BAIXADA
SANTISTA - LIVROS
A lenda no Litoral Paulista
Publicado na Revista de
História nº 5 (de São Paulo/SP, janeiro-março 1951, ano II), páginas 71 a 80. O exemplar pertencente à
Biblioteca Pública Alberto Sousa, de Santos/SP, este texto de Manuel Hipólito do Rêgo
foi cedido a Novo Milênio para digitalização, em julho de 2012, através da bibliotecária
Bettina Maura Nogueira de Sá
(ortografia atualizada nesta transcrição):
Imagem: reprodução parcial da página 71 com
o início do texto
A lenda no Litoral Paulista
[1]
O litoral paulista merece, sem favor, a designação de cenário de epopeias.
A sua beleza, de misteriosas sugestões, as suas praias e enseadas, as suas pontas e encostas, as suas ilhas e montanhas, os seus penhascos, os
seus vales, as suas águas, subjugam docemente os seus visitantes em perene admiração e deixam nos corações dos seus naturais o desejo irresistível
de viver sempre nesse ambiente, sentimento que só encontra correspondência na imensa saudade dos que dele se afastam.
Nessa característica sentimental do povo litorâneo, influíram também, forçoso é que se diga, além do meio natural, as qualidades dos ancestrais,
o bom e heroico português que aqui nos deixou quase que integralmente os seus defeitos e as suas virtudes.
Para a epopeia, oferece o litoral paulista acontecimentos e fatos de importância desmarcada.
Sem se falar na fundação de São Vicente, na fundação de Santos, de São Sebastião, Vila Bela, Caraguatatuba, Ubatuba, Itanhaém, Iguape, Cananéia,
mesmo sem se entrar no estudo e na apreciação do significado básico dessas fundações, do esforço hercúleo que elas representam, aí está o feito de
Nóbrega, Anchieta e Adôrno, de Cunhambebe e Pindoboçu salvando a integridade do Brasil no armistício de Iperoig. Aí está a resistência ao corsário,
heroica e profícua. Aí está no estabelecimento dos engenhos como fatores dos primórdios da nossa vida econômica, bem como as armações para a pesca
da baleia, empresa em que davam os homens do litoral as provas mais impressionantes da sua coragem.
Não se esqueça também o bandeirismo, a marcha para o sertão desconhecido e misterioso, que iniciaram, em busca do ouro e, assim, devassaram,
alargaram e conquistaram o Brasil, a mais preciosa de todas as gemas.
Zona onde, compreendendo todas as suas localidades, nasceram poetas, pintores e músicos notáveis, inventores e homens públicos dos mais ilustres,
que enchem de glórias o seu passado, não se estranha que aí também tivesse nascido, no século XVII, o verdadeiro pioneiro dos bons caminhos, o homem
apaixonado pelo problema dos transportes, padre Manuel Alves de Faria Dória, natural de São Sebastião, que sonhou e realizou, à custa dos mais
ingentes esforços, a ligação da sua cidade natal ao planalto, abrindo através da mata a estrada carroçável que, apesar de violentamente trancada
pelos caprichos do partidarismo, conserva até hoje o seu nome, indelevelmente, na memória do povo, como a responder, tal justo castigo, à maldade
dos seus adversários.
Ao lado dessa elite, desses vultos de escol que são muitos e que merecem a atenção dos historiadores e biógrafos em estudos que provoquem
edificantes emulações nos contemporâneos, manda a justiça que não fiquem esquecidos os anônimos, os fortes mas resignados habitantes da zona,
aqueles que nunca a abandonaram, presos aos seus misteriosos amavios, aqueles que escreveram essa grandiosa epopeia das canoas, aqueles que nessas
embarcações sem convés, algumas com capacidade de vinte toneladas, demandavam, remando, o porto de Santos, vindos de Ubatuba, Caraguatatuba, Vila
Bela, São Sebastião.
Era o esforço para se não deixarem isolar dos maiores centros, era a força indomável do comércio, era a irresistível atração que Santos sempre
exerceu sobre os filhos das outras localidades do litoral.
Cada uma dessas canoas, com seus nomes evocativos, existe ainda na tradição da zona, lembrando lances de heroísmo ou naufrágios dolorosos.
Não se discute, por ser matéria pacífica, a importância econômica do litoral em tempos mais remotos. Discute-se o porquê, com exceção de Santos,
ficou tão rica e nobre zona tanto tempo abandonada, para só agora apresentar começos de renascimento.
A verdade é que foi rica e procurada no passado. Para comprová-lo, se não bastarem as deficientes estatísticas, aí estão as ruínas das velhas
fazendas de cana, as habitações solarengas e as fortificações espalhadas por toda a costa.
Em São Sebastião e Vila Bela há inúmeros fortes já estudados, aliás, por esse grande artista, amoroso praiano, que se chamou
Benedito Calixto.
Há o do Araçá, da Praia da Ponta da Cruz, da Sapituba, da Ponta das Canas, Armação, o da Princeza em Vila Bela, todos em ruínas, como os do Sul e
os da Bertioga, onde o de nome São Luís foi artilhado e comandado, no século XVII, pelo coronel Antônio Francisco da Costa.
Marcante característica dos habitantes do litoral, foi o seu espírito religioso, o seu sentimento profundamente católico, como, por felicidade,
ainda o é e o será cada vez mais.
Para prova do desvelo religioso dos antepassados aí estão, no Sul, como centros de Fé, a matriz de Cananéia e o suntuoso Santuário do Bom Jesus
de Iguape.
Em Santos, a Ermida de Nossa Senhora do Monte Serrate, o Convento de Santo Antônio do Valongo e dos Beneditinos. Aí estão os velhos templos de
Itanhaém e São Vicente.
Em São Sebastião, lá está a velha matriz repleta de evocações e o convento de Nossa Senhora do Amparo, dos beneméritos franciscanos, e em que se
transformou, no século XVII, a antiga Capela de Nossa Senhora dos Desamparados, erigida por João de Abreu, um dos colonizadores da região.
Em Vila Bela a igreja de Nossa Senhora da Ajuda, em Caraguatatuba a de Santo Antônio, em Ubatuba a matriz, todas cheias de tradições e com
ambiente impregnado de Fé.
Além desses templos de vulto, existem numerosas capelas e cruzes, todas com os seus cultos e as suas tradições, muitas ainda bem conservadas,
como a de Sant'Ana, na velha fazenda que tem o nome desse glorioso orago, em São Sebastião, e cujo Breve Apostólico que lhe concedeu prerrogativas
data de 1782 e se encontra no arquivo do Autor.
Não admira, pois, que nesse ambiente tão cheio de fatos históricos e tão repassado de emoções, existam as lendas e as ficções nas quais sempre
há, porém, a verdade de um grande sentimento.
Não se propõe o Autor destas notas a contar todas, nem a rememorar as histórias dos tesouros ocultos, que talvez só existam na imaginação do
povo, como o da Ilha do Bom Abrigo, já explorado literariamente por esse delicado poeta e profundo historiador do litoral que é Paulino de Almeida.
Passa a referir-se, apenas às seis mais vulgarizadas, algumas delas já postas em letras por finos escritores e jornalistas, como Antônio Manoel
Fernandes, santista de saudosa memória, e Francelino Cintra.
São as seguintes: lenda do milagre, lenda do castigo, lenda do culto, lenda da fé, lenda do mistério, lenda do amor.
Lenda do Milagre
Era no tempo dos piratas. Cawendish, Cook, Fenton, Roggewyn e outros faziam proezas. A nascente Vila de São Sebastião, que tomou esse nome da
majestosa ilha em frente, onde se levanta, graciosa, Vila Bela da Princesa, já entesourava riquezas. Cobiçaram-nas os piratas.
Um deles resolveu o assalto, mas receava a reação dos habitantes, entre os quais sabia que havia intrépidos sertanistas. Recorreu ao ardil.
Escondeu os seus navios na face Norte da ilha e mandou à terra um marinheiro que falava português. Era maneiroso. Foi bem acolhido pelos
sebastianenses, que o tinham como um náufrago.
Dias depois desaparecera da povoação, voltando para bordo do navio capitânia no batel que havia escondido em praia deserta. Levava preciosas
informações quanto às riquezas, às fortificações e aos hábitos do povo. Sabia do momento em que o povoado estava entregue somente aos velhos, às
crianças e às mulheres, por se ausentarem para os trabalhos das fazendas e das entradas para o sertão, os homens válidos nas pelejas.
Assentado o assalto, voltou o espião para orientar o desembarque; tocado, porém, pela hospitalidade do povo, arrependeu-se da vileza, denunciando
o plano dos piratas, mas quando as naus inimigas já bordejavam em demanda do canal.
Dado o alarme, organizaram a resistência como puderam. Era porém insuficiente.
Foi então que o velho vigário, homem de excelsas virtudes, levou para a igreja do povoado os velhos e as crianças que não podiam pegar em armas.
Foram orar, combater o inimigo de outro modo, pedir ao glorioso Padroeiro, que fora militar, o milagre de salvar o seu povoado, livrando os
habitantes dos sofrimentos inenarráveis que anteviam.
Estavam nessa súplica, cheios de fé, quando, em certo momento, levantando o velho padre os seus olhos para o altar, ali não viu a imagem do
glorioso santo. Era o sinal do milagre! O desembarque não se dera, antes fugiam os corsários para o largo, apressadamente, em manobras desordenadas
como que tomados de súbito pavor.
Houve depois quem contasse o estranho fato. Fugiram os piratas porque avistaram na praia de São Sebastião, em frente ao povoado, grande e
aguerrido exército, sob o comando de jovem e ágil general de espada desembainhada e capa solta ao vento.
Era o padroeiro com as suas hostes, que ouvira a súplica sincera do bom padre, dos velhos e das crianças, e viera em defesa da terra que o
escolhera para protetor. Era o prodígio da Fé.
Efeito da lenda ou império de maravilhoso misticismo, a verdade é que, em São Sebastião, não há quem se não emocione quando a majestosa imagem do
padroeiro sai da velha matriz para a procissão de 20 de janeiro. Sentem todos a impressão de absoluta segurança, como sob a proteção divina, e o
ambiente da legendária cidade fica todo repassado de graça...
Lenda do castigo
A função ou batuque, a cirandinha, o caranguejo, a quebra-chiquinha são as danças prediletas dos praianos. De uma ou outra vez também fazem
congadas ou dançam o jongo. Há entre eles exímios violeiros e cantadores, muitos repentistas, principalmente os chamados versistas das Folias que se
organizam para angariar donativos destinados às Festas Religiosas, notadamente do Divino.
Em noites enluaradas e calmas é um prazer ouvi-los cantar em suas canoas, ao ritmo das remadas. E as suas cantigas não são irreverentes. Todas se
inspiram em motivos amorosos, religiosos, costumeiros, panorâmicos e naturais.
O rádio, o contato com outra gente, têm modificado muito a cantoria e a dança dos praianos. Há, porém, ainda os que sabem organizar uma função e
que se levantam nas belas madrugadas de dezembro e janeiro para cantar Reis.
Nos tempos antigos, então, não perdiam oportunidades. Qualquer dia santo festivo era motivo para folganças. Respeitavam, porém, como ainda
respeitam, a grande Semana da Paixão. Nesses dias nem temperavam as violas. Ai daquele que transgredisse o preceito. Ficava mal visto. Dele todos se
afastavam.
No trecho encantador que vai da cidade de São Sebastião para o Norte, em demanda de Caraguatatuba, e que João Pedro Cardoso, homem viajado,
classificou como a paragem mais bela do mundo, há um recanto, perto do forte de Sapituba, que encerra uma história sacrílega.
Existia aí uma casinha onde se reuniam os pescadores à espera da hora das pescarias. Em uma noite de Sexta-Feira da Paixão, estavam nessa casa
alguns deles esperando a madrugada para lançarem suas redes.
Quebrando o respeitoso silêncio que a todos envolvia, entrou casa a dentro, de viola em punho, um guapo rapaz que propunha um batuque. Ninguém
quis atendê-lo. Abriu o garrafão de pinga que levara. Todos beberam, menos uma velha e uma criança que moravam na casinha. Esquentaram-se os
pescadores. Perderam o respeito à grande Noite. Entraram a dançar.
A criança fugia do violeiro, notando que ele tinha pé de pato. O demônio sempre se denuncia, por mais dissimulado que ande.
A velha, estarrecida diante do sacrilégio, tentou impedir a continuação dos folguedos.
Respondeu-lhe o estranho violeiro, pulando para o meio da sala, tocando e cantando uma quadrinha irreverente. Era demais! Persignou-se a
velhinha, saindo da casa com a criança.
A própria natureza revoltou-se. Houve um estrondo que repercutiu através da noite calma de luar. A casa afundou.
Ainda hoje, em noite de Sexta-Feira da Paixão, não se aproximam os pescadores desse local, pois aí se ouvem as danças e as estranhas cantigas, de
mistura com as imprecações desses infelizes sacrílegos, em castigo infernal, por não terem sabido respeitar o Criador.
Lenda do Culto
Garapocaia, pitoresca praia desse jardim encantado que é a face ocidental da Ilha de São Sebastião, mereceu do imortal
Martins Fontes esses versos maravilhosos:
" Jamais hei de
esquecer, Garapocaia,
Teu aspecto selvático e reinol.
Quando ouvia fonolitos na praia,
As itatengas badalando ao sol!
As pedras cantam nas areias de ouro,
os embates dos verdes vagalhões:
Há sons de tintinábulos, em coro,
Redobrar de bronteus e carrilhões!
Não se repinta a sensação de espanto
Dessas litofonias ao luar:
A miragem, ao longe, é um campo-santo,
Onde soluça o cantochão do mar!
Velhas casas, ruínas avoengas,
Moitas de brejaúa e cragoatá...
E em perequê perene, as itatengas
Troando desde o Zabumba ao Mangaguá!
Tem o sabor da bárbara beleza,
Do caju, do cajá, do cambuci,
Degustada na língua portuguesa,
A acidez do vocábulo tupi.
Para impedir, em desespero horrendo,
A horda estrangeira, cada vez maior,
Nessas rochas, os íncolas batendo,
Convocavam as tribos de em redor!
Sagrada sejas tu, praia selvagem,
Cheia de orgulho, de pudor hostil,
Em que os calhaus sinfônicos reagem
Contra a invasão nos templos do Brasil! "
Nessa praia se encontram as "Pedras do Sino" que o grande poeta tanto exaltou.
Pedreiros estranhos, que ultimamente lá estiveram, quase destruíram esta maravilha, quebrando as pedras para construções. Algumas ficaram na
reação sagrada, a que alude o poeta. Não houve ainda explicação científica plausível para esse fenômeno. No local, quando tocadas, soam essas pedras
como sinos. Tiradas dali, perdem a sonância.
A lenda, porém, vulgarizou a causa dessa maravilha.
Em tempos passados, pescadores que se encontravam no canal de São Sebastião, em altas horas da noite, viram uma grande caixa cercada de luzes.
Dizem que era a imagem do Bom Jesus de Iguape que por ali passava, abençoando e ligando por laços indissolúveis o litoral paulista.
Não n'a saudaram os homens. Não repicaram os sinos da Igreja da Armação. E o que não fizeram os homens, fê-lo a natureza. Ao contato das ondas,
soaram as pedras em homenagem e como culto à Imagem do Salvador, que passava.
E desde então ficaram sonantes como sino.
Lenda da Fé
No caminho de São Sebastião para Santos se encontra uma das mais antigas fazendas do Litoral e onde se deu uma sangrenta revolta de escravos. É a
Fazenda do Gaecá, na praia do mesmo nome, e onde os piedosos frases carmelitanos, seus proprietários, tiveram uma capela sob a invocação de Nossa
Senhora da Luz.
Aí nessa praia existe uma gruta que o povo denominava "Buraco do Bicho". É curiosíssima esta caverna que se abre para a praia em rosca feita na
rocha e que se vai estreitando para os fundos até terminar em zero no centro do penhasco, como se fosse feita por um gigantesco trado.
Dizem que uma colossal serpente vivia dentro desta rosca que, segundo versão antiga, fora cavada pelo próprio monstro.
Não saía da toca, mas atraía as embarcações que tentassem entrar à barra, devorando os tripulantes.
Anchieta, o santo evangelizador do Brasil, que fez das lindas praias de Ubatuba a página em que escreveu o seu poema à Virgem, Anchieta, o grande
apóstolo da civilização cristã, impressionado com o estranho fato, que apresentava como obstáculo ao progresso da região que tanto amava, resolveu
aniquilar o terrível e fantástico bicho.
Subiu no penhasco. Amarrou-se a uma árvore e, esconjurando o monstro, espargiu água benta sobre a grande toca.
Ouviu-se grande estrondo. Era a serpente que, vomitando o sangue de suas vítimas, saía da toca onde vivia enquistada, abrindo-se o mar imenso à
sua passagem em demanda do ignoto.
Era a Fé vencendo o Mal.
Dentro dessa caverna pinga continuadamente água cristalina e pura, à qual os antigos atribuíam efeitos miraculosos, acreditando que era água
benta espargida pelo padre.
Merece reflexão o profundo simbolismo desta lenda.
Lenda do mistério
Ao Sul da Ilha de São Sebastião, bem ao largo, como que perdido na imensidade das águas, levanta-se o arquipélago dos Alcatrazes. Apresenta o
aspecto de um penhasco procurado pelas aves marinhas, que ali fazem pouso.
Dele, portanto, não se pode dizer o que disse Joaquim Sarmanho de outro penhasco, nestes sugestivos versos:
" Junto ao costão do
mar, esse painel sombrio,
Me faz transir de horror,
Me faz tremer de frio...
Sobre sua face, o sol não tem brilho e calor,
Como se nela houvesse a luz crepuscular,
Feita da névoa em flor da região polar...
Enorme bloco agudo ao meio bipartido,
Soergue para o céu áscuas de granito;
Estático, semelha um monge acometido
De um súbito furor contra Deus Infinito!...
Negro, tétrico, abrupto, em torno dele as aves
Marinas, que o tufão, rugindo, à terra impele,
Esvoaçam piando; enquanto ao longe as naves,
Lutam contra o furor da vaga que as repele...
Sobre ele não medra,
Nem grão, nem flor: que a pedra
Não abre o duro seio aos ninhos e aos arbustos,
Não tem brisa aromal nem pássaros cantores...
Estéril, pavoroso, os dois picos adustos,
Não recebem da selva os cálidos vapores!...
Entre os homens, também, há desses espantalhos:
Almas feitas de pedra... Almas sem coração!...
- Quando os virdes surgir, fugi pelos atalhos,
Como as aves fugindo à pedra do costão... "
Esse aspecto comum dos Alcatrazes transmuta-se, porém, conforme o tempo, em diferentes miragens.
Aparece às vezes como um grande corcel, como uma imensa catedral, como um palácio, um transatlântico moderno ou um veleiro.
Dizem que é lugar encantado, remanescente da Atlântida ou fragmento deixado pelo cataclismo que separou a América Meridional da África, fazendo
desaparecer aquele lendário continente de fabulosa civilização.
Afirma a tradição que os indígenas e os antigos temiam esse arquipélago, tendo-o como misterioso por causa talvez das suas miragens, e que o
encantamento desapareceria no dia em que um casal de gente preta levasse para lá sete casais de bichos pretos.
Estará nisso a explicação de possível origem africana desse lindo penhasco? Teria então o arquipélago outros mistérios?
A versão em voga era que os Alcatrazes, com as suas miragens, como que manifestavam a esperança de voltar ao que foram e que, em certo dia, um
grande estrondo faria desaparecer o penhasco para, em lugar dele, ressurgir um continente com cidades fulgurantes de progresso.
Nota-se aí, embora envolta na ficção e no mistério, a crença nas forças da esperança e da vontade atribuídas pela imaginação do povo, até às
próprias coisas inanimadas.
Lenda do amor
A praia da Fazenda, em São Sebastião, é um dos mais formosos lugares do litoral paulista. Aí se encontra em vale esplêndido a secular Fazenda de
Sant'Ana com o seu sobrado solarengo, e seus aquedutos, as suas casas de engenhos e senzalas. Era grande produtora de açúcar, aguardente e café.
Nela está a Capela de Sant'Ana, relíquia do passado, privilegiada por força de antigo Breve Apostólico. Exerceu essa propriedade e a sua gente
grande influência na vida econômica e social da zona.
Em frente, para que nada falte à contemplação maravilhosa de seus panoramas, Vila Bela se apresenta, na Ilha, como uma visão encantada.
Estende-se essa praia, em curva graciosa, entre duas pontas: a do Partido ao Norte, a da Cruz ao Sul. A esta última se prende a bela lenda que o
Autor classificou como lenda do amor, mas à qual comumente se dá o título de "Lenda do Pontal da Cruz".
Em uma casinha, entre coqueiros e laranjeiras, bem perto dessa ponta, vivia um velho pescador, em companhia de uma filha de grande beleza e
incomparável bondade.
Dela se enamorou um guapo rapaz habitante da Ilha em frente. Para vê-la todas as tardes, atravessava o canal em frágil canoa. E enlevados viviam
os dois, felizes como ninguém mais podia ser.
Em certo dia, porém, passou por ali um outro rapaz, vindo da Corte, filho de um cirurgião que vivia na cidade. Era maneiroso, romântico,
atraente. Também enamorou-se da filha do velho pescador. Prometeu-lhe casamento.
Nova paixão nasceu no coração da moça, que passou a ficar triste e a definhar. Era o choque de sentimentos em coração sem maldade.
Já as tardes não eram formosas para o namorado que atravessava o canal em frágil canoa. Desesperava-se com a moléstia da namorada. Procurava
remédios por toda a parte.
Percebendo, porém, a causa da tristeza da moça e pensando mais na felicidade dela do que na sua, tomou uma trágica resolução, oferecendo-se em
holocausto ao que lhe parecia ser salvação de sua amada.
Em uma tarde agitada pelas brisas do Norte, tomando a canoa de volta para a Ilha, abandonou o remo e a vela, deixou a pequena embarcação sem
governo, entregue ao vento e às ondas. Uma rajada mais forte virou a canoa e o pobre rapaz pereceu afogado.
No dia seguinte, foi o seu corpo encontrado sobre as pedras da ponta. De saudades morreu a moça e nas pedras dessa ponta, em memória daquele
sacrifício, erigiram uma cruz de pedra, e perto dela, juntinhos, nasceram dois abricoeiros, que lá ainda estão e o povo contempla com respeito e
emoção, como símbolos daquele amor sem igual, que acabou em sacrifício e saudades.
Manuel Hipólito do Rêgo
[1]
Trabalho escrito, em 1939, para o número inicial, até hoje inédito, da Revista do Instituto Histórico e Geográfico de Santos, do qual o Autor
foi o primeiro presidente em exercício, e publicado, postumamente, por interferência do seu particular amigo, dr. Edgard de Cerqueira Falcão, que se
encarregou da revisão (Nota da Redação). |
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