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Publicado originalmente pelo editor de Novo Milênio no caderno Informática do jornal A Tribuna de Santos, em 31/8/1999.
Última modificação em (mês/dia/ano/horário): 01/05/00 11:07:37
'ENCARTA'
Enciclopédia é produzida ao gosto do freguês 

Microsoft já muda o passado, iniciando uma perigosa tendência
 
"Afinal, que importava o inventor dos aviões? (...) Serás totalmente eliminado da História. (...) Serás aniquilado no passado e no futuro. Não terás existido nunca. (...) Esqueceste-te do duplipensar? (...) Duplipensar quer dizer a capacidade de conservar simultaneamente na cabeça duas crenças contraditórias e aceitá-las ambas. (...) é um vasto sistema de fraude mental"  
(1984, de George Orwell)

Carlos Pimentel Mendes
Editor

Quem inventou o avião? A lâmpada? O telefone? O Curdistão existe ou não existe? Não espere respostas confiáveis na enciclopédia digital Encarta, da Microsoft: conforme o lugar em que ela for comercializada, muda o nome do inventor, e até mesmo uma nação pode ser suprimida dos mapas, tudo em nome de garantir as vendas. O que os Estados Unidos condenaram nos países socialistas - a alteração e supressão de fatos históricos -, uma empresa americana começa a fazer em larga escala, ao produzir uma enciclopédia com versões diferentes da História, das Ciências e até da Geografia, conforme o país em que serão vendidas.

Se não houver uma reação firme contra esse desrespeito para com a História, a Geografia e as Ciências em geral, talvez se cumpra mesmo a profecia de Orwell, de que "por volta de 2050, ou talvez mais cedo, todo o verdadeiro conhecimento (...) terá desaparecido. A literatura do passado terá sido destruída inteirinha."

'Duplipensar' – A descoberta foi feita por jornalistas do norte-americano The Wall Street Journal - e é citada na edição de 17/8/1999 da revista Exame. Eles compararam algumas traduções da enciclopédia Encarta, da Microsoft, e descobriram, por exemplo, que nas edições americana, brasileira e alemã Alexander Graham Bell aparece como o inventor do telefone. Na versão italiana, o inventor é Antonio Meucci - que nas outras sequer é citado. Na Encarta inglesa, o britânico Joseph Swan inventou a lâmpada, enquanto na edição americana o mérito é dividido entre ele e Thomas Alva Edison.

Na edição para a Índia, a região da Caxemira aparece nos mapas "refletindo a visão local da Geografia". Da mesma forma, o Curdistão desaparece dos mapas da enciclopédia vendida na Turquia. E, quanto à invenção do avião, na edição brasileira é atribuída a Alberto Santos Dumont. Na edição americana, são os irmãos Wright, e a biografia do aviador brasileiro sequer menciona o 14 Bis, mas menciona um acidente que ele sofreu em 1902 ao tentar cruzar o Mediterrâneo num dirigível - informação omitida na edição brasileira.

Na edição inglesa de 1995, os vôos de Santos-Dumont ainda eram citados
Defesa pífia – A Microsoft se defende, dizendo que cada versão é adaptada a cada mercado por pesquisadores locais de várias áreas do conhecimento, que não apenas traduzem, mas reescrevem todo o conteúdo. Bill Gates, como citado em Exame, diz: "A longo prazo, expor as pessoas a perspectivas de várias partes do mundo é saudável. Os americanos se beneficiam quando vêem o ponto-de-vista asiático ou europeu de eventos culturais e científicos importantes, e vice-versa".

A contradição da Microsoft está no fato de apresentar apenas uma das "perspectivas" e suprimir totalmente as demais, para cada público, de forma a que o usuário sequer desconfie, por essas publicações, que possam existir vozes discordantes de determinadas afirmações. E a fraude está em usar o mesmo nome - Encarta - para publicações tão diferentes entre si, passando a imagem de que cada versão apenas acrescenta informações mais relevantes para a região em que será consultada.

Esse "duplipensar" é o "vasto sistema de fraude mental" que precisa ser combatido por todos. Uma coisa é incluir na enciclopédia brasileira informações mais detalhadas sobre a viagem de Cabral. Outra, bem diferente, é reescrever a História e mudar a Geografia de acordo com a cara do freguês. Pense duas vezes antes de adquirir um produto, dito cultural, de uma empresa que considera tais fraudes como normais. Para mim, ao menos, esta "enciclopédia" digital não é mais recomendável e confiável sequer para um trabalho escolar dos mais simples.