'ENCARTA'
Enciclopédia é produzida
ao gosto do freguês
Microsoft já muda o
passado, iniciando uma perigosa tendência
"Afinal,
que importava o inventor dos aviões? (...) Serás totalmente
eliminado da História. (...) Serás aniquilado no passado
e no futuro. Não terás existido nunca. (...) Esqueceste-te
do duplipensar? (...) Duplipensar quer dizer a capacidade de conservar
simultaneamente na cabeça duas crenças contraditórias
e aceitá-las ambas. (...) é um vasto sistema de fraude mental"
(1984,
de George Orwell)
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Carlos Pimentel Mendes
Editor
Quem
inventou o avião? A lâmpada? O telefone? O Curdistão
existe ou não existe? Não espere respostas confiáveis
na enciclopédia digital Encarta, da Microsoft: conforme o
lugar em que ela for comercializada, muda o nome do inventor, e até
mesmo uma nação pode ser suprimida dos mapas, tudo em nome
de garantir as vendas. O que os Estados Unidos condenaram nos países
socialistas - a alteração e supressão de fatos históricos
-, uma empresa americana começa a fazer em larga escala, ao produzir
uma enciclopédia com versões diferentes da História,
das Ciências e até da Geografia, conforme o país em
que serão vendidas.
Se não houver uma reação
firme contra esse desrespeito para com a História, a Geografia e
as Ciências em geral, talvez se cumpra mesmo a profecia de Orwell,
de que "por volta de 2050, ou talvez mais cedo, todo o verdadeiro conhecimento
(...) terá desaparecido. A literatura do passado terá sido
destruída inteirinha."
'Duplipensar' – A descoberta
foi feita por jornalistas do norte-americano The Wall Street Journal
- e é citada na edição de 17/8/1999 da revista Exame.
Eles compararam algumas traduções da enciclopédia
Encarta, da Microsoft, e descobriram, por exemplo, que nas edições
americana, brasileira e alemã Alexander Graham Bell aparece como
o inventor do telefone. Na versão italiana, o inventor é
Antonio Meucci - que nas outras sequer é citado. Na Encarta
inglesa, o britânico Joseph Swan inventou a lâmpada, enquanto
na edição americana o mérito é dividido entre
ele e Thomas Alva Edison.
Na edição para a Índia,
a região da Caxemira aparece nos mapas "refletindo a visão
local da Geografia". Da mesma forma, o Curdistão desaparece dos
mapas da enciclopédia vendida na Turquia. E, quanto à invenção
do avião, na edição brasileira é atribuída
a Alberto Santos Dumont. Na edição americana, são
os irmãos Wright, e a biografia do aviador brasileiro sequer menciona
o 14 Bis, mas menciona um acidente que ele sofreu em 1902 ao tentar
cruzar o Mediterrâneo num dirigível - informação
omitida na edição brasileira.
Defesa pífia – A Microsoft
se defende, dizendo que cada versão é adaptada a cada mercado
por pesquisadores locais de várias áreas do conhecimento,
que não apenas traduzem, mas reescrevem todo o conteúdo.
Bill Gates, como citado em Exame, diz: "A longo prazo, expor as
pessoas a perspectivas de várias partes do mundo é saudável.
Os americanos se beneficiam quando vêem o ponto-de-vista asiático
ou europeu de eventos culturais e científicos importantes, e vice-versa".
A contradição da Microsoft
está no fato de apresentar apenas uma das "perspectivas" e suprimir
totalmente as demais, para cada público, de forma a que o usuário
sequer desconfie, por essas publicações, que possam existir
vozes discordantes de determinadas afirmações. E a fraude
está em usar o mesmo nome - Encarta - para publicações
tão diferentes entre si, passando a imagem de que cada versão
apenas acrescenta informações mais relevantes para a região
em que será consultada.
Esse "duplipensar" é o "vasto
sistema de fraude mental" que precisa ser combatido por todos. Uma coisa
é incluir na enciclopédia brasileira informações
mais detalhadas sobre a viagem de Cabral. Outra, bem diferente, é
reescrever a História e mudar a Geografia de acordo com a cara do
freguês. Pense duas vezes antes de adquirir um produto, dito cultural,
de uma empresa que considera tais fraudes como normais. Para mim, ao menos,
esta "enciclopédia" digital não é mais recomendável
e confiável sequer para um trabalho escolar dos mais simples. |