NOTÍCIAS 2010
O peru de dona Gertrudes
Mario Persona [*]
Não consigo dormir. E quem consegue? Culpa do efeito
borboleta. Aquele que diz que o bater de asas de uma borboleta no Brasil pode causar um tornado no Texas. Se os terroristas ouvirem
isso vão querer se mudar para cá e criar borboletas.
Mas faz sentido, principalmente se você pensar que os gases liberados na atmosfera pelo seu carro podem derreter o gelo do Ártico
por causa do tal efeito estufa. E é por isso que não consigo dormir. Estou me sentindo estufado e temo causar uma catástrofe em
algum ponto do planeta.
Está tudo interligado, tudo interconectado. Vivo num imenso condomínio mundial. Se seguro o elevador, meu vizinho de cima pode
perder o emprego. Se compro tênis no camelô, estimulo o trabalho escravo no oriente. Se compro diamante, patrocino o genocídio na
África Central. Sou mais um responsável por todos e todos por um, num planeta com mais de 6 bilhões de mosqueteiros.
Sofro ao saber que alguém na Rússia vai ficar sem hamburger porque alguém no Brasil se esqueceu de vacinar a vaca. Preocupo-me
quando um frango espirra no Vietnã e uma andorinha sozinha vai fazer verão na Romênia levando o vírus.
Será que é o excesso de informação que faz isso comigo? Deve ser. Antigamente eu só sabia do que acontecia com meus primos e minha
tia. Meu mundo cresceu com a abundância de informação e eu também. No meu caso é o efeito estufa, como já disse. Esse excesso de
informação que me bombardeia diuturnamente tem lá o seu lado bom para um cronista como eu. Dependo de fragmentos do cotidiano para
escrever e meu e-mail traz todos os dias um caminhão de matéria prima.
É claro que junto vem muito lixo, mas também recebo casos que posso reciclar, como o de dona Gertrudes - o nome eu inventei - que
pode ser real, lenda ou trote, não sei. O que sei é que, se existir, ela é tão ou mais preocupada do que eu. Por isso decidi
escrever minha versão reciclada da história de autor desconhecido que circula na Internet, para dar a ela um sentido mais
educacional.
Politicamente correta, socialmente correta, ecologicamente correta, seja-lá-o-que-for correta, assim é dona Gertrudes. Só para você
ter uma idéia, em sua cozinha há 4 cestinhos de lixo para materiais recicláveis, um de cada cor: vermelho para plásticos, amarelo
para metais, azul para papel e verde para vidro.
E na garagem tem mais: preto para madeira, laranja para resíduos perigosos, branco para materiais hospitalares, marrom para
orgânicos e cinza para não-recicláveis. Você acredita que a mulher tem até um cesto de lixo roxo? É para as velhas radiografias, que
ela acha que são radioativas.
Quando não está caminhando ou usando sua bicicleta ou o transporte público, seu carro queima álcool, cinco vezes menos poluente que
a gasolina. Sua impressora até aprendeu a ler, de tanto ela imprimir do outro lado, e quando vai ao supermercado, leva sua própria
sacola para reduzir o consumo de sacos plásticos. A menina do caixa, boba, acha graça.
Refrigerante em garrafa PET? Nem pensar. Só suco de fruta. As lâmpadas da casa ela já trocou pelas econômicas, só toma banho frio e
rapidinho, e ai do filho que deixar algum eletrodoméstico ligado na tomada com aquela luzinha em estado de espera. Será que preciso
dizer que ela escova os dentes com a torneira da pia fechada e usa a água suja da máquina de lavar roupa para lavar o quintal?
Carne de vaca não come mais, por causa dos 25% do efeito estufa causados pelo escapamento do animal. Sua dieta de alimentos
orgânicos e integrais só abre a porteira para peixes e aves. E quando a mulher viaja para o campo, leva um saco de sementes de
árvores e arbustos para espalhar. Mais verde do que dona Gertrudes, só o seu Garcez, o marido, que sofre um pouco do fígado. Até
parou de fumar para ver se resolve.
Toda essa preocupação deu aos filhos a idéia de aprontarem com o peru da ceia de Ano Novo. Justo com o peru, que Dona Gertrudes
criou só com alimentação natural, massageou usando técnicas de Do-In e tentou, sem sucesso, fazer a ave aprender Yoga. Até
homeopatia ela usou quando o peru andou esquisito.
Dizem - mas não acreditei - que antes da execução ela usou acupuntura para anestesiar o peru e amaciar a carne. Na minha opinião o
que ela usou mesmo foi a velha cachaça, como se fazia antigamente, despejada em um funil goela abaixo. Depois, temperou naturalmente
com sal não-refinado, vinagre de maçã e ervas orgânicas, e colocou a ave no forno.
Foi só virar as costas e os filhos tiraram o peru do forno, esvaziaram a ave de seu recheio e enfiaram no lugar um franguinho, o
menor que encontraram no supermercado. Tapado o orifício com farofa para disfarçar, devolveram o peru ao forno.
À noite, cercada pela família, a orgulhosa dona Gertrudes meteu a faca na ave e foi destrinchando, enquanto se gabava de suas
preocupações ecológicas e sociais no preparo. Ao descobrir o franguinho assado no interior da ave, gritou de comoção e horror antes
de desmaiar:
- Meu Deus! Assei uma perua grávida!
[*] Mario Persona é escritor, palestrante e consultor de
comunicação e marketing. Texto disponível em seu
site.
|