Quando
Eric Arthur Blair, que nunca foi primeiro ministro, escreveu 1984 sob o pseudônimo de George Orwell, ele não imaginou que o "Big
Brother" acabaria virando reality show.
No livro, o bordão "Big Brother is Watching You" oprimia o povo através das onipresentes teletelas bidirecionais do regime
totalitário. Em 1949, quando o livro saiu, a TV já existia, mas a ideia de vir com câmera era novidade e causava pavor. Hoje
ficaríamos apavorados por saber que ela vinha sem controle remoto.
Se você me perguntar se tenho medo de um regime totalitário vigiando seus cidadãos, minha resposta é não. O que me apavora é um
regime totalitário cujos cidadãos vigiem uns aos outros. Se George tivesse conhecido a Internet, a frase do terror teria sido "Little
Brother is Watching You!".
Governos totalitários surgem com o apoio do povo. Foi assim com Stalin, Hitler, Mussolini, Salazar, Tito, Saddam, Fidel... Enquanto
o povo estiver unido, o ditador jamais será vencido. O ditador é apenas a personificação de anseios coletivos.
Quando o Rei Davi cometeu um pecado e Deus deixou que ele escolhesse seu castigo, sua resposta foi: "Prefiro cair nas mãos do
Senhor, pois é grande a sua misericórdia, e não nas mãos dos homens". O povo é sempre mais implacável.
Na mesma Bíblia o profeta Daniel sonha com uma estátua de diferentes metais. Do mais macio ao mais resistente - ouro, prata, bronze
e ferro - eles representam sucessivamente cinco reinos históricos. O quinto, e mais terrível, é uma mistura de ferro e barro - poder
e humanidade.
A Internet deu poder ao povo, que agora está equipado para massacrar. Se você duvida, veja o que aconteceu com Boris Casoy. Na
última noite do ano ele fez um comentário ofensivo aos garis em "off", sem saber que estava em "on". Horas depois o
vídeo batia recordes de audiência no Youtube, enquanto milhares de blogs preparavam a corda para o âncora do telejornal.
Ninguém nunca pensou em boicotar o programa do Chaves ou pedir a demissão do Kiko por gritar "Gentalha! Gentalha!". Mas com o Boris
é diferente. Ele não é um mero apresentador de telejornal. Ele é um juiz da notícia, armado do bordão "Isto é uma vergonha!". No
gramado há 22 jogadores que cometem toda sorte de erros, mas é a cabeça do juiz que o povo quer.
Há um certo prazer ao flagrarmos um delito, pois isso oblitera nossas próprias faltas. Quando esse prazer vem em uníssono ocorre o
linchamento, que tanto pode ser de uma estudante de saia curta, como de um jornalista numa saia justa. É o efeito "estouro da
boiada", conhecido até dos investidores. Empresas inteiras já foram linchadas assim.
Em um mundo de 6 bilhões de "Little Brothers", sem nenhuma ideia na cabeça e com uma Internet na mão, a intifada moderna
agora apedreja via Twitter. O cenário está perfeito para a ascensão do ditador que souber
manipular uma turba de consciências mortas.
Aliás, "Consciências Mortas" é o título do filme que marcou demais minha mente adolescente e me ensinou a ficar longe das
turbas. Estrelado por Henry Ford, conta a história real de um linchamento injusto. Não vou contar mais, pois a Cristine Martin faz
isso muito bem em seu blog.
Voltando ao Boris, que atire o primeiro Twitter quem nunca fez um comentário ofensivo contra sexo, etnia ou condição social. Se fez
em "off", saiba que na era do celular e da Internet seus comentários são sempre em "on".
No primeiro dia do ano, enquanto o Boris amargava a ressaca de seu comentário, eu saboreava a deliciosa paelha que meu cunhado
preparou. Quebrando o silêncio que sempre acompanha a primeira garfada de uma iguaria, minha irmã comentou:
- Parece que o polvo precisava cozinhar mais.
- O importante é que o polvo esteja unido - comentei eu.
O mais distraído dos comensais fez a pergunta-escada que eu esperava, e eu, o mais infame dos humoristas, expliquei:
- Porque o polvo unido jamais será vencido.
Todos olharam para mim e pude sentir o que sente um condenado antes de ser linchado.
[*]Mario Persona é escritor, palestrante e consultor de comunicação e marketing.
Vídeo: Jornal da Band e Boris Casoy - Humilhação aos garis:
Clique >>aqui<< para obter o arquivo tipo FLV (MP4), com 1,21 MB - 17"
Pergunta feita em 3/1/2010, às 18h39, pelo internauta Makoto Shimizu, na lista de
debates sobre negócios Widebiz: "Agora o interessante é pesquisar o que
aconteceu e está acontecendo com o infeliz técnico de áudio que deixou o microfone ligado..."