NOTÍCIAS 2009
Susan Boyle e o Elo Perdido
Mario Persona [*]
Das
duas, uma: ou aquela figura neandertalesca, de cabelos desgrenhados e olhos miúdos entre sobrancelhas cerradas e maçãs salientes, é
uma pegadinha, ou o programa "Britain's Got Talent" acaba de encontrar o elo perdido.
Das duas, nenhuma.
Aquela caricatura de mulher é Susan Boyle e sua presença no palco abre um tonel de zombarias. Quando Susan revela seu sonho de ser
cantora profissional, como Elaine Paige a canadense Ellen Page, com metade da sua idade e um terço do seu peso
[*], a plateia debocha.
No júri, a atriz Amanda Holden, emoldurada pelo cético Piers Morgan e pelo acético Simon Cowell, se esforça para fazer cara neutra
de paisagem, mas seu belo rosto parece dizer: "Isso vai ser divertido". Pelo menos até a voz de Susan acentar os primeiros acordes
de "I dreamed a dream". Aí o queixo de Amanda cai, literalmente.
A platéia vai ao delírio. Em poucos dias Susan Boyle é vista mais de cem
milhões de vezes no Youtube e muito mais na mídia global. O título da obra de Victor Hugo, "Os miseráveis", que a canção
evoca é emblemático.
Susan Boyle é uma miserável cantando para miseráveis. Feia, deficiente e sem jamais ter tido um namorado, ela é tudo aquilo que
nenhum de nós gostaria de ser, mas somos. Quando começa a cantar, porém, até Amanda Holden quer ser Susan. Ela aplaude de pé, e o
jogo de câmeras contrasta o seu corpo esguio com a silhueta de canhão que ribomba no palco.
Talvez o correto não seja dizer que 'somos' miseráveis, mas sim que 'estamos' miseráveis, do mesmo modo que hoje Susan 'está' feia e
Amanda 'está' linda. Em cinquenta anos o corpo de Amanda, hoje sensual, também será canhão, e sua pele, agora de pêssego, se
transformará num maracujá de gaveta. Os miseráveis no júri e na plateia aplaudem porque torcem por Susan e por si mesmos, igualmente
carentes de amor e perfeição, ainda que sob diferentes camadas cosméticas.
Estranho ser, esse humano! Almejamos padrões de bondade, justiça e beleza que sempre estão muito acima do que podemos alcançar. De
onde será que vem isso? Vivemos na terra, mas de olho nas estrelas, porque trazemos em nós um sentimento de infinitude. É como se
Deus tivesse plantado a eternidade em nossos corações. Se é que não plantou.
O paradoxo, porém, é que esse mesmo humano, capaz de proezas do talento e do pensamento infinitamente superiores a qualquer outro
ser vivo, também é capaz de atrocidades nunca vistas na mais medonha fera irracional. Matamos nossos filhos para comê-los no jantar,
mas também criamos um número infinito de filigranas a partir das mesmas e perfeitas sete notas musicais, como Susan faz no palco.
E ao cantar, ela nos lembra de que existe no humano uma dignidade além do que aparentamos ser. Trata-se do sopro divino, algo que
nenhum animal recebeu. Por isso Deus não desistiu de sua criação e quis Se revelar em humanidade numa Pessoa perfeita, Jesus, ainda
que miserável em sua tez exterior.
É por isso que torcemos por Susan Boyle, como quem torce pela Fera da Bela, pelo Corcunda de Notre Dame e pelo Frodo dos pés peludos
de "O Senhor dos Anéis", vivendo sob a contínua tentação do anel. Nós nos identificamos com heróis fracassados porque acreditamos
que ainda podemos ser amados, resgatados e transformados desta miserável condição. É como se sentíssemos saudade do Paraíso.
Susan Boyle não é o elo perdido. Ela apenas revelou que o elo existe, mas não com algum símio ancestral. Sob aquela semelhança feia,
miserável e transitória foi possível ver um ser criado à imagem de Deus. Quem estava no palco não era uma pessoa estranha. Naquele
palco eu vi a mim mesmo, como Deus me vê e me ama. E também vi você.
"Agora, pois, vemos apenas um reflexo obscuro, como em espelho; mas, então, veremos face a face. Agora conheço em parte; então,
conhecerei plenamente, da mesma forma como sou plenamente conhecido". 1 Coríntios 13:12
[*] Errata: Ao contrário do que eu
e milhares de sites e blogs disseram, Susan Boyle é fã de Elaine Paige e não de Ellen Page. O sotaque escocês dela me
confundiu.
Assista no site do programa
Britain's Got Talent a versão completa do programa com Susan Boyle.
[*]
Mario Persona é escritor, palestrante e consultor de comunicação e marketing. |