NOTÍCIAS 2009
A hora do Abreu
Mario Persona [*]
Podia-se ouvir o tropel de trezentos cavalos, quando o
pedal do acelerador sentiu o toque da espora do dono. O motor do SUV respondeu rápido e os enormes pneus obedeceram à tração nas
quatro rodas, fazendo o veículo escoicear em meio a uma saraivada de pedras e barro. Pelo retrovisor já não era possível enxergar a
trilha, oculta por uma cortina de fumaça.
Abreu precisava vencer logo aquele trecho antes de chegar ao asfalto. Tinha um compromisso consigo mesmo e com a sociedade, e era
responsável o suficiente para não faltar. Como sempre fazia, abriu o vidro e atirou para o mato as garrafas vazias e o saco plástico
com os restos de frutas e sanduíches naturais. Abreu se preocupava com a saúde.
Mas isso era só aos sábados, quando precisava estar bem disposto acelerando pelas trilhas. No domingo ele saía da trilha e do sério,
quando vestia seu avental de churrasqueiro e caprichava na picanha.
No caminho parou no supermercado para abastecer de carne o seu freezer. Enquanto colocava os pacotes de carne em tríplices sacolas
plásticas para evitar que rasgassem, Abreu calculou se as cervejas que tinha em casa, no congelador ao lado do freezer,
seriam suficientes. Achou que sim. Só precisava mesmo da carne e de dois sacos de carvão.
Em casa, os pneus deixaram um rastro de barro no piso da garagem, mas a faxineira cuidaria de lavar tudo na segunda-feira. Antes
disso Abreu já teria levado o carro ao posto para lavar. O pessoal do posto não reclamava de lavar na segunda o barro duro do
sábado. Abreu sempre deixava uma gorjeta para compensar o dobro de água e xampu que seu carro exigia.
Ao sair da garagem olhou de relance para o jet sky que acabara de comprar. Logo ele estrearia seu novo brinquedo na casa de
madeira que tinha na marina, onde também ficava sua lancha movida a dois motores diesel. Abreu olhou para o relógio e viu que ainda
dava tempo de tomar uma sauna antes do banho.
Com as mãos e pés ainda enrugados, e vestindo um roupão para se proteger do frio, Abreu tratou de regular o ar condicionado central,
que tinha deixado ligado desde o dia anterior. Caminhou para a sala e olhou para o relógio. Tinha chegado a hora.
Abreu acionou o interruptor e as trinta e oito lâmpadas incandescentes, parcialmente embutidas no teto, se apagaram. Em seguida
desligou um a um cada abajur dos oito cantos de sua enorme sala. Por uma hora Abreu ficou ali, em estado de espera, igual aos doze
leds coloridos dos aparelhos eletrônicos na estante.
Sentindo uma paz interior como há muito não sentia, Abreu foi até a janela e fechou as cortinas para evitar que as luzes da casa do
vizinho estragassem a aura preservacionista que desceu sobre ele. Sentiu uma pontinha de indignação. Como o vizinho podia ficar
alheio à "Hora do Planeta"?
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Mario Persona é escritor, palestrante e consultor de comunicação e marketing. |