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NOTÍCIAS 2005
Filhos nacionais

Mario Persona [*]

Detesto filme nacional. Verdade; fujo deles. Primeiro, porque a maior parte dos que assisti ou pintam a violência com todas as cores, ou exaltam a malandragem como patrimônio nacional, ou acreditam que audiência seja medida por centímetro quadrado de pele exposta. E sacanagem, muita sacanagem.

Há um bom tempo pornochanchadas de quinta categoria vêm sendo mascaradas de sétima arte e subsidiadas com dinheiro público. Tudo com a desculpa de mostrar a realidade brasileira. Mas, ao contrário do que querem nos fazer crer, o brasileiro médio não é traficante, não é vigarista e nem tira a roupa no primeiro encontro.

Outra razão de fugir do nacional é o som. Tenho uns dez por cento de redução auditiva e perco boa parte dos sons agudos. Não deixa de ser uma vantagem para quem escreve, por proporcionar igual porcentagem de silêncio em qualquer ambiente, ou na hora de ouvir rádio: para mim todas as estações pegam sem chiado. Como os filmes nacionais costumam ter som de péssima qualidade, perco a maior parte das falas. O que equivale dizer que não perco nada.

Para um filme nacional ocupar minha atenção, só mesmo se não tiver mais para onde olhar. Ou se estiver a 11 mil metros de altura, a 900 km/h e lá fora o termômetro estiver marcando 50 graus negativos, impedindo que eu saia. Por esta e outras razões decidi assistir um filme nacional. Voando.

Sim, é verdade que eu tinha outras opções no vôo de Natal a São Paulo. "Procura-se um Amor Que Goste de Cachorros" eu assisti na ida em uma aeronave na qual a tela era compulsória. Na volta, com uma telinha para cada um, "A Feiticeira" eu não vi por causa da cortina que me separava da primeira classe e "A Fantástica Fábrica de Chocolate" deixei para ver depois. Outros dois ou três do cardápio eram tão irrelevantes, que nem gastei memória para guardar os títulos.

E tinha o nacional "2 Filhos de Francisco". Relutei, mais pelo som do que pela curiosidade de ver o que todo mundo disse que viu. Quando percebi que tinha opção de legenda — mesmo sendo em inglês — decidi arriscar. E chorei.

Chorei o filme todo. Isso mesmo, esse cara aqui que você vê nas fotos com pinta de executivo e nervos de aço para enfrentar grandes platéias, chorou vendo um filme no avião. E não foi pouco. Sem ninguém na poltrona ao lado para me obrigar a manter a cara lavada, passada e engomada, deixei os sentimentos correrem soltos. E como escorreram! Quase me senti viajando de hidroavião.

O filme já tem o grande mérito de atrair multidões, mesmo com todos sabendo o que acontece no fim. Tem a vida humilde da roça, lindamente caracterizada sem apelar para estereótipos ou exageros, os sorrisos inocentes que os garotos sorriem, o gigantismo da mãe brasileira que carrega o piano do lar, a preocupação de tantos pais Franciscos com a educação, e a paixão que move os inconformados a mudarem aquilo que pode ser mudado, ao invés de passarem a vida criticando o que não podem mudar, como fazem os filósofos de bar.

Os três temas sempre presentes no cinema nacional — violência, malandragem e sensualidade — continuavam lá, mas muito mais vivos, reais e honestos. A violência das circunstâncias, dos acidentes, das derrotas que nos mutilam estava lá na forma como todos a conhecemos, e não apenas traficantes. A malandragem era do tipo que descobre que é melhor ser honesto, mesmo que seja só por malandragem. E a sensualidade? Não faltou.

Sem um centímetro quadrado de pele exposta, é difícil imaginar um momento mais cheio de arremedos de paixão do que o encontro dos jovens no baile. Ofegantes, só de olhar; extasiados, só de dançar; amantes, daquele amor-suspense que só um beijo roubado pode causar. Não falei da canção "É o amor", de um louco apaixonado de alma transparente, alucinado, meio inconseqüente, um caso complicado de se entender? Devia ter falado. Não vou negar.

Parece que alguém se lembrou de avisar o cinema nacional que cinema continua sendo contar histórias. E que contar histórias com maestria é um grande negócio, capaz de encantar e emocionar pessoas onde quer que estejam: no mar, na terra ou no ar. Eu já estava no ar, quando o filme tirou meus pés do chão e transformou meus olhos em mar. Enxugado com guardanapo de papel.

Sem efeitos especiais, tela 360 graus ou som espacial, a história me tocou. Telinha pequenininha de encosto de poltrona, som que mais li nas legendas em inglês do que ouvi, vôo de carreira em classe econômica e trivial, nem o avião era presidencial. Apenas uma boa história em um filme legal.

[*] Mario Persona é escritor, palestrante e consultor de comunicação e marketing. Texto disponível em seu site.