NOTÍCIAS 2005
O umbigo de Adão
Mario Persona
[*]
Adão tinha
umbigo? Depende. Considerando que não nasceu de mulher, então não. Porém, considerando que foi criado pronto, como um protótipo
adulto, então tinha. É simples assim. Mas alguns têm dificuldade na hora de lidar com o ambíguo de Adão. Digo, umbigo.
O Houaiss define "ambíguo" como algo que desperta dúvida, incerteza. É vago, obscuro, indefinido, admite interpretações diversas e
até sentidos contrários. Algo cuja resposta pode não ser nem sim, nem não, muito pelo contrário. Entendeu? Nem vai.
Há, todavia, um lado menos nefasto da ambigüidade. Quando crianças, brincávamos de enxergar carneiros nas nuvens. Para a escola
racional, não passavam de nuvens e nos mandaram parar de ver nuvens passar para prestar atenção na equação.
Hitler tinha dificuldade em lidar com a ambigüidade. Para ele nada podia ser menos do que perfeito, ao seu próprio jeito. Para
deixar as coisas assim, eliminava imperfeições na marra. Na arquitetura nazista, bastava incluir uma janela na fachada esquerda,
simétrica à da direita, e tudo ficava lindo.
O mesmo fez com as artes. Como não podia eliminar as nuvens, eliminou quem pintasse, escrevesse ou fizesse filmes que dessem margem
a mais de uma interpretação. Tentou fazer o mesmo com as imperfeições humanas.
Das circunstâncias, Aristóteles dizia que "é provável que o improvável acontecerá". Nos negócios, então, nem se fala. Mas vou falar
um pouquinho. Saber trabalhar em ambientes de incerteza e ambigüidade é vital. Nada é 100% previsível nem 100% controlável. Em tudo
há risco, para tudo há de se ter intuição e criatividade.
Devemos nos adaptar às circunstâncias que não podemos mudar e administrar as que pensamos poder. Com cuidado, com as ferramentas
certas para abordar as ambigüidades e o mau tempo do clima organizacional.
Costumo estimular o pensamento criativo e a tolerância para com a ambigüidade em ambientes de incerteza e risco, mas nem sempre
consigo. Há quem não seja capaz de enxergar além dos padrões arraigados em seu cérebro. Foi o que ocorreu quando usei um filme em um
workshop para engenheiros.
A cena de "A Lista de Schindler" mostrava o personagem na conquista de seu futuro mercado, a oficialidade nazista em um bar.
Ele dá generosas gorjetas ao garçom para aproximar as dançarinas dos oficiais menores e servir bom vinho aos de alto escalão. Minha
intenção era mostrar que devemos identificar e atender necessidades e desejos dos clientes, tipificadas por dinheiro, prazer e
prestígio. Era minha versão light de Maslow. Um dos presentes levantou a mão.
— Não concordo que precise subornar alguém, incitar a prostituição ou embriagar o cliente para vender — disse com firmeza. Fiquei
esperando que criticasse também o ambiente nazista da cena, mas pelo jeito não tinha nada contra.
Saí horrorizado só de pensar na interpretação que alguns conseguem dar ao que ensino. Pessoas que nunca brincaram de enxergar
carneiros nas nuvens por só pensar com o hemisfério esquerdo da razão. Gente que só acreditará em Adão se um dia o Discovery Channel
mostrar um fóssil sem umbigo.
Imediatamente lembrei de outro workshop e gelei! É que lá ensinei estratégia usando a cena da batalha de "Coração Valente".
E se amanhã eu abrir o jornal e a manchete gritar: "GERENTE PROMOVE BANHO DE SANGUE EM EMPRESA"? Vou preso como mentor intelectual
do crime. Eu e o Mel Gibson.
[*] Mario Persona é escritor, palestrante e consultor de
comunicação e marketing. Texto disponível em seu site. |